Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Floriano Martins
São três imagens que entrelacei, não consigo pensá-las de forma independente. Uma é do filme Fitzcarraldo, de Herzog; o navio sendo transportado sobre a terra que fica entre os rios Mishagua e Manu, na Amazônia. Outra é o verso de meu pai, Francisco Madariaga: “Um trem que se afoga na cachoeira das folhas”. E a terceira é uma anedota com ele ocorrida em 30 de outubro de 1995 na fazenda San Cirilo, perto de Caá Catí, Corrientes. Chegamos no meio da manhã, o sol já esquentava nossos corpos. Entramos pela lateral da pista de dança e fomos nos acomodar em algumas mesas. A dança nunca deixou de existir, o chamamé soava ao vivo em todos os momentos. A senhoria estava sentada na porta do quarto, rodeada de pessoas que a atendiam, observando e abençoando tudo estrategicamente localizado, parecia uma mistura de farol e panóptico. Houve uma enorme errata e metros e metros de grades. Tarde da sesta, e até de madrugada, ao baile do chamamé com uma mão, juntavam os tiros para o ar com a outra e gol de sapucai e vinho de todos os lados. A pista era pura poeira, emulava uma festa de demônios e bruxas na clareira da montanha, e quando eu tinha dez anos entrava na poeira para recolher todas as cápsulas vazias que pudesse. Voltamos na madrugada do outro dia. Eles nos levaram de carro. Lembro-me de acordar de madrugada, deitado no colo do meu velho, com uns barulhos muito altos no teto do carro. Tínhamos sido enterrados numa dessas estradas de areia vermelha da província, onde os cavaleiros nem precisam de ferraduras, e alguns gaúchos muito bêbados a cavalo, com lenços azul-claros e vermelhos, que vinham do mesmo partido, começaram a açoitar nas placas, e a tensão continuou a aumentar, o frio também. Meu pai desceu e começou a falar com eles em guarani, com voz firme, e no meio da neblina acabou pedindo ajuda. De madrugada o carro estava todo amarrado na frente, os gaúchos a cavalo o desenterraram, gritando, reclamando em guarani e com sapucais que se ouviam até o fundo dos estuários.
A origem estética da minha poesia não está no surrealismo, aliás, sempre andei ao lado dos grupos, meio desconfiado, como um bom camponês. Se a encontro na luxuosa fisiografia da zona mais subtropical de Corrientes, essas mesmas imagens americanas foram decisivas para mim. O surrealismo estava mais no nível estético da luta cultural. Com esta citação, a gênese do trabalho do meu velho poderia ser resumida em traços largos.
Embora nunca tenha negado, pelo contrário, a influência do surrealismo (algo semelhante aconteceu com o grupo Poesía Buenos Aires), ao qual agradeceu a ferramenta moderna que lhe deu, as amizades e o acesso (nos anos 1950) a ensaios e traduções de primeira mão da poesia europeia, não se definia como um poeta pertencente àquela vanguarda. Ele marcou o campo e até ficou bravo quando quiseram associá-lo à gauchesca. Não foi surreal, mas… Voltando à ferramenta, gosto de pensar que o surrealismo na América era um aliado da natureza como um todo, acima de qualquer tentativa de rebanho.
É preciso lembrar que o próprio André Bretón quando viaja para a Martinica (ver Martinica, encantador de serpentes, editorial Argonauta, com prólogo de Rodolfo Alonso) e observa a exuberante vegetação, a natureza avassaladora e maravilhosa, junto com as miseráveis consequências sócio-políticas do colonialismo e da escravidão, para depois se deparar com a poesia de Aimé Césaire e da revista Tropiques, afirmou que ali estavam os verdadeiros fundamentos do surrealismo; nesse ambiente natural e social, conjugavam-se a maravilha materializada, a realidade maravilhosa, o sonho lúcido e a marca mais urgente e subversiva contra toda injustiça. Sejam as Antilhas, Argentina, Venezuela, Brasil, Colômbia, México, Peru, entre todos eles? Corrientes! O continente americano tinha, e ainda tem, essas belas e insanas características.
E Corrientes! Estava presente para meu pai o tempo todo – e vice-versa – com seus estuários dourados, lagoas rosadas com tartarugas, o horizonte de palmeiras yatay, os jacarés migrando entre espelhos d’água, as onças do segredo e o caminho Guarani, macacos do mato, capivaras mansas, emas dribladoras que escondem seus ovos nos campos, macacos-guará das ilhas, os rebanhos bravios, as irmãs yararás, e o campesinato bravo e terno, desamparado e festeiro, com seus costumes mestiços híbridos, gauchiafroguaraníes, onde convivem o pagão e o cristão, a Feitiçaria e Deus.
Quando veio morar em Buenos Aires, aos quatorze para quinze anos, tinha tudo isso enfiado no corpo e, graças à poesia, encontrou sua maneira de expressar aquele puro fogo nativo que atira paisagens pelo nariz, como bem como compreender (e compreender nas) desgraças familiares e desenraizar, não sem uma certa nostalgia, mas furiosa e irreprimível, que gira e ruge, e continua.
LUCIO MADARIAGA
AS JAULAS DO SOL
1.
Oh criança da sesta, sentada até no ar de teu ódio!
Luxuoso e verdadeiro rei da fome que incendeia, que destapa, que acomete até no véu natal o arco-íris de calor sua grande serpente, sua grande corrente, sua profissão de ser ajoelhado que se lança porque assim o quer a água, as comarcas subidas às folhas, todo o recolhido pelas palmas, por seu grande alimento, sua corrente de deus, sua arrancada do seio das joias-mulheres.
Oh meu, pedaço de quadrado do mundo, antigamente recebido pelas feras: em nós se ergue e caminha, porém o fogo o acossa – elimina sua velocidade! – até onde assopramos nossas galas de enredos de todas as cores, os calores, os olores e os grandes cílios destruídos de meu tigre no coração de uma província.
2.
Venham ali à casa do diamante aquecido pela água, ao horto onde o homem se recolhe para não cair do globo.
Um dia, um passo, um dia mil passos, um sonho rude, porém com todos os amores permitidos por seu amor.
Nem uma perda.
Não, não, tribo minha de minha raça. Raça de ganho e de luxo, entalhadora, niveladora para o fogo, tambor para os ventos dementes que sabem adorar.
Tinha um caminho de patos e de rezas. Ao fundo, a água; em seguida, os olhos dos homens com suas teias flutuando sobre o sol e aqui a mesma marca de globo entre as pernas e um ódio pelo estéril!
Oh mão de todos os amores, vem a mim, adora-me com tuas filhas. Terníssima do bosque, vem a mim, eu tenho uma bolsa de fogo prendido pelos gatos monteses pegada sobre o lábio,
rebenta-me em teu cheiro!
Cortina de coro e cheiro de olhos de inferno me matando no bosque.
Os amores não têm porta para fugir.
Círculo do sol repleto de pássaros; tranquilidade de Maria, a cadeira de balanço da tarde.
SOCIEDADE AO NATURAL
1.
Nesta tarde em que chove sobre o charco, emerge um espelho úmido e escarlate-dourado diante de minha memória.
É o espelho de olhar dos homens que, absorvido pelas paisagens ainda tropicais, devolve à alma a delicadeza de uma orfandade enfrentada com a honra destes homens e com o ingrato valor de seus olhares.
2.
Na natureza mais insociável e escondida por vezes se refletem, como em um úmido cemitério de semblantes, todos os movimentos das cidades supercivilizadas.
Um cheiro de misérias de Fraudes inferiores apodrece no resplendor do entardecer aquático, bordador de serpentes.
Nas aranhas dos juncos cresce e chora um indigente coração de amor, e um ardor de mulheres estropiadas por uma febre escura submerge no cristal apodrecido do espinhal.
Acima, canta o trovão, embora já derrotado pelo deplorável amor destes homens.
3.
A morte havia largado todo seu sangue no charco.
De imediato senti terror diante do corredor de onde sonhavam os homens bebidos com um álcool amargo e incolor.
E os outros? Os do sol, os cidadãos do movimento e da ordem, o que sabem do sol! Somente seu dia impuro e grosseiro, suas irradiações para mercadores, seus brilhantes exteriores estragados pelo espaço.
4.
As Fraudes vomitavam na morte do dia, e somente as amparavam os pântanos mais negados para o sol.
O trovão havia caído, apodrecendo no único recanto maldito do charco.
Apenas no teto de alguma palmeira a urina espessa de um tigre era recolhida, acendendo uma grande lâmpada que ajudava a maravilhar-se na pradaria.
A CABANA JUNTO AO MAR
A María Irene
Uma jovem que conheci junto ao mar: parecia uma indiana, parecia uma índia descoberta por seus próprios cabelos de olhares.
Parecia a imagem de minha própria camisa selvagem,
a camisa de bondade e de orgulho que se media com o mar.
A jovem que voava com a raça da sombra de minha querida tempestade nos olhos,
a jovem que voou com minha areia até Paris:
onde a envolverá toda sua sombra?
UMA REZA
Reza pela reza das aparições brame pelo bramido dos enterros e volta os olhos para a paisagem metida dentro da carne e do fogo do movimento humano mais real o de passinhos de homens no espaço humilhado por suas elegantes desnutrições, oh país límpido, trocado com gagos e estripados e tosquiados pela planície e assassinos engendrados nas negras copulações entre ramos e entre santos de olheiras quase naturais, exclamo que durmo sobre a areia caída na desvantagem de meus amadurecimentos que soluçam todo o poder do fogo.
Eu, que tenho o alimento mais moderno, estou rastreando o inverno e as podridões destas planícies.
POEIRADA DE JOIAS
A Hugo Gola
Eu disse à Aparição que a poesia podia ser uma canalha,
e ela me respondeu:
– Sou alazã como uma vespa de mar, de monte, ou de teus rodeios crioulos.
Sou teu cavalo.
O poeta é o balseiro que às vezes cruza os homens
da ribeira da morte até a ribeira da vida.
O amor e a morte têm a bravura natal da poesia,
e te esperam em um áspero e delicado capinzal salgado do espaço de areia e água do Campo Real,
onde se penteiam as donzelas da canção solar.
Minha orfandade transparente dança no fogo natal do infinito.
Desapareço com um chapéu de espuma sangrenta, chamado pelas fadas marinhas,
porém retorno navegando em transportes de corais.
Sou uma mulher com cheiro de poeirada de joias das fadas
ardentes e concretas da vida e da morte.
Olho para ti, e com os olhos rasgados de topázio eu tratarei de aclarar que sou a poesia:
uma Festa,
e apesar de todos os extirpadores sou a tradição de todas as cores.