Por Floriano Martins
NOTA DE EDIÇÃO: As partes inicial e final deste texto foram originalmente escritas para publicação no caderno Sábado, do jornal O Povo (Ceará), respectivamente em 1997 e 1999. A parte intermediária é uma entrevista realizada em 1988, publicada no mesmo ano no suplemento DN Cultura, do jornal Diário do Nordeste (Ceará). José Paulo Paes morreu em 1998.
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1. O denominado jornalismo literário adora suas cartas marcadas, seus signos viciados. Talvez por isto não tenha notado que em 1996 José Paulo Paes completou 70 anos de vida e que agora neste já bem encaminhado 1997 confirma a notável expressividade de sua obra, fechando a casa dos 50 anos de plena produção literária, seja como poeta, tradutor ou ensaísta. Nascido em Taguatinga, no interior de São Paulo, em 1926, José Paulo Paes publicava, já em 1947, seu primeiro livro, O aluno (poesia). Dez anos depois iniciava-se no ensaio com a publicação de As quatro vidas de Augusto dos Anjos. 1996 passou sem uma única referência a tais fatos. Em seu jogo de cartas marcadas, ao que parece a imprensa só se lembra de José Paulo Paes quando a pauta inclui alguma referência à poesia grega.
Contudo, no que pese a importância imensa de haver descortinado para nós um universo inteiramente desconhecido – no caso a lírica helênica –, o fato é que seu nome alcança uma dimensão bem mais ampla. Tem produzido, ao longo de meio século, uma obra ensaística sólida e respeitada, abordando aspectos os mais variados dentro do universo da literatura, sempre munido, como salienta Carlos Felipe Moisés, de um “severo olhar perscrutador, notável erudição e proficiência”, expondo-se sempre ao risco natural da discordância, bem ao contrário de muitos de seus pares, sempre recolhidos à ardilosa genialidade do intocável. José Paulo Paes tem exercitado com frequência o diálogo, abrindo suas fontes de conhecimento a todos – justamente este diálogo que tanta falta nos faz, nublado pelo deprimente perfil egolátrico que permeia nossa literatura.
Mesmo se vinculado diretamente à tradução, não se pode esquecer outros essenciais contributos: os Sonetos luxuriosos de Aretino, o Tristam Shandy de Lawrence Sterne e a fundamental tradução (edição prologada por primoroso ensaio) de Friedrich Hölderlin (1991). Em entrevista que lhe fiz, definiu: “a tradução bem sucedida de um poema deve permitir ao leitor entrever, por sob o traduzido, o fantasma do original, assim como por sob a reescrita de um pergaminho se pode recuperar o sulco palimpséstico.” É fato indiscutível que sua magnífica apresentação da poesia grega salta aos olhos com todos os merecidos elogios. Hoje se fala com relativa intimidade em Seféris, Kaváfis, Elýtis, porém sem levar em conta o périplo sinuoso que percorreu José Paulo Paes até a conclusão e edição desta sua obsessiva aventura.
Na sequência deste seu notável empenho de tradução de poesia – inúmeros os exemplos espalhados por publicações em todo o país, o que atesta inclusive sua generosidade e disposição para o diálogo –, José Paulo Paes foi recentemente agraciado com o prêmio anual de tradução da Biblioteca Nacional (1997), pela publicação de Gaveta de tradutor. O prêmio foi partilhado com Marco Lucchesi, pela edição de Poemas à noite. Segundo o júri, a ideia era exatamente premiar um tradutor jovem ao lado de um veterano. O livro reúne uma série de traduções de José Paulo Paes, de idiomas como o alemão, o italiano, o francês, o espanhol, o inglês e o grego. Não se trata de uma exibição circense de seu poliglotismo. Antes atende a uma necessidade de despertar a atenção de um mercado viciado em “pratos feitos”.
Como nossa cultura livresca é algo dominical, mesmo os alardeados nomes de Blake, Mallarmé, Yeats, Leopardi – poetas incluídos em Gaveta de tradutor – funcionam quase como novidades escaldantes. Diante de um livro destes é que somos conduzidos à resignação, constrangidos pelo fato de conhecermos muito pouco da poesia do resto do mundo. José Paulo Paes nos traz à cena brasileira alguns poetas cuja menção soa estranha ou pouco familiar: o alemão Gottfried Benn (1886-1956), o holandês Richard Minne (1891-1965), o cubano Eliseo Diego (1921-1993) e o austríaco Ernst Jandl (1925). Embora Jandl seja o único poeta vivo, a verdade é que todos influíram de forma decisiva no desdobramento da poesia em seus países de origem e alguns alcançaram uma difusão internacional de grandes proporções, como é o caso de Gottfried Benn, ao lado de Georg Trakl os dois nomes mais importantes do Impressionismo alemão.
Mesmo em se tratando de poetas já traduzidos ao Brasil – Hopkins, Yeats e Apollinaire –, as versões de José Paulo Paes, ladeando-os de nomes inteiramente desconhecidos, no caso do estadunidense Alfred Kreymborg (1883-1966), do holandês Arie Gelderblom (1945) e do grego Dimítris Tsaloumas (1921), põem em discussão o famígero estágio de nossa cultura. Cultuamos, é bem verdade, o Concretismo como sendo o gáudio de nossa entrada na modernidade. Flâmula dominical. Os cultores do Concretismo entraram na poesia brasileira pela mesmíssima porta por onde concluem a inócua jornada – o parnasianismo –, deixando por saldo ou rasura testamental um retórico panegírico.
Em meio a isso – malgrado a infeliz ideia de poetas como José Juan Tablada (1871-1945) e Ezra Pound (1885-1972) de trazer para o ocidente uma iluminada tradição poética do oriente –, o hai-kai prolifera atualmente em várias instâncias do continente americano como uma espécie de clube pentecostal, uma dessas tantas aberrações de caráter populista em que nos convertemos neste caótico final de século. Então o que mais põe em pauta este livro de José Paulo Paes é a necessidade vital de um referencial múltiplo, ou seja, quanto mais trouxermos para a cena brasileira os nomes que agem e definem a cultura em outros países, mais poderemos esboçar um motivo mínimo de nossa própria existência.
Citado como um de nossos grandes tradutores, ressalto duas particularidades: a multiplicidade de autores que busca trazer para nós – digo multiplicidade no sentido de uma abrangência estética e não do mero referencial quantitativo – e a isenção absoluta de práticas algo comuns entre tradutores de poesia, seja a criminosa desfiguração do original em busca da adequação a seus interesses estéticos ou mesmo o traiçoeiro equívoco de procurar melhorá-lo.
Se pensarmos em nossa poesia como algo insípida e afeita aos acessos constantes das ondas parnasianas, entenderemos a precariedade de nosso farol, carente de uma clara discussão, à luz do que se passa no resto do mundo. O fato é que nos honra e redime a presença de José Paulo Paes em meio a este festim quase às escuras. Enquanto as luzes se preparam para a festa, ao menos concluamos pela indiscutível importância deste escritor ao cenário da cultura – sobretudo a poesia – brasileira. Comemoremos então com imenso orgulho os 70 anos de vida e os 50 anos de plena e frutífera atividade intelectual de José Paulo Paes.

>>> ENTREVISTA <<<
2.
FM | Inicio esta nossa conversa referindo-me a William Burroughs ao lembrar que “um escritor precisa ter a capacidade de sobreviver ao desempenho irregular, o que seria um desastre em outra profissão”. Consideras-te um bom crítico de teus próprios trabalhos?
JPP | Se me considerasse, já não seria um crítico: a verdadeira crítica começa em casa. Embora eu não me tenha por bom juiz do meu próprio trabalho, o tempo e a experiência me ensinaram pelo menos a desconfiar da natural cegueira do entusiasmo. Antes de publicar o que quer que seja, deixo o que escrevi passar por um período mínimo de esfriamento, ao fim do qual releio desentusiasmadamente o escrito para, raras vezes, deixá-lo como está, ou corrigir-lhe as imperfeições, se possível, ou então, em última instância, jogá-lo fora. A sabedoria literária, para mim, está em manter um razoável estado de equilíbrio entre a gaveta dos guardados e a lata de lixo. À medida que se vive, vai-se manifestando uma tendência à diminuição dos conteúdos de uma e de outra. Não porque nos tornemos mais talentosos ou menos críticos, mas porque acabamos por nos convencer de que só se pode fazer o que se pode fazer. Este lugar-comum é útil no cartografar a terra de ninguém (ou de nós todos) que separa o charco da impotência ressentida do enganoso borbulhar do gênio.
FM | Ao reunir tua poesia em um só volume, Um por todos (1986), que possível balanço crítico terias feito em relação aos 36 anos de atividade poética que ligam O aluno (1947) a Calendário perplexo (1983)? Por que dispuseste os livros em ordem cronológica inversa à de sua publicação?
JPP | Esse possível balanço se resume numa frase: a conquista de voz própria. Voz de pequeno volume, insegura talvez, porém minha. Quando dei o título de O aluno ao meu primeiro livrinho de poesia foi porque tinha consciência do que nele havia de epigonal. Lembro-me de uma frase da carta com que Drummond lhe acusou o recebimento: “Você se procura através dos outros quando é dentro de você mesmo que deve se encontrar”. Essa procura de mim mesmo se estende de O aluno a Calendário perplexo e continua até hoje: ser é procurar-se. E não creio que ela vá nunca terminar: todo livro é o penúltimo. Daí eu ter preferido a ordem cronológica inversa em Um por todos: a ordem cronológica direta só convém ao autor defunto. O passado interessa pelo que pode iluminar do presente e o meu presente está em aberto, pressupõe o futuro. Tanto assim que já tenho pronto um novo livro de poemas, A poesia está morta mas eu juro que não fui eu, outro em andamento, ainda sem título definitivo (talvez Prosas ou Com a data vencida), além de duas coletâneas de ensaios em fase final de organização: Sob o signo de Judas, reflexão em torno da tradução e seus problemas, e Ficção, ficções, estudos de teoria e prática ficcional. Isso sem falar nas traduções: concluo atualmente a versão, do grego antigo, de uma seleção de epigramas de Paladas de Alexandria, o último dos poetas pagãos (século V a. C.), e nas horas vagas eu vou trabalhando sem pressa numa antologia de poesia erótica, com textos traduzidos do grego antigo e moderno, do latim, do francês, do italiano, do espanhol, do inglês e do alemão.
FM | Como te sentes em relação a temas, acaso perseguido por algum, em particular, que ainda não tenhas abordado adequadamente?
JPP | Eu não diria que me sinto perseguido por temas definidos ou imediatamente definíveis. O que me persegue o tempo todo é uma nébula de poemas em embrião. Uns se precisam e se desenvolvem pouco depois de aflorar a primeira ideia; outros ficam em estado larvar nos desvãos da memória até o dia em que escolhem vir à luz; outros, por fim, abortam ingloriamente antes de chegar a ela. Ao que me lembre, só nas Novas cartas chilenas (1954) e em Calendário perplexo (1983) foi que desenvolvi sistematicamente um tema. Naquelas revi criticamente alguns dos momentos decisivos da nossa história política e social; neste, celebrei epigramaticamente certas datas ou efemérides tradicionais. Nos demais livros, mais que por um tema defendido, fui solicitado por instigações variadas em diferentes momentos e níveis existenciais. Ultimamente têm-me ocorrido motivos de fundo autobiográfico. Digo “ocorrido” porque não os busquei deliberadamente. Ainda que vivências pessoais subjazam à maioria dos poemas que escrevi, raras vezes eles as tematizam. Agora as coisas começam a mudar. Para e até onde não sei. Ainda.
FM | Borges nos diz que “cada escritor cria seus precursores”. Quais acreditas que sejam os teus?
JPP | Citei alguns deles num dos poemas de meu próximo livro. O poema se intitula “Acima de qualquer suspeita” e diz: “A poesia está morta / mas juro que não fui eu / eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la / imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres carlos drummond de andrade manuel bandeira murilo mendes vladimir maiakóvski joão cabral de melo neto paul éluard oswald de andrade guillaume apollinaire sosígenes costa bertold brecht augusto de campos / não adiantou nada / em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada de ferro araraquarense / porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece nunca ter existido / nem eu”.
FM | Em Mallarmé: “todo método é uma ficção”. Teus ensaios – aqui eu refiro os incluídos em Gregos & baianos (1985) –, podem ser inscritos no curso da ficção? Consideras a crítica uma atividade tão imaginária como ficção e poesia?
JPP | Entendo o ensaísmo e a tradução literários como uma criação de segundo grau. A de primeiro grau é evidentemente a obra que se traduzia ou as obras acerca das quais se escreve. Tanto quanto a tradução, o ensaio de interpretação é um ato hermenêutico de penetração no íntimo da obra alheia e de redicção dela (se cabe o termo). A tradução a rediz num outro idioma, a interpretação crítica numa outra linguagem, numa metalinguagem. O inegável, porém, é que sem imaginação não se consegue penetrar congenialmente a intimidade das obras de imaginação. A congenialidade entre o texto original, sua tradução em outras línguas e suas interpretações críticas alcança fazer destas criações de segundo grau um prolongamento daquele. Já se disse que A divina comédia não é apenas o poema de Dante mas a soma dele com as grandes traduções e as grandes interpretações que suscitou e continua a suscitar. Embora, à diferença da criação literária propriamente dita, o ensaio seja mais obra da razão que da intuição, nele o imaginativo também está presente sob a forma de metáforas críticas. Para citar dois exemplos de Gregos & baianos: recorri ao mito de Narciso para interpretar as Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e ao mito de Frankenstein para iluminar criticamente o poema “The tyger”, de William Blake.
FM | Não há na história da poesia brasileira uma tradição metafórica (basta ver com que pânico horrendo a maioria de nossos poetas baniu de suas veias o sangue surrealista – o que provavelmente teria a ver também com o sepultamento de uma possível tradição barroca). A que atribuir tal fato? Acaso teria algo a ver com a observação de William Carlos Williams de que a metáfora dissolve “a individualidade das coisas comparadas”? Tal aspecto, por sinal, cairia como luva em nossa atormentada obsessão pela realidade (haja vista a praga da chamada poesia social).
JPP | Tudo depende do que se entenda por metáfora. Jakobson mostrou que, mesmo naqueles poemas de que está aparentemente ausente, ela comparece sob a forma de figuras de gramática, que não deixam de ser procedimentos metafóricos de transladação e intensificação de sentido. O que você chama de “atormentada obsessão da realidade” da poesia brasileira, eu a vejo antes como um traço positivo: a ela devemos momentos epifânicos como a poesia de Bandeira, de Drummond e de João Cabral. A propósito do metafórico na poesia de William Carlos Williams, não se esqueça que a sua obsessão com a individualidade das coisas da realidade é que dá inusitada força às suas metáforas. No estudo crítico que precede minhas tradução dos Poemas dele, tive ocasião de dizer: “A expressividade de uma metáfora é tanto maior quanto maior for o grau de individuação e dissimilaridade das coisas entre si comparadas”.
Quanto ao “pânico” dos nossos poetas com o “sangue surrealista” e o consequente “sepultamento de uma possível tradição barroca”, seriam uma reação (e como tal positiva) àquele “instintivismo bêbado e contraditório” que Mário de Andrade deplorou na tradição brasileira e àquele perigoso comprazimento na exuberância verbal que, de Rocha Pita a Coelho Neto, produziu tanta má literatura entre nós. Exceções como Gregório de Matos e Guimarães Rosa só servem para confirmar o comum das coisas. Igualmente o confirma o minguado contributo surrealizante de Murilo Mendes, de Jorge de Lima e do João Cabral de Pedra do sono.
FM | Sendo Paterson o mais importante livro de William Carlos Williams, qual o motivo, nesta antologia por ti organizada para a Companhia das Letras (Poemas, 1987), da inclusão tão somente de um pequeno trecho inicial da referida obra?
JPP | Não penso que Paterson seja o livro mais importante de Williams: é, sim, o mais ambicioso. Como se trata de um poema muito comprido, seria preciso dar longos excertos dele para que o leitor pudesse ter uma ideia aproximada do que se trata. Todavia, para fazer isso, eu teria de deixar de lado boa parte dos poemas mais breves. Ora, sacrificar estes, cada um deles uma obra acabada e integral, por farrapos daquele me parecia a pior das opções. Donde eu a ter descartado.
FM | Consideras tuas traduções diretamente do grego uma espécie de palimpsesto?
JPP | Sim, na medida em que foram bem sucedidos. A tradução bem sucedida de um poema deve permitir ao leitor entrever, por sob o traduzido, o fantasma do original, assim como por sob a reescrita de um pergaminho se pode recuperar o sulco palimpséstico.
FM | No prefácio da antologia Poesia moderna da Grécia (1986), fazes referência à existência de uma meta que deveria alcançar com a apresentação desta poesia ao (cada vez mais) eventual leitor brasileiro. Que meta era esta, e em que sentido a terias atingido?
JPP | A minha meta era mostrar que o gênio criativo da Grécia, ao contrário do que comumente se acredita entre nós, não morreu com a sua Antiguidade clássica, mas continua vivo até hoje e que os poetas gregos modernos não desmerecem dos antigos. A surpresa que Poesia moderna da Grécia causou a leitores que dela nada sabiam convenceu-me de que atingi, embora em modesta escala, o objetivo a que me propus desde o início. Essa antologia me custou 5 anos de trabalho mais ou menos sistemático. Para levá-lo a cabo, não contei com nenhuma ajuda oficial ou institucional. Raspando até o fundo o cofre da poupança, tive de fazer três viagens à Grécia em busca de material bibliográfico, já que no Brasil não há uma só livraria que importe livros de lá. Mas o meu interesse pela poesia neo-helênica não se esgotou após a publicação da antologia. Continuo a traduzi-la regularmente, sobretudo a sua produção mais recente, com vistas a uma nova coletânea, Poetas gregos contemporâneos.
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3. Tendem à imprecisão as palavras de um escritor que possam ser ditas por ocasião da morte de um de seus pares. Naturalmente estão cortadas por alguns excessos, de zelo ou sentimentais. Há tanto casos de elogios estupendos quanto de desforra incontida. O fato é que poucas são aquelas que devem ser levadas em conta. A morte recente de José Paulo Paes me leva a pensar nas inúmeras circunstâncias que me ligaram a ele. Decerto que há aquelas de talho anedótico, porém interessa-me aqui a referência aos registros textuais. O primeiro deles deu-se há exatos dez anos, quando o suplemento DN Cultura, do Diário do Nordeste, publicou uma entrevista que lhe fiz. Desnecessário dizer que ali conversamos sobre o tripé em que se sustenta sua atividade literária: a poesia, o ensaio e a tradução.
Em algumas outras ocasiões escrevi sobre livros seus de tradução: Gaveta de tradutor – com o qual obteve o prêmio Paulo Rónai de tradução –, Ascese, notável livro de Nikos Kazantzákis, Poemas da carne e do exílio, de Ovídio, e a antologia Quinze poetas dinamarqueses – todas estas publicações datam de 1997 e justificam-se pelo fato de que José Paulo produzia de forma incessante e sem perder, o que importa destacar, aquele sentido imaginativo que, segundo ele próprio, permite ao tradutor “penetrar congenialmente a intimidade” dos textos que se aventura a traduzir.
Em uma das ocasiões acima, mencionei duas características que considero essenciais em torno deste seu trabalho inesgotável: “a multiplicidade de autores que busca trazer para nós – digo multiplicidade no sentido de uma abrangência estética e não do mero referencial quantitativo – e a isenção absoluta de práticas algo comuns entre tradutores de poesia, seja a criminosa desfiguração do original em busca da adequação a seus interesses estéticos ou mesmo o traiçoeiro equívoco de procurar melhorá-lo”. Reitero a sobriedade e o primor técnico com que José Paulo Paes sempre tratou esta sua atividade, cujo ápice situa-se na monumental antologia Poesia moderna da Grécia – e as demais traduções em torno da tradição helênica –, com a qual acabou sendo agraciado com a Cruz da Ordem de Honra da Grécia, em 1989.
Um último registro de nossos encontros literários foi justamente por ocasião da recente publicação de meu Escritura Conquistada (Diálogos com Poetas Latino-americanos), quando então José Paulo Paes escreveu substancial resenha sobre o mesmo para o Jornal da Tarde, em São Paulo. Completa-se assim nosso diálogo no decorrer de dez anos, acrescentando uma brevíssima correspondência e a larga colheita que obtive da leitura de seus livros, sobretudo as traduções e os ensaios. Nesta última área é interessante observar a reunião de textos que se publicou no ano passado com o sugestivo título de Os perigos da poesia e outros ensaios.
Ciente da importância de se veicular na imprensa brasileira a obra de nossos autores, José Paulo Paes jamais se furtou a fazê-lo, dialogando com a escrita de estreantes e veteranos, quando da publicação de seus livros. Tal atitude tanto possui de oportuna em termos difusores quanto de notável ao propiciar um diálogo entre leitor, crítico e o objeto de sua crítica. Assim é que o vemos destacar o “cosmopolitismo turístico ou nacionalismo pitoresco na poesia do Oswald e do Mário da fase primitivista”, o alheamento estético dos poetas marginais dos anos 1970 que “acabou por fragilizar a produção deles, tornando-a tão circunstancial e efêmera, as mais das vezes”, e mesmo a avaliação, em torno da poética de Cecília Meireles, de que esta se encontra “mais próxima da seriedade e da nobreza simbolistas que do plebeísmo paródico de 22”.
Relaciono acima fragmentos de avaliações críticas de José Paulo Paes que estão carregados de vibrantes sugestões para um diálogo desprovido de toda e qualquer forma de preconceito. São naturalmente passíveis de concordâncias e discordâncias. Paes soube permitir isto em seus textos e mesmo em sua vida: compartilhar as opiniões. Sabia que importava o diálogo acima de tudo, tanto que escreveu para a imprensa acerca de uma multiplicidade de talentos literários, sempre tecendo alguma fina observação da obra em questão. Neste mister, Ivan Junqueira considera sua “astúcia exegética” do mesmo porte da que encontramos nos “ensaios fundadores de Augusto Meyer e Othon Moacyr Garcia”.
Não caberá dizer aqui os indefectíveis lugares-comuns do tipo “a morte o pegou cheio de vida” ou “os poetas morremos todos os dias”. A morte, afinal, é comum a todos nós. Importa sempre o teor de seu severo inventário: a dor e a obra, mesmo sabendo que uma jamais compensará a outra. Aliás, possuem outras nobres funções, ambas. A respeito de uma delas, desnecessário dizer qual, José Paulo Paes nos deixa um sólido contributo.
>>> POEMAS <<<
NOTURNO
O apito do trem perfura a noite,
As paredes do quarto se encolhem.
O mundo fica mais vasto.
Tantos livros para ler
tantas ruas por andar
tantas mulheres a possuir…
Quando chega a madrugada
o adolescente adormece por fim
certo de que o dia vai nascer especialmente para ele.
UM RETRATO
Eu mal o conheci
quando era vivo.
Mas o que sabe
um homem de outro homem?
Houve sempre entre nós certa distância,
um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
até esse retrato na parede
de onde ele me olha o tempo todo. Para quê?
Não são muitas as lembranças
que dele guardo: a aspereza
da barba no seu rosto quando eu o beijava
ao chegar para as férias;
o cheiro de tabaco em suas roupas;
o perfil mais duro do queixo
quando estava preocupado;
o riso reprimido
até soltar-se (alívio!)
na risada.
Falava pouco comigo.
Estava sempre
noutra parte: ou trabalhando
ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo
(tantas vezes!) de viagem.
Só quando adoeceu e o fui buscar
em casa alheia
e o trouxe para a minha casa (que infinitos
os cuidados de Dora com ele!)
estivemos juntos por mais tempo.
Mesmo então dele eu só conheci
a luta pertinaz
contra a dor, o desconforto,
a inutilidade forçada, os negaceios
da morte já bem próxima.
Até o dia em que tive de ajudar
a descer-lhe o caixão à sepultura.
Aí então eu o soube mais que ausência.
Senti com minhas próprias mãos o peso
do seu corpo, que era o peso
imenso do mundo.
Então o conheci. E conheci-me.
Ergo os olhos para ele na parede.
Sei agora, pai,
o que é estar vivo.
ESCOLHA DE TÚMULO
Mais bien je veux qu’un arbre
m’ombrage au lieu d’un marbre
Ronsard
Onde os cavalos do sono
batem cascos matinais.
Onde o mundo se entreabre
em casa, pomar e galo.
Onde ao espelho duplicam-se
as anêmonas do pranto.
Onde um lúcido menino
propõe uma nova infância.
Ali repousa o poeta.
Ali um voo termina,
outro voo se inicia.
[Arquivo Agulha Revista de Cultura]