Texto e ilustração por Floriano Martins
Parte expressiva da poética de R. Leontino Filho vem de sua espessura narrativa, o truque singularíssimo com que lida com as variantes de tempo e espaço no tear migratório de seus temas e imagens. Os títulos dados aos capítulos que compõem o livro Anatomia do ócio (Fortaleza: ARC Edições, 2018) são como uma constante escavação em um organismo de relatos. Deste modo a sua lírica, pois afinal o poeta é essencialmente lírico, contraria a ordem de sensações meramente delicadas de todos os assuntos que evoca.
Com um tratamento sutilmente lapidar Leontino Filho refina o idioma, a imagem e a perene metafísica de seus vislumbres da experiência humana. Como ele próprio alerta, em um de seus poemas, todas as suas táticas se mostram, embora escondidas. É um agrimensor audaz do empório das sofreguidões. Leitor atento dos manuscritos e garatujas, a começar pelos mais deliberadamente apócrifos, da alma humana. Um fabricante de nuvens, recordando o título de um fascinante relato de Giovanni Papini (1881-1956). A propósito, qualquer criador confessa a delícia que lhe invade o ser ante a descoberta de intensa afinidade estética com outro criador que até então desconhecia por completo.
Em uma de suas histórias mais saborosas, Papini narra os mistérios de um pobre maníaco inocente, que tinha por hábito distribuir nas mesas de desconhecidos em tavernas retratos e sentenças supostamente de sua autoria. Ao narrador deste relato, intitulado O homem das sete vidas, certa noite lhe entregou uma folha onde se lia: Deus criou o Mundo do Nada. Reza para que não lhe dê a vontade de devolvê-lo ao Nada de que o tirou. Em uma época que prima pela nulificação das essências, eis o que faz Leontino Filho, como uma interferência feliz e natural: evita a asfixia do fracasso, mortifica a agonia dissidente, torna o mundo de tal modo habitável que é impossível fazê-lo retornar ao Nada.
Aqui me parece que manter a vida imperecedoira – em sua plena alegria de ser – é uma das mais altas funções da criação artística. Desdenhar nessa exigência natural a falta de apuro enigmático e a letargia desembrulhada por uma desfibrada inocência. Creio, como Leontino Filho, que todo purgatório é ingênuo. Creio, ainda mais, que a seu lado também Céu e Inferno compõem aqueles três copos de madeira que, uma vez emborcados e habilmente manipulados, fazem com que percamos a noção de onde se encontra a estimável essência de nossa vida. E assim crendo não me parece que o poeta discorde de mim, pois ele mesmo sentencia em um de seus poemas: em tudo que passa / interessa tão pouco / o que importa. A rigor, uma contra sentença, pois em nada interessa ao poeta a escritura dogmática. Viver é uma carga explosiva, um naufrágio de trevas, uma cartografia de desastres.
E tão bem nos cabe agora um título exemplar de Aníbal Machado (1894-1964), seu ABC das catástrofes. A começar por este aforismo aparentemente cruel que possui parecença com a autópsia que Leontino realiza no ócio, no presente livro. Diz Machado: Um pedaço de perna salvo de uma catástrofe não pertence a ninguém: é um pedaço de perna. O mesmo se poderia dizer de uma fração, por mais atraente que seja, de ócio encontrado sob os escombros de nossa vida.
Ao lado de Giovanni Papini, Aníbal Machado é outro parente da poética de Leontino Filho que se mostra de modo escondido. Em qualquer um deles encontramos a pertinente lembrança de que a dor suspira […] com irônico sorriso. A ausência de consciência da dor tem, há muitas décadas, contaminado a tradição lírica no Brasil com certa promiscuidade discursiva ampliada pelo mero balbucio formalista que quando muito mascara o privilégio de estar vivo e ter diante de si um arsenal de responsabilidades perante o que somos e o que pretendemos ser.
Despe-se aqui o poeta, por completo, de todos aqueles vícios e malefícios dessa tradição que, mesmo em proporção reduzida, ainda atinge o magma de sua própria geração – Leontino Filho nasceu no Ceará em 1961. Tanto os trocadilhos não lhe interessam quanto nada expressam a moral desossada clerical e as inscrições meramente revoltadas ou debilmente humorísticas. Mitos, migrações, sortilégios; truques de linguagem, rigor metafórico, verificação dos aspectos relativos da verdade e da mentira; tudo tem uma precisa razão de ser, sem que se registre o desgaste da percepção e da habilidade argumentativa do pensamento.
Recordei Giovanni Papini, Aníbal Machado e a mutação desgovernada da lírica brasileira. Quero melhor esclarecer tais pontos e acrescentar outros. Começo por Aníbal pelo aspecto quando menos invulgar de que, sua obra sendo qualificada como narrativa, é uma das máximas referências brasileiras no que diz respeito à voltagem poética de seus escritos. Desde a modernidade, porém há exemplos intensos que lhe são anteriores, um novo truque se instalou na criação artística, o da ruptura dos gêneros. O avanço da tecnologia promoveu uma confusão entre expressão e recurso. Muita arte se beneficiou desse aspecto, não por oportunismo desvalorizado, mas sim por haver bem interpretado os códigos essenciais de cada gênero, em isolado, e descoberto infinitas variações na ousadia de suas mesclas.
Há exemplos fascinantes, que naturalmente vão além do fato bastante comum, em especial desde os primórdios do século XX, de nos depararmos com aquele tipo de criador que atua muito bem em duas ou três áreas. Nenhuma novidade se voltarmos no tempo à Renascença. O que me interessa mencionar são aquelas transfigurações ou felizes receituários alquímicos em que gêneros se mesclam e criam um ambiente imprevisto ou aqueles que se afirmando em uma forma expressam o que até então era comum em outra forma. Costuma-se dizer que René Magritte pintava como se fizesse colagens e que Max Ernest, ao contrário, fazia colagens como se pintasse ou desenhasse. Muitos diretores de cinema foram eficazes ao transmutar a linguagem dos gibis para a tridimensionalidade cinematográfica.
O ambiente narrativo na tradição brasileira possui certa singularidade poética que em muitos casos poderia ser entendida como poema se disposta em verso. Mas não se trata disto, que seria mero truque de parque de diversões. O que interessa é mencionar a essência poética da narrativa de um Guimarães Rosa, de uma Clarice Lispector, de um Antônio de Alcântara Machado, até um nome mais recente, Marco Lucchesi – embora este seja lido, pela cegueira bíblica da crítica literária, como um poeta de versos, em muitos casos desconsiderando a grandeza de sua prosa poética, território onde melhor cumpre seus desígnios de poeta.
Talvez um verso de Leontino Filho nos traga algum sentido esclarecedor para essa rede de engodos: Enquanto dura a extinta matéria / uma ponte de perguntas aguarda / a lasciva sílaba dos equinócios / – entredevoram-se os verbos póstumos. Eis aí, de certo modo, a lacuna perversa: cedemos ao desvario famélico de nossos verbos póstumos. Ou simplesmente nos tornamos póstumos uns dos outros. Criamos assim o que nosso poeta estima como uma fratura nos mecanismos afetivos que definem a passagem do homem pela terra. Não à toa, um dos capítulos de seu livro se chama justamente A saliência dos afetos.
A grandeza imagética de A saliência dos afetos declara um parentesco – que somente neste capítulo não se mostra escondido – que o aproxima e distingue de certas afinidades já referidas. Eis a família afetiva do poeta: Foed Castro Chamma, Orides Fontela, R. Roldan-Roldan, Ascendino Leite, Helena Kolody, Oswaldo Lamartine de Faria, Yeda Prates Bernis, Sérgio Campos, Edson Guedes de Moraes e Anníbal Augusto Gama. Embora cada poema espelhe uma intimidade estética com seu escolhido interlocutor imaginário, em um deles estão sobriamente anotados os pertences do homem / (tatos, venenos, desatinos). Pelas mãos de dois ou três afetos evocados, regressamos ao temporal da usura e das maquinações políticas e religiosas do antigo Império Romano, onde o tecido trêmulo da imortalidade não sabe mais o que inventar além de um mapa que não mais nos leva a lugar algum.
Uma síntese estarrecedora dessa família projetada neste capítulo a encontramos em um poema dedicado a Sérgio Campos: toda memória é um pai-morto, perambulando / pela nossa lembrança. Poucas vezes os bagaços hereditários foram expostos de modo tão dilacerantemente indesejável. O interlocutor – Sérgio Campos – foi uma voz quase isolada na lírica brasileira ao descortinar o helenismo que deixamos para trás possivelmente por temor de encarar nossos fantasmas.
Uma das razões porque no início de nossa conversa afirmo a presença de uma cobiçada viagem narrativa na poética de Leontino Filho tem a ver com a estrutura como montou seu livro. A princípio, o estudo anatômico do ócio, mas logo vamos percebendo que, como em velhos ritos religiosos, não chegamos até o ponto ideal de compreensão do que somos sem antes percorrer as mais selvagens metáforas da transmigração. Não à toa, após delinear suas afinidades – não apenas estéticas, em muitos casos eu diria que até bem mais espirituais –, ele parte para a cerimônia, como é descrita na mitologia egípcia, da pesagem das almas, e o faz empenhado em descarnar a cegueira, a cobiça e outros espólios da fragilidade humana.
Tanto me parece certo o que digo que o capítulo a que me refiro se chama O vexame dos pesos. É talvez o fragmento mais duro do livro, onde estão situadas as deformidades da imaginação. Seus ofícios, crimes e destinos perversamente adiados. As rachaduras do abismo, a urna das renúncias, o trágico sufoco da demência.
Nenhum grande poeta necessita elogios. Em especial um poeta que permite aflorar de seu íntimo imagens com esta força simbólica: pátina paralisada da loucura; pela porta um salto acorda o som; esta fome gêmea gemendo no papel… Um poeta que chega e simplesmente declara que tudo é vida, é o mesmo que duplica a ousadia ao dizer que a lei é um atributo da libertinagem. Este poeta, ao avançar na armação narrativa de sua poética, não seria suficientemente astuto caso fosse tratar de outro assunto que não A fruição dos sigilos, título do quarto capítulo de Anatomia do ócio. Trata aqui o poeta de averiguar a intenção por trás dos salmos, das profecias, das frustrações expelidas à beira do fogo, das penumbras dissonantes, e o faz com sua relevante clareza: minha alma vai / sem pressa / ao encontro / da perdição.
Aqui está recordada aquela viagem ensolarada determinada ao mergulho em si mesmo, como a que realizou Marco Lucchesi (1963) em seu livro iluminador, Os olhos do deserto. Tanto em um poeta quanto no outro a percepção de que a vida de cada um de nós não é senão o prefácio da Ressurreição (Lucchesi). Para tanto, A morte nos olhos é tão indispensável quanto A fruição dos sigilos – capítulos respectivos dos livros de Lucchesi e Leontino Filho. Como assevera este último: o que existe das coisas / é o percurso. Sabem ambos que o tempo tanto dói por dentro quanto esconde a bênção seminal. O Santo Graal é ínfimo ante sua busca. O esplendor é um jardim que desconhece a magia das sementes. Nada mais transitório do que a perpetuidade. Se seguíssemos viagem agora com os dois poetas, decerto iríamos pela mesma trilha defendida por ambos e que Leontino Filho batizou de A meninez das palavras, capítulo final de seu livro.
Não à toa deixei por último a menção que fiz a Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), quando este deduz, em seu intrigante Pathê-Baby que irremediavelmente o passado sempre acaba ficando para trás. O imensurável volume de frustração no homem – ou seja, em cada um de nós – tem a ver com os falatórios embaraçosos do passado. Enumerar palavras de efeito maléfico ou benéfico não define a humanidade. A todo instante os meios de comunicação utilizam tais recursos, como se administrassem um efeito placebo aos mitos. Em seu capítulo mais intenso, Leontino Filho conclui o livro com um resultado acima de satisfatório para a autópsia que realizou no ócio. Evitarei qualquer menção ao efeito-Macunaíma, porque ócio e preguiça são dimensões quando menos paralelas na interpretação que ambos, Leontino Filho e Mário de Andrade (1893-1945) têm do mundo e de sua responsabilidade perante o mesmo.
Os poetas foram pouco a pouco desaprendendo a honrar a natureza visceral da criação e com isto foram criando uma confraria à sua volta de ilusionistas fracassados que não mais convencem ao espelho da ilusão de sua precária existência. Há uma proeminente enfermidade da linguagem, antes mesmo de uma decorrente falência das línguas. O homem suportaria – há de se supor, tão-somente – conviver com um só idioma, e não creio que aí residiria a derrocada de inúmeras expressões culturais. O descalabro da humanidade se encontra na dilapidação de um estuário sem limites da linguagem. Retalho de lucidezes, coágulo de alegorias, moléstias de inquietudes. As manobras viscosas tornaram o mundo inabitável ao estampar em cada olhar de seus habitantes um mínimo de desconfiança acerca da verdade que, para o bem ou para o mal, cada um a defendemos.
Em seu capítulo final, o livro Anatomia do ócio delibera que a palavra pode alcançar qualquer significado e nos arrastar pelo território de quaisquer desastres. Este é um inferno plausível. Uma inesgotável e sufocante perda de identidade. O mundo se desmontando, se esfarinhando, se desumanizando, sem dar pela ausência de um só componente – parafuso, semente, nome. Já não temos mais como armazenar sarcasmos políticos, lixos atômicos, hóstias falsificadas, lodaçais de infâmia, relíquias putrefatas…
Leontino Filho finaliza sua incondicional defesa da espécie humana conclamando que não se diga uma só palavra até que tenhamos aprendido ou reaprendido o quanto ela pode nos libertar de nós mesmos, de nossos mecanismos autodestrutivos. Esta é a sua Anatomia do ócio. O relato de que o homem tornou-se uma aberração diante de si mesmo e que somente pode sonhar com o tecido trêmulo de alguma ressurreição ao se determinar a definir um valor exato e incorruptível à palavra dada. Não é à poesia propriamente – em isolado – que cabe essa determinação, mas sim ao poeta, em especial aquele que entende que sua vida só equivale à sua obra se ambas estão afinadas pelo mesmo diapasão de reconhecimento da humanidade em si.
TRÊS POEMAS DE R. LEONTINO FILHO
(salto)
Algo de heresia existe
no interior de uma ofensa.
O agressor disfarça o ódio
ao calcinar a raiva
em metades diminutas
e se mostra, escondido.
Traído reluta em sua tarefa
imobiliza o agressor
vencido na asfixia
do fracasso
e se consome, consumido.
Tremulam armas na derrota
o resgate encardido em lascas
de transtorno, reduto da contenda.
Tenso oculto contendor
Derrama contrafeito sua cegueira
e se enreda, enredado.
Acima da discórdia o desvario vagueia
no que resta de confinamento:
do que jaz em cada sentença de cabeças
a abrir fendas no leito da morte
e se quebranta, quebrantado.
Acima do berro ir-se embora
embrião afeito ao fim.
Na clausura permanecer em retorcido isolamento
horror mortificado ranger de corpos
e se desmantela, o desfeito.
Sobras de coragem a agonia traz
o acordo não acordado desfia
u’a promessa cravada nas horas
perfura a interferência dos relógios
e se desgarra, desgarrado.
O futuro s’esfarela, esfarelado, pinga
tombos sem trégua na letargia do presente
toalha passada na ferrugem dos conflitos.
O paradeiro do anjo desembrulha
emboscadas em série, fé sem paraíso
escondido consumido enredado quebrantado desfeito desgarrado
no inferno da mentira: todo purgatório é ingênuo.
FEITO PRECE
(A Oswaldo Lamartine de Faria)
Toda infância é grandeza
muito laço apertado
p’ra mover um pouco
os perigos do mundo.
Cada infância é um pouco
dessa epopeia cansada
no muito habitar os rigores
graúdos da poesia.
Tanta infância é um desembestar
certeiro do tempo
muito pouco ainda
p’ra tresdizer
com súbito assombro
o rio caudaloso das crianças.
Como um destino
de pontaria, pontaria mesmo
a cantoria da infância
com tino e siso
perdura muito
filtrada no agora.
Toda infância a tantas horas
de cada homem
pouco ou nada resiste
à pálida sina da grandeza:
a feição apressada da vida murmura
ainda, no limiar das águas claras, o nome.
POEMA DA NOITE
Pousa a mão desinteressada no espetáculo da vida
e canta a canção necessária ao homem,
nada para o poeta é tudo que o instante dita:
anunciação de estrelas
folhagem do discurso
excursão do vento
madrugada de náufrago
sentido do caminho
nada para o poeta é tudo que a hora indetermina:
o mundo da criança
a música do sozinho
o retrato da ressurreição
a precariedade da lágrima
o lamento da lembrança.
Inclina o olhar insólito na orfandade do sonho
e murmura o pensamento insensato do mistério,
cada coisa para o poeta é divina em sua profanidade:
punhal cego que afunda desertos
ferida límpida que molda vultos
cristal embaçado que colhe abraços
pedra amolada que gera flores
pranto tímido que anuncia sorrisos;
toda coisa para o poeta não raro é uma procura:
loucura ardente que navega esplendores
atitude diferente que habita diálogos
certeza arisca que vibra em sigilos
amargura contida que flutua nas noites
espelho demente que expressa delícias.
Na lâmina afiada da ventura
a raça dos poetas prepara o céu, o mar e a terra,
sem querer, viaja no embalo do encontro:
imagem da canção quando o nada
na frágil cantiga do destino
deixa transparecer a medida provisória de tudo.