Curadoria e tradução de Floriano Martins
Seduzida pela escola do fôlego do poeta Jaime Sáenz, sua poesia, escrita à luz da insônia, formalmente, segundo suas próprias palavras, buscava atingir a expressividade da imagem poética e a necessidade musical do poema. Porém, o que recebemos é, por um lado, uma necessidade de caminhar, de fazer o poema ser o próprio corpo, uma poética que depois se estende às suas transformações, menina, mulher, mãe, como uma população contemporânea, e a imperativa necessidade de se explicar desde o tempo e o desaparecimento que como a água e os anos não deixam de passar. Mas por trás dessa poesia universal subjaz como uma batida de coração o deslumbramento diante da geografia andina, a descoberta de que o que a cerca, o mundo das coisas, que tomou a transcendência do sagrado, como um segredo, como uma dimensão desconhecida.
Pertencente à geração de poetas bolivianos nascidos na década de 1940, entre os quais podemos citar Eduardo Mitre, Jesús Urzagasti, Fernando Rosso, Pedro Shimose e Nicomedes Suárez, Blanca Wiethüchter deixa um profundo vazio no espaço da poesia boliviana, onde não só o desenvolvimento de sua voz marcará a ausência, mas a referência. Pois bem, todo poeta da minha geração, de alguma forma, esboçava seus textos pensando na crítica e vate, enquanto girava em seu íntimo a frase borgesiana: gostaria que você gostasse.
GARY DAHER
FORA DE TEMPO
Apenas a loucura persistente das chamas
encoraja você a continuar a jornada
lá, onde elas vivem sensíveis
as sombras
e atrasa escurecendo
a linguagem.
1.
Eu contemplo a fogueira
subir como uma montanha
pacientes as chamas
lambem azuis tua madeira
envolvem-no
racham
absorvem
salamandras sensuais se agitam
celebrando a festa da chama.
Sim, é certo,
eu vivo na linha de fogo que me queima
na paragem do instante que sobe
até onde eu desconheço.
Um alegre sopro de palavras me sustenta
alucino na cinza o cume
o devoto, o antigo, o pálido descanso.
2.
Eu me procuro no tempo
corcel a memória
galopa campo adentro.
Uma abóbada de ar é o passado
uma caverna invisível
povoada de claro-escuros
Onde está o fio?
Uns olhos que param de olhar
a casa guardada por pinheiros erguidos.
Lábios que falam palavras
em sua língua antiga.
Nomes de gatos perdidos em um quintal.
Mãos acariciando corpos perdidos.
Eu me procuro no tempo
Onde está a linha imaginária?
Lá reside Yánez, o português
habitando o limiar da aventura.
O mendigo que queria me comprar,
na porta de um medo claro
dissipado.
Lá, a rainha de Sabá
aquele desejo sensível por tules e sedas
e na ilha de If
a vida que nos testa.
E o conde, tão pródigo o conde em meus amores.
Mompracem, apenas um mundo querido,
jamais foi
um exército de vagalumes
ainda me nublam os pensamentos
eu sinto, agora mesmo, a chama
que me força a experimentar o vazio.
Tudo me pertence
nada é meu
Não sou e sou a pedra que une os fios
não de um caminho
mas de um labirinto
ração de sono
de fábula
de ficção perpétua.
Eu me procuro no tempo
uma menina de frente para o mar
– ai do horizonte infinito –
pega a pedra de aflição
sem saber que acendia
a trama
uma invenção de Cassandra
um olhar navegante.
3.
Se na eternidade
não és senão um relâmpago
um peixe perdido na grande noite
uma aranha melancólica no dia minúsculo
qual é a gratidão?
– me indagou uma sombra.
O fogo me inclina – disse
o desejo de viagem e escada
subir ao mar e descer ao sol
para deslumbrar a alma
com razão sexual
e merecer morrer
pelas mãos da morte.
O fogo me inclina – disse
esta paisagem que se eleva
em alta estirpe de neve
escondida de si mesma
na metade do sol
quieta na maré de luz
repousada sob as sombras
não de árvore
de nuvem
não de folha
de céu
no meio da lua,
recolhida
sempre indiferente ao olho comovido
que olha mudo o silêncio que lhe vê.
O Altiplano não é o mar
a palha selvagem não é a espuma
porém me inclina
fervorosa
sua redobrada beleza.
O REPOUSO
entro em minha casa
e fico em seu centro
esperando a temperatura
que silencia ruídos inúteis.
em um andar do silêncio
o mundo começa
com cheiro de fogo
em uma folha
em uma mudança de lençóis
no desejo de fazer coisas
nem sempre precisas.
já não sou a mesma
e meus passos na voz
ressoam mais escuros.
outro é o sol que queima
nos crepúsculos que contemplo
viajante imóvel
penso
quero apenas cuidar do que está vivo
e ter luz
para ele
e minhas meninas.
[TENHO APENAS ESTE CORPO]
(fragmento)
Tenho apenas este corpo. Esses olhos e essa voz.
Essa longa jornada de sono cansada de morrer.
Conservo o temor ao crepúsculo.
Sem que se comunique com ninguém.
Por causa de meu modo de andar
algo descoberto esperando um pouco
mudo de ideia frequentemente.
Comigo não posso viver segura.
Habito um jardim de palavras
que deixaram de me nomear
para nomeá-las. Não me atrevo
pois é preciso ser dito. É um segredo.
Na verdade, somos duas.
Agora devo inventar a outra.