Curadoria e tradução de Floriano Martins
Gary Daher mostra a vida e a morte como experiências inseparáveis e inelutáveis que constituem a nossa essência íntima e a expressa com uma musicalidade assíncrona, lúdica e bela, como a própria passagem da vida.
A poesia espontânea, clássica, romântica, simbólica, surrealista, ultraísta e primitiva livre em suas diferentes manifestações e denominações, exibiu todas as possibilidades do pensamento e sentimento humano, variou em forma e vestimenta, mas no fundo o conteúdo é idêntico. Sempre foram uma manifestação daquilo que está nas profundezas da consciência humana, a busca de sentimentos do inefável e do inexplicável, que só podem ser expressos como poesia ou arte, isto é, daquilo que está profundamente ligado ao mais belo e verdadeiro que os seres humanos podem experimentar, pensar e sentir.
É um erro pensar que a poesia tem menos seguidores hoje do que em outras épocas. Para entendê-lo, basta pensar que a poesia culta e popular sempre existiu. Talvez a diferença seja que hoje ela se refugiou em massa nos cancioneiros populares do mundo, que associados à música se disseminam através dos modernos trovadores, menestréis e compositores. A poesia popular é corrente dessa forma. A outra, aquela que penetra fundo tornou-se mais rara, hermética e sofisticada, devemos conhecer seus códigos e segredos, suas conotações últimas, a explicação que nos dá sobre sua percepção da verdadeira natureza das coisas, por meio de sua linguagem criptografada conhece a nota além do que pode produzir sensibilidade humana. Isso é alta poesia. A este gênero pertence a última parcela poética de Gary Daher, que cresceu como poeta e nos dá a prova de que a verdadeira poesia ainda existe nesta era da cibernética e da eletrônica.
Hoje, esse homem é estudado pela ciência como um fenômeno natural explicável, ou seja, como uma máquina eletromagnética quase perfeita, que responde a estímulos naturais verificáveis. Que estuda a mente e o cérebro como um maquinário previsível que atua por estímulos elétricos em uma confusão de nervos, conexões, fibras e neurônios e que até a lua perdeu seu privilégio de motivo favorito de inspiração dos poetas depois que o homem pôs os pés nele, ainda persiste uma poesia misteriosa e inexplicável, como toda arte, usando os reservatórios de memória localizados no hipotálamo, para fazer conexões inesperadas, de criatividade. Com o que, como afirma o conhecido historiador do cinema e da criatividade humana Edgar Morín, os quadros da percepção prática são fixos, mas igualmente abertos ao fantástico e, reciprocamente, o fantástico tem todas as características da realidade objetiva. Em outras palavras, sempre há uma janela aberta para o irreal, o criativo, que é a atividade transcendente que caracteriza o homem. Sonhos, alucinações, imagens são precisamente o mundo em que se movem os artistas e, principalmente, os poetas. Seu trabalho vai além do que pode ser explicado por uma lógica linear para nos dar uma visão mágica e diferente da vida, da morte e do mundo.
A poesia que Gary Daher nos dá desta vez em Do outro lado do espelho escuro [La Paz: Ed. Acción 1995], é uma poesia elevada que deve ser saboreada como um bom vinho, como um reflexo da nossa realidade existencial, como uma aventura furtiva do espírito (ao estilo de José Lezama Lima), através do misterioso campo do ser que não se esgota no seu suporte material que é o corpo, que sobe através do pensamento e da beleza, a um mundo por nós ignorado, mas sempre sentida como uma nostalgia sombria por Deus.
MARTHA URQUIDI ANAYA
“Desde el otro lado del oscuro espejo, de Gary Daher”. Revista Signo # 44, 1995.
CARTAS QUEIMADAS
Guardadas por ti por tanto tempo
que cheiram apenas a escândalo
uma e outra nos falam de outros dias
de desejos inimagináveis e distantes
e de uvas
e de vinhos derramados nas fezes
aquilo que não se concluiu
de tão proibido.
Queimadas no pátio
elas já não significam nada
somente o carvão dos anos
e tua fruta alguma vez
suposto ninho de ternura
não mais que uma brisa de bandeira de papel negro ao vento.
As fotografias também
encarregadas da ferocidade da terra
se multiplicam na memória
como teu nome alguma vez o fez
em cada respiração.
Não és nada eu nada sou
isto que se passou jamais sucedeu
e a memória sempre traiçoeira
será dia após dia
nossa única praia incerta.
SINAIS
Na profundidade da selva
na pedra que o emaranhado oculta
e os grilos e as inimagináveis aves que dizem inimagináveis trinos
na trilha oculta aberta sob os enormes cacaueiros
nos olhos
nos olhos de teus olhos bem além de teu olhar
onde mora o tigre
e aguarda sua fome
e tremes toda
apenas uma gota orvalho na folha
é o sinal do tempo
quando teu nome e o meu se diluem na boca
e as batidas do coração
e todas as mãos se tornem uma só
e convoquem a alegria da chuva.
PARA AGUARDAR O CANTO DOS PÁSSAROS DERVIXES
A Federico García Lorca
Quando os pássaros dervixes cantarem
a terra irá florescer
e o amado sol encherá nossas casas e nossos pátios.
E a muralha já não será muralha
mas sim irmã, ponte
que cobra o que chega e sempre nos chama.
Porém os pássaros dervixes
permanecem mudos nos campanários
e a terra teima em nos esperar
com seu silêncio de argila amarga
feita de raízes antigas
e vermes famintos.
Alguém me disse que para iluminar
o canto dos pássaros dervixes
é necessário erguer a serpente emplumada
Quetzalcóatl
graças a Tláloc
o deus das águas criadoras
porém aqui ninguém escuta o som do céu
nem o raio feroz que os celtas chamavam Taranis e outros Zeus
surdos como estamos
não tem importância alguma
aguardar o canto dos pássaros dervixes.