Curadoria e tradução de Floriano Martins
A poesia não tem sido (nem pode ser) algo concreto, algo facilmente reconhecível por todos e em qualquer circunstância. Cada época – cada poeta – propôs sua maneira distinta de entender o poético e de praticá-lo. Houve inclusive poetas cujo tom de voz (e a própria estrutura que assumiram várias de suas peças) se diversificou com o tempo. Em poesia não há fórmulas de aplicação assegurada e é vã toda poética. O prudente seria reconhecer que carece de denominador comum, que o próprio da poesia é essa ausência de denominador. Os únicos autores que conseguem ser fiéis a teorias e preceitos são os que repetem uma receita (com ou sem variantes) entrincheirados detrás de pilhas de retórica – quando não detrás de consignas vetustas do Agit-Prop.
Pelo que corresponde ao poema mesmo (a um dos muitos ou poucos que lemos), em ocasiões nos sentiremos tocados, nos invadirá um tipo de pequena revelação – incerta, mas prazerosa. Contudo, também em tais casos não conseguiremos adjudicar significação precisa ao efeito experimentado. Isto é tão difícil como explicar as motivações de nossas paixões (por uma pessoa, um lugar, uma obra de arte). Com os poemas ocorre o mesmo que com nossos amores (que juramos eternos): é possível que apreciações e preferências provem ser duradouras; não é de se excluir, porém o contrário.
Lemos com prazer e admiração ensaios magistrais ou simples anotações breves sobre a poesia – em geral – ou sobre alguns poemas – em particular. Nos dizem, contudo, mais sobre o autor do comentário (sua sensibilidade, suas predileções íntimas, sua erudição, sua sabedoria) do que sobre a poesia ou os poemas tratados. Para mim uma análise crítica pode atribuir-se caráter científico somente quando se limita ao exame de giros de frase mais usados – a sutilezas fonéticas, a associações literárias ou outras fáceis de captar, a resíduos alheios não assimilados ou a outros elementos igualmente verificáveis.
A crítica impressionista pode – por sua parte – ser também meritória, porém poucas vezes acrescenta algo ao poema. Em todo caso, sua interpretação subjetiva – por mais que desperte a curiosidade e induza à leitura – não nos iluminará acerca do insólito e do atraente do poema, daquilo que o torna único.
Tornou-se lugar comum (quase premissa aceita sem discussão) declarar que o dito no poema (entenda-se poema autêntico mesmo que haja sempre dúvidas sobre tal autenticidade) não é expressa de outra forma, que o poema é intangível a toda decifração ou tradição (menos ainda à desapiedada autópsia em vida).
[…]
Pelo que respeita às correções dos poemas, é normal que se recorra a elas quando se evidenciam defeitos de sintonia e interferência. Sua abundância ou ausência total dependerá de cada caso. O mecanismo que guia o estabelecimento do texto definitivo de um poema é tão sigiloso como todo o processo de sua criação. Suponho que não haverá inconveniente maior em aceitar – em quem capta o poema – a existência de um ouvido “outro” (não o seu ordinário) cujo papel é referendar o texto resultante, quando o encontre coincidente com a mensagem presumida, ou rejeitá-lo quando note tergiversação ou fraude. Sua sentença será – nessa instância, a única legítima – sem apelação.
EMILIO ADOLFO WESTPHALEN // “Emilio Adolfo Westphalen: el atisbo del misterio”, entrevista concedida a Nedda G. de Anhalt. Suplemento de Unomásuno. México. Novembro de 1990.
AMARRADO À SUA SOMBRA…
Amarrado à sua sombra o bosque
Abria caminho às pisadas ardentes
Vários faunos acarretavam os arroios
Nos cornos da luz uma flauta tocava
A ninfa na ladeira descansava o braço
Estios de graças florais
Teciam e desteciam as brisas
Nas têmporas da bela adormecida
Como se dois meninos jogassem com ele
Tantas voltas dava o mundo
De umas mãos a outras era visto frequentado
De vermes com chapéus de aba e dignidade
Os rios não se atreviam
A tocar a borda das cidades
Eram cantadas de longe e em voz baixa
Para não quebrar a calma das muralhas
Ou turvar no recinto
A mais clara voz dos trovadores
Ali aparecia a bela adormecida coberta de sóis
Suas pisadas ardentes tanto mediam o chão como o céu
Uma sombra de oliveiras sob os olhos
Murmúrios de água para as mãos
Nos mares sempre flutuavam os olhos
E este ramo de louro de horizonte a horizonte
Pegado dos sonhos erguido do céu
Não viste um sorriso fiar uma paisagem
A jovem se rir com o céu jorrando de suas mãos
Seus cílios me davam mais sombra
Que um arvoredo sobre o triplo peso
De folhas ventos e céus
Não viste se abrir uma madrugada
Sobre neves como uma fronte
Iluminando o sol e as estrelas
Uma mão mais clara que a água e com seu rumor
Assim me atravessaram de manhã à noite
As músicas geladas os dedos de aço
Com novas bordas seu rosto não descansava
Seja sobre a dália ou o monte de neve
Seja na brisa ou no próprio coração do inverno
E na outra mão o cetro do estio
E no outro pé o sol do outono
Os olhares carregados de esplendores de oceanos ensolarados
Cruzando o Mediterrâneo os golfinhos se empinavam
As tartarugas incrustadas nos ares
A jovem ainda não despertava
A flor enchia os espaços
EU TE SEGUI…
Eu te segui como nos perseguem os dias
Com a segurança de ir os deixando no caminho
De algum dia repartir seus ramos
Por uma manhã ensolarada de poros abertos
Balançando-se de corpo a corpo
Eu te segui como às vezes perdemos os pés
Para que uma nova aurora acenda nossos lábios
E então nada possa ser negado
E então tudo seja um mundo pequeno rolando as escadarias
E então tudo seja uma flor dobrando-se sobre o sangue
E os remos afundando mais na aragem
Para deter o dia e não deixar passar
Eu te segui como se esquecem os anos
Quando a margem muda de aspecto a cada golpe de vento
E o mar sobe mais alto que o horizonte
Para não me deixar passar
Eu te segui me escondendo atrás dos bosques e das cidades
Levando o coração secreto e o talismã seguro
Caminhando sobre cada noite com renascidos ramos
Oferecendo-me a cada rajada como a flor se estende na onda
Ou as cabeleiras abrandam suas marés
Meus braços já fecharam as muralhas
E os ramos inclinados para te impedir a passagem
Corça frágil teme a terra
Teme o ruído de teus passos sobre meu peito
Os cercos já estão enlaçados
Tua fronte há de cair sob o peso de minha ânsia
Teus olhos se fecharão sobre os meus
E tua doçura brotará como cornos novos
E tua bondade se estenderá como a sombra que me rodeia
Deixei rodar minha cabeça
Deixei cair meu coração
Já nada me resta para estar mais seguro de te alcançar
Porque te apressas e tremes como a noite
A outra margem acaso não alcançarei
Já não tenho mãos que se peguem
Do que está acordado para perecer
Nem pés que pesem sobre tanto esquecimento
De ossos mortos e flores mortas
A outra margem acaso não alcançarei
Se já lemos a última folha
E a música começou a trançar a luz em que hás de cair
E os rios te fecham o caminho
E as flores te chamam com a minha voz
Rosa grande já é hora de te deter
O estio soa como um degelo nos corações
E as alvoradas tremem como as árvores ao despertar
As saídas estão guardadas
Rosa grande, não hás de cair?
CÉSAR MORO
Por um campo de migalha de pão se alonga descomedidamente um ponteiro de relógio
Alternadamente nele se iluminam ou se apagam uns olhos de caranguejo ou serpente
Contra a luz emerge uma fumaceira de cílios calados
E dispostos como uma torre que simulasse uma mulher ao despir-se
Outros animais mais familiares como o hipopótamo ou o elefante
Encontram seu caminho entre o osso e a carne
Uma rede de olhos de medusa impede o trânsito
Pelo areal que se estende como uma mão abandonada
A cada passo uma bola de marfim diz se o ar é verde ou negro
Se os olhos pesam iguais em uma balança cruzada de cabelos
E encerrada em um aquário instalado no alto de uma montanha
Por vezes estagnando e por outras arremessando como uma catapulta
Cadáveres rosados ou negros ou verdes de crianças aos oito extremos
Cadáveres pintados como se fossem zebras ou leopardos
E que ao cair se abrem tão belamente como uma lixeira
Estendida no meio de um pátio de mármore rosado
Atrai os escorpiões e as serpentes de ar
Que zumbem como um moinho dedicado ao amor
À parte um homem de metal chora virado para uma parede
Unicamente visível ao explodir cada lágrima