3 Poemas de Severo Sarduy (Cuba, 1937-1993)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Há um prazer em retardar a informação, em não dizer as coisas de modo linear e plano, em ir traçando com as palavras volutas azuis, como as da fumaça de um charuto havano. Com as palavras, à medida que vão retendo o que se quer dizer, e isto só para obter mais – mais é a palavra-chave do barroco – prazer, acho que vou envolvendo o leitor, vou-me apossando de seu espaço, como uma gigantesca serpente amazônica com o seu fôlego.

[…]
Antes de mais nada, para seu prazer, mas também, seguindo os preceitos barrocos de ensinar e convencer, para desse modo tirá-lo de suas entranhas mentais, para abrir sua consciência a uma nova sensualidade e a uma nova percepção.

[…]
Um dos modelos de minha escritura é um quadro cubano, La jungla, de Wifredo Lam, que está no Museu de Arte Moderna, de Nova Iorque. Um mundo de curvas, cipós e redes, de nádegas fortes, de frutas e falos. Um mundo de máscaras, de enormes folhas transpirantes, verdes e brancas. Tratar-se-ia, mas é uma pretensão, de recriar esse mundo ao nível da linguagem, de procurar na linguagem cubana essas sonoridades, essa constante sensualidade. Mas há algo mais que se passa com a linguagem, muito menos claro para mim, que é como a criação de um espaço bem preciso, um espaço de prazer, de descanso, de esquecimento e de gozo: é o espaço desses bordéis colombianos que outro mestre, Fernando Botero, pintou por volta dos anos cinquenta. Desses quadros, há um particularmente eufórico, onde reina uma desordem – o chão está cheio de guimbas – e uma voluptuosidade sem limites. O quadro se chama La casa de Raquel Vega. De modo que a escritura gira em torno de imagens pintadas e por sua vez pinta com palavras. Eu acho que não sou verdadeiramente um escritor, mas muito mais um pintor que em vez de utilizar óleo e tela, pincéis e espátulas, utiliza palavras. Entre os modelos da escritura não posso esquecer-me, sob o ponto de vista da saturação e do barroco empetecado, dessa joia total da escritura que é Santa María Tonantzintla, em Puebla, no México. Mas, para terminar: minha relação com as palavras é o prazer. Roland Barthes, em um ensaio sobre meus livros, falou desse prazer desenfreado: mais – escreveu – mais e mais, até conseguir uma textura que ele comparou ao erotismo. Linguagem, prazer da linguagem, erotismo, cozinha e pintura. Que outro paraíso pode existir?

[…]
Com respeito à Índia e ao budismo, [Octavio] Paz foi o meu instrutor, o meu condutor. Acho que é entre nós, na América, um dos poucos que se interessou pelo Oriente e de um modo puramente próximo, isto é, um Oriente visto lá de dentro, sem nenhum resíduo da neurose ocidental que caracteriza com frequência as aproximações que se fazem das religiões orientais. Mas há mais, e dali veja por exemplo: ao contrário do que sempre se fez, inverteu os termos e utilizou critérios orientais para estudar, para ler a arte ocidental, discutindo sobre Duchamp, por exemplo, que é um dos grandes construtores e um dos grandes enigmas deste século, uma luz completamente nova.

SEVERO SARDUY “Sobre un silencio barroco”, entrevista concedida a Paulo Octaviano Terra. Mariel Magazine # 3. Miami, março de 1986.


KETJAK

I

Contra a tua pele lisa recostada. Tu contra outro. De três em três: círculos concêntricos.
Gritando sob a árvore gigante separando cipós.
Olhando para nós. Um sobre os outros, deitados: serpente que ondula.
Escama por escama, brilhamos na noite.
Toca-me as mãos. Peito contra peito. Eu cheiro teu suor. Tua flor vermelha na orelha.
Saia de batik. Girando até ficarmos tontos.
Até que os deuses venham se sentar em tronos íngremes,
ao lado das oferendas de arroz e flores,
entre minúsculos cestos de vime, longe do mar.

II

Eu te ensino a dançar. Colo teu corpo ao meu. A meu lado.
Modelo teus braços e dedos. Os dedos dos pés.
Siga-me. Pele contra pele. Toca teu cabelo negro.
Os olhos à direita. À esquerda. Sorri.
Dobra tuas costas. Apruma-te. Ergue as sobrancelhas. Olha-me: sou um tigre.
Sopro teu rosto. Retiro os ganchos.
Eu vou pular em ti. Teme. Devora. Pelas árvores altas
um esquilo foge.

III

Pirâmides de cascavéis. Tabletes de sândalo: facas.
Com eles rasparemos a pele dos mortos, coberta de varíolas.
Abriremos, cortaremos víscera por víscera.
Que te lixem os dentes.
Toquem as marimbas.
Que te cubram os olhos
com moedas chinesas.

IV

Unhas de tatu. Dentes de tigre.
Três sinais de arroz na testa.
A dançar: o que vem da montanha é benéfico.
A fugir: o que vem do mar nefasto.

V

Nem como cruzes, pregos, moedas mofadas,
medalhões signos cifrados,
nem como pratos com palavras ou cobre
porém mais apagado e grave, mais rumoroso, menos polido e lúcido,
como unhas de leão ou tigre (marfim/coral pálido)
vértebras de javali ou gnu chifres de rinoceronte
barbatanas de cachalote garras de águia bicos de papagaio
dentes – as raízes montagem de prata –
Chifres de gazela anã cabra indiana andina
pele mórbida da África cauda de leoa: é como soa.


[O RUMOR DAS MÁQUINAS CRESCIA]

O rumor das máquinas crescia
na sala ao lado: já a minha espera
de um adjetivo – ou de teu corpo – não era
mais do que uma tentativa de encurtar o dia.

A noite que chegava e precedia
o vento do deserto, a certeira
luz – ou teus pés nus na esteira –
do pôr do sol, seu tempo suspendia.

Não recordo o amor, mas o desejo;
não a falta de fé, mas sim a esfera –
imagem confrontando seu espelho

com a textura branca, verdadeira
página – ou teu corpo que ainda releio –:
vasto ideograma da primavera.


PALAVRAS DO BUDA EM SARNATH

Não há nada permanente ou veraz,
nem alheio ao dano e à velhice.
O que é no que não é se dissolve,
e na íris tudo aquilo que verás.

O sujeito não é um; e sim uma face
de fragmentos dispersos que por sua vez
– sem origens, textura ou nitidez –
em outros se dividem. Não é falaz

a noção do sujeito: é um matiz
de uma cor que precede toda luz,
o rosto no revés de uma tapeçaria

que aparece um instante à contraluz.
Ou o timbre inesquecível de uma voz.
Porém nunca o encontro dos dois.

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