Curadoria e tradução de Floriano Martins
O poeta é, como Vallejo ou Garcilaso, um exilado. Porém os exilados de fora puderam dizer sua palavra sem travas, a ela se agarraram e sobre ela fundaram sua identidade, e parte da identidade do país. O exilado de dentro, oculto pelas clínicas, a boêmia ou o sarcasmo, tem problemas para expressar uma visão interior, para revelar-se. Sua forma se converte em um gradeado através do qual deve passar o testemunho de uma experiência pessoal sem adornos. Assim, tudo é ocultamento, tudo revelação involuntária e, ao mesmo tempo, inevitável. Que revela Adán por entre os resquícios de sua complexidade? Basicamente que se sente muito mal, que seu pensamento o conduz ao desespero, que sua experiência o conduz à tristeza, que sua busca de tábuas de salvação naufraga entre solavancos de inteligência. Estirando a imagem se poderia pensar em um Garcilaso sem memórias andinas, em um Vallejo sem visões da solidariedade humana. Adán é um solitário diante do Peru, e sua inteligência não lhe permite o desespero romântico, mas sim lhe impõe a reflexão cotidiana em que desemboca sua obra com os sonetos finais. Posteriormente seu tema fixo é o da identidade resolvida em ambiguidade. Westphalen viu com clareza uma “proclividade em duplas e triplas identificações. Não é tanto que o filho de família patrícia simule preservar o nome próprio da contaminação e desdouro da literatura, mas sim que acolha, ao contrário, a complacência de abrir outra possibilidade de fuga, de outra maneira de escapar aos demais e, em última instância, de si mesmo”. Passado o tempo a ambiguidade em Adán é elevada à categoria de tema central, de tópico gerador da própria retórica, de válvula inevitável para os processos de conhecimento do poeta. Dali nasce um existencialismo avant la lettre, no qual questões como: o que é?, quem são os demais?, como é a realidade?, chegam finalmente a ser confundidas com uma única pergunta: quem sou? Porém, para chegar à última pergunta e aos esforços por respondê-la, Adán desenvolve uma complexa jornada. O Adán maduro é, em carne própria, um poeta maior de temas centrais à condição humana. Contudo, não suporta um tratamento direto destes problemas (que provavelmente o teria levado à filosofia) e recorre ao sistema reflexivo dos símbolos, em torno dos quais tece sua argumentação. Nos momentos em que estes símbolos perdem seu lugar central na elaboração adaniana se dá a parte mais importante de sua obra, tenta-me dizer que, na realidade, ali começa sua obra: quando começa a aparecer La mano desasida o poeta já tem 53 anos, e quase 60 quando começam a ser publicados os sonetos de seu diário. Inclusive em termos de sua extensão, a obra de juventude de Adán é um simples prólogo de seus trabalhos mais importantes. À diferença da norma peruana, sua obra é fruto dos anos. E é possivelmente também a meditação poética mais avançada, inclusive em termos cronológicos, da poesia neste país. Também é óbvia, em seu caso, a vantagem de haver perdurado no ofício com a cabeça desembaraçada. Lhe permitiu manter a tensão intelectual de um drama humano, que em seu caso não é um drama do alheamento, mas sim da lucidez. Os anos (neste outubro completa 75) lhe deram a força e a clareza para consegui-lo.
MIRKO LAUER / Trecho final de Los exilios interiores (Una introducción a Martín Adán). Lima. 18/03/83.
LEITO
No grande céu, cheio de silêncio
Coppee
Estou triste com a beleza,
Deus cego que faz a rosa,
Com mão que não repousa
E de humano que não beija.
Onde a rosa começa,
Curso na própria substância,
Corro: ela em mim se abisma:
Eu nela: entramos em pasmo
De Deus que caiu no orgasmo
E o faz apenas por cisma.
HOTEL
Em um romântico sabor de laranja de janeiro,
em uma doçura de valsa ainda ácida,
no cesto de vime do verão frutífero,
em ervas de artifícios, em penugens de dia…
– Grande hotel na areia. – Salmões sem dinheiro
exigem sua bebida de alegria nos bares.
Apressadamente, registro da estrela.
Vênus, uma aventureira, se entrega à polícia.
– O perigo venéreo da senhora estrela
em adornos falsos, em quimono, na cama…
– Dois quepes a seguram pelas mãos, ruidosamente.
Colheres de chumbo impedem a luz perfeita,
A Suzanne ao meu lado fica azul, abjeta,
e os barcos de pesca ancoram na minha calda.
A PEDRA ABSOLUTA
(fragmento)
A poesia está fora:
A poesia é uma quimera
Que ouve a si mesma e a deus.
A poesia não diz nada:
A poesia é silenciosa,
Ouvindo a própria voz.
Como vai a vida,
Ou como crescem os pelos dos cadáveres,
Aí estás, pedra esquiva, pedra iludida,
Entre as coisas reais.
Eternidade irregular,
Firmeza sem idade,
E um cordeiro de baixo que bebe a água,
E os céus infinitos e famintos…
Eu vi tudo o que é humano em ti,
Minha besta distante, abre tuas mandíbulas…
Todo o ato realizado,
E irritante…
Para quando ainda estiveres morto,
Eu mesmo, ainda és a Morte.
És eu mesmo alguma vez
Entre os tempos,
Entre as coisas,
Entre aqueles que…
Porém és, pedra incrustada,
Quem és?
Por que estou indo sozinho?
Quem sou eu entre os seres?
Até que horas, para que futuro
Eu irei com meus pés e meu desdém
E com minhas pedras escondidas,
Eu mesmo, nuvem de mim mesmo, celestial?
O Desespero é uma praia,
Saibas disso, pedra alta e escondida.
O desespero está contigo
Como a tua pele ou o mel da abelha.
O Desespero é um céu
Ou uma mulher, uma pedra ou uma hera.
O Desespero não tem outro
Limite que a tua invocação às cegas.
O Desespero está à tua
Frente agora: agora é novo,
Com seus habituais monstros invisíveis
E os seus abismos lá fora;
Com seus demônios verdes abaixo,
E o seu cume, deserto.
Entre ondas de rocha, eu vim a teu encontro,
Morto e vivo, com uma mortalha de grama.
E as necessidades e as luzes,
Aquelas que não lembras;
E as liberdades muradas
Nas ervas,
Que não conseguem sair em nenhum espaço,
Seu absurdo finito de almas circunflexas;
E o ser que ainda não existirá;
E o nunca, incorporado, de antes e depois, que acede;
E os pontos e as vírgulas,
E os céus e as águas e as pedras…
Sim, tu és tu mesmo,
Eu algum, eu qualquer…