Curadoria e tradução de Floriano Martins
O impacto determinante da terra em que se nasceu, essa respiração telúrica ou como queiram chamar vai e vem conosco, e não termina nunca. A paisagem de minha infância é o Golfo de Arauco, e esse povoado mineira carbonífero de Lebú. Madeiras quase palpitantes, grandes tábuas com que se faziam essas casas, essas pontes sobre esses rios e as grandes rochas contra as vagas, tudo isso vejo, registro, cheiro, o mesmo em Pequim ou em Nova Iorque ou em qual estância do planeta por onde eu ande. Porém não sou um telúrico telurizado, isto quer dizer, submetido ao encantamento do natural ou à nostalgia. Não. Estou falando de infância-paraíso-redemoinho do Pacífico Sul, minas de carvão sob o mar. Daí vem, creio, mais do que a velocidade, a vertiginosidade de minha palavra entre o murmúrio e o estalido.
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Ali está a água soando suave, sigilosa, do chuviscado sempre visível, nessa estância e simultânea a grande marulhada branca frente aos penhascos. Estou falando do físico, e mesmo aí anda por dentro o outro murmúrio, o dos matizes, certo adejo em meu jogo imaginário de criança, adejo e balbucio atado a essa gagueira de que falei outras vezes; e aí está também por dentro o tormentoso e cruel das visões que nascem conosco, e que em tanta medida registram essa vertente abrupta mais geológica que geográfica. Por aí, entre esses dois tons, chega a mim a palavra.
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Todos os poetas fomos embalados por esse louco [Quevedo], em todos nós, de Darío até hoje, tem soado e ressoado. Indaga a Darío, porque disse o que disse no prólogo de Prosas profanas (1896). Indaga a Vallejo, a Neruda (Viaje al corazón de Quevedo); indaga a Borges que soube ver nele a trama viva do literário, do “homme de Lettres”, ou indaga a Paz sobre sua relação dialética com o grande mestre. O que quero dizer é que Quevedo funciona certamente mais do que nenhum outro, ainda que seja um barroco; seu labirinto, sua desmesura e seu rigor, sua preocupação com a temporalidade e a EXISTÊNCIA. Naturalmente não desamamos o grande Góngora: rigor, luxo, lucidez. Sobre ele indaga a Lezama Lima.
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Quem não sabe que a prosa e o verso se alimentam entre si, se nutrem com maior ou menor voracidade, uma da outra? Leio [Juan] Rulfo e me dizem que isso é prosa, porém ninguém poderá me negar que a poesia caminha nesse ritmo e nesse despojo, nessa dinâmica e mesmo nesse segredo. Muito se fala de anti-poesia, como se isto não houvesse sido pensado há séculos. São os eternos originalistas que não entraram nunca na revisão destes dois instrumentos, a prosa e o verso. Não quero ir muito longe, porém já Jules Laforgue foi capaz de oferecer uma poesia coloquial, fresca, através da qual cumpriu, sem espavento algum, o exercício dual, que posteriormente tanto apaixonara T. S. Eliot ou o próprio Pound.
GONZALO ROJAS
Fragmentos de Gonzalo Rojas: entre el murmullo y el estallido de la palabra, entrevista concedida a Miguel Ángel Zapata. Revista INTI # 26-27. Rhode Island, 1988.
Antes de tudo: buscar o ritmo singular de cada instância do ser, tocar o pulso das coisas em sua intimidade, abrir-se à respiração de cada elemento. Respirar e seguir respirando, arrebatado pela pulsação das palavras, envolto pela esfera de seus enigmas e significações. Abrir-se ao contágio inigualável das imagens, deixar-se atrair pelas dobras sinuosas de suas visões, a substância turbulenta de seu próprio sentido. Agora podemos falar em poesia, no fulgor e mistério de suas formas. No zumbido do Princípio, segundo nos indica Gonzalo Rojas. A poesia é o grande pulmão do ser e do tempo. A profundíssima claridade de todas as coisas é definida por sua respiração. Tudo é ritmo, luz divina do som que nos toca ao tocarmos a essência de todos os sentidos. A poesia do chileno Gonzalo Rojas (1917) nos remete a este sopro gozoso da origem de todas as coisas, diálogo com o princípio e os enigmas vorazes do Logos. Rojas é uma dessas vozes poéticas forjadas no cume do abismo, incansável guardião das metamorfoses, aqui recorrendo a uma definição de Elias Canetti acerca do poeta.
Como ele próprio nos dirá, pertenço à geração literária chilena de 1938, ressaltando que esse momento se distingue por uma maior consciência crítica da linguagem e certo projeto de diálogo com o mundo talvez mais coerente e lúcido, ainda que sem dúvida menos criador que o dos grandes vulcões da década de vinte: Huidobro, de Rokha, Neruda e – um pouco antes – La Mistral. A estes somaríamos Rosamel del Valle, Humberto Díaz-Casanueva, Enrique Gómez-Correa, seguidos de outros como Ludwig Zeller, Enrique Lihn, Pedro Lastra, Oscar Hahn, que nos dão conta da consubstanciação de uma densa tradição poética.
Vinculados à geração de 38, especificamente, surgiram dois importantes momentos da literatura chilena: os grupos Angurrientos e Mandrágora. O primeiro, em grande parte formado por prosadores, deixou-se influenciar talvez excessivamente pelo marxismo, incorrendo naqueles já conhecidos equívocos de uma panfletização da arte. No entanto, deu à literatura chilena dois grandes autores: Juan Emar – embora seu nome tenha sido já vinculado à geração anterior – e María Luisa Bombal. Quanto ao segundo, Mandrágora, no que pese o registro de um surrealismo ortodoxo – que acabaria levando Rojas a desvincular-se de seus integrantes –, devemos ter em conta que buscaram a todo custo romper com a tradição reinante, procurando fazer com que o heterogêneo irrompesse com toda sua força no presente, querendo assim torcer seu curso em direções inesperadas, como nos lembra o crítico Marcelo Coddou. De qualquer maneira, tanto é válido notar que a geração de 38 produziu um dos momentos de maior polêmica da literatura chilena, quanto afirmar que Gonzalo Rojas, ultrapassando os limites definidos pela geração, tornou-se não simplesmente seu nome mais mencionado internacionalmente, mas sobretudo um dos mais altos representantes da tradição poética de seu país, de cujas origens ecoam ainda hoje as vozes de Pablo de Rokha e Vicente Huidobro.
Desde a publicação de Oscuro (1977), quando ali traçou três linhas aparentemente de ordem temática – vertentes da escrita, essenciais, porém não mais que vertentes –, reconheceu certa parcela da crítica que Gonzalo Rojas estava propondo uma tríplice leitura de sua poesia, e a isto apegou-se como um corpo carente de história. Ao organizar outros livros seus, uma vez mais ali nos encontramos diante do 3, número que representa a unidade e não uma sequência de natureza temática. Há um tema único e chama-se Soma, Totalidade, Um. E não se define exatamente como tema, visto que busca algo além, uma instância metafísica que reconheça o homem em seu todo. A poesia não fraciona realidades.
O curioso é que uma poesia intrinsecamente marcada pela circularidade como o é a de Gonzalo Rojas seja confundida com o lugar comum das circunstâncias temáticas. O relâmpago de que nos fala esta poesia não é um simples recurso metafórico. Trata-se do fenômeno físico em si, ou seja, não de sua ideia de velocidade e destruição, mas sim do efeito real da ação de um ritmo e sua ambientação em nossa vida comum. Trata-se do inesperado, assim como da relação entre visível e invisível.
É curioso que tratemos o mundo no sentido de um progresso linear. Agimos por oscilação e não por progressão rítmica. Quando desaprendemos certas técnicas atestamos o jogo de intermitências de nosso conhecimento. Nos esgotamos em nós mesmos e não em uma ideia linear do tempo. E a partir desse constante esvair-se é que nos reafirmamos. Já vivemos em sociedades em piores e melhores condições que a atual. Então que fique bem claro: a noção de circularidade não pertence à pós-modernidade. Portanto, a palavra não quer exatamente dizer, no sentido de uma retórica que determine a existência de uma época, mas simplesmente dar-se como prova do espírito, como presença do ser. As palavras são o alimento terrestre do poeta. São a raiz de todo entendimento. Mistério da origem, ao mesmo tempo em que origem do mistério. Comunicação sem receitas, linguagem do sagrado, alheia ao latejo esquizoide dos ideais.
Mas, e a realidade por detrás de cada palavra? Como podemos seguir chamando de realidade esse convívio estreito com a contemplação intelectual, essa aceitação de um relicário escolástico, alheio ao relâmpago das sensações, alheio ao próprio sentido de uma recorrência artificiosa da imagem poética? Já disse: ao desfazer-se o corpo não busca senão uma melhor definição de seu tronco. Me parece que esta é a chave da palavra poética. Decifrando-se a si mesmo o poeta desvela a palavra com que se expõe e permite decifrar-se em outro, por outro, sendo ainda a trilha que leva a caminho daquele outro que não se mostrara a si mesmo até então.
Podemos falar de uma erótica, uma política ou uma metafísica ao abordarmos a poesia de Gonzalo Rojas? Claro, sempre podemos ir buscar classificações em todas as atividades humanas. Mas não podemos esquecer que o tratamento a ser dado a tais abordagens deverá funcionar como se tratássemos de letras impressas no relâmpago, visto que não configuram um sistema poético, ainda que relacionado com um sistema visionário usualmente atribuído à sua poesia. A própria circularidade em que age a poesia de Gonzalo Rojas denuncia a arbitrariedade desses enfoques. Seria algo da mesma ordem que dissecar a tríade amor, poesia e liberdade, tão cara ao Surrealismo, buscando ali apenas uma avaliação de categorias temáticas. Tanto em Rojas quanto no Surrealismo importam menos os apontamentos sistêmicos do que o exercício de alcançar a respiração do efêmero, essa luta empreendida pelo homem para reconquistar sua própria liberdade de ser. Age a poesia como uma entrada no caos e sua consequente reorganização do tempo e do espaço, condição única para que aprendamos a conviver com as diferenças, por sua vez fonte inesgotável da multiplicidade da existência. Se observarmos um pouco à nossa volta, lidamos com os horrores máximos da anulação dos contrários, artifício sagaz dos mecanismos publicitários postos a serviço de uma grande indústria de sacrifício da identidade do ser. Aqui sim, o mundo restringe-se a categorias falseadas: uma erótica, uma política, uma metafísica.
O surpreendente em Rojas é o sopro originário da poesia em si, o estremecimento do verbo em sua origem. Não é em vão que seu primeiro livro se chame La miseria del hombre (1948), menos ainda que tenha escrito um belíssimo poema dedicado a William Blake (Trotando a Blake). Igualmente visionários, é curioso observar que não se pode verificar um desdobramento estético linear na obra destes dois poetas. Cada um preencheu o tempo em que agiu com o oxigênio de sua visão singular. Seguiram em seu exercício respiratório, mas com uma galáxia já fundamentada no primeiro sopro de sua poesia.
Deteve-se Blake a traçar uma filosofia contemporânea, observando seus aspectos vinculados aos prazeres do amor, à revolução social e a uma epopeia cósmica. Irmanam-se Blake e Rojas no arbítrio do destino – basta pensar que Yeats afirmava que Blake havia anunciado a religião da arte, somando a isto a defesa que Rojas faz da poesia como canto, território do sagrado, raiz profundíssima do mistério. Enquanto um pensava em sua poesia como cantos de inocência e de experiência, o outro centrava seu enfoque em torno da miséria do homem. Surgiram, portanto, de uma mesma ideia da poesia, de sua ação. Em ambos, o que Russel Cluff observa com sendo característico de Rojas: uma indagação muito profunda de múltiplas ambiguidades ou anomalias da vida humana. Ao seguir o curso das profecias, Blake destinou a elas um tratamento de natureza histórica, ao passo que Rojas percorreu a trilha de uma metafísica do instante. Em ambos a rejeição ao religare como instituição.
Claro, a história os situa distantes entre si. O próprio Rojas refere-se hoje ao excessivo por ignição necessária de seu La miseria del hombre. As partituras extensas – segundo ele próprio – de seu primeiro livro correspondem a uma cifra concentrada na poesia inicial de Blake, talvez interferência da torrente estética do instante em que a história os recebia. Fundamentaram uma voz única, cada um a seu tempo, plasmada por um sentido de decifração e questionamento dos enigmas dilacerantes de cada época. Consciência do ser a partir de sua respiração original. Se um cultivou a parábola, o outro buscou a abordagem agônica dos contrastes. Diz o que diz e busca em seu dizer um ritmo que nos sintonize, ao dilacerar o entendimento em busca de sua fração motriz, para ser e mais ser, como sugere um poema de Rojas. Tudo nos leva ao Surrealismo, e a crítica deteve-se com insistência em considerar sempre os anos iniciais de Rojas vinculados ao grupo Mandrágora.
Se em André Breton vamos buscar uma configuração do enigma, a necessidade de encarnação do abismo, ali estamos também com Rojas em seus desenhos das tábuas terríveis da dissolução do ser. Uma vez mais aqueles parâmetros iniciais em torno da poesia de Rojas são entendidos aqui apenas como fatias de uma linguagem que somente se realiza como testemunho da inocência original. Ao dedicar um poema a Breton (A la salud de André Breton), salienta uma vez mais que a poesia é ritmo, instância verbal destinada à tradução do ser, chave do nascimento. Segue importando a conduta do poeta em relação à linguagem. Breton falava em uma magia verbal e não creio ser outra a busca de uma respiração fecundante que caracteriza a poesia de Gonzalo Rojas. Ambos desconsideram a obsessão pela novidade. Agiram turbulentos na turbulência. Se em Breton o sentido fluido das correspondências não constitui exatamente um pacto verbal, inclina-se Rojas por uma ideia do que Rubén Darío já chamava de palavra viva, e a desfia a partir de uma das mais ricas tradições poéticas da América Latina. Buscar a verdade como consciência da mudança, e não a partir de sua cristalização em nome de um ideal.
Em um poema dedicado a José Lezama Lima (Y nacer es aquí una fiesta innombrable) refere-se ao pássaro verbal que voa na língua do poeta cubano. Conduz-nos ao sentido de uma respiração através das palavras, que não se distancia da formulação de um logos da imaginação expressa por Lezama Lima. Se um purifica sua realidade a partir da gravitação em torno do movimento, o outro não busca senão a configuração do múltiplo a partir de sua imobilidade física. Em ambos a potencialidade poética rejeita a encarnação retórica. O fundamental segue sendo que a imagem é reflexo de si mesma. Não conta o decantado hermetismo de Lezama Lima, não muito distante, como recurso estilístico, da aparente simplicidade de Gonzalo Rojas, ou seja: termos imprecisos baseados em utilizações incorretas dos mesmos. Interessa-nos a metamorfose, a imagem que cada um cria a partir de seu desterro, a visão da realidade como deformidade que se pretende conciliada a partir de uma existência comum. Busca do impulso do conhecimento, ao mesmo tempo em que consciência de uma ressurreição irrisória.
O número é 3. Nisto não erra a crítica. E com base nele é que recorri a Blake, Breton, Lezama. Aproximações singulares de uma plasmação do verbo. Não lhes interessa senão o zumbido do caos. A partir dele a respiração do essencial no ser. Na insistência de uma tríade, igual diálogo se dá com Huidobro, Quevedo, Celan. Também com Hölderlin, Pound, Vallejo. Vozes vindas na ventania da poesia, torrenciais e contidas, porém jamais vozerio sem o ouro da reflexão. Vertentes que agem como cordas de fundamento, segundo o próprio Rojas, fundamentos de uma unidade que faz este pensamento que respiro, que vivo, que sonho, que me totaliza poeticamente e, ao mesmo tempo, me unifica. Tudo é ar: larva que nos conduz à cidade de nossos assombros, êxtase, caudaloso rio, lâmpada do pensamento. Vertentes iluminadas de sua respiração múltipla que vislumbra e toca a unidade, dimensão do ritmo que flui, arde e diz, majestade do canto, espinhaço da poesia. As árvores de seu Torreão do Renegado que são as letras que lhe ditam a poesia e as emanações de sua existência. Estamos para o abismo. Não fia outra coisa senão a torrente do Absoluto a poesia em Gonzalo Rojas. Age. É o princípio do verbo. Não encontrei melhor definição a seu respeito do que o achado de Marcelo Coddou: poética da poesia ativa. É esta sua razão de ser, o testemunho de sua inocência original: o potens da existência humana convertido em linguagem poética.
FLORIANO MARTINS
“Letras do relâmpago”, prólogo de antologia homônima não publicada.
O QUE SE AMA QUANDO SE AMA?
O que se ama quando se ama, meu Deus: a luz terrível da vida
ou a luz da morte? O que se procura, o que se encontra, o que
é isso: amor? Quem é? A mulher com sua profundidade, suas rosas, seus vulcões,
o este sol corado que é meu sangue furioso
quando entro nela até às últimas raízes?
Ou tudo é um grande jogo, Deus meu, e não há mulher
nem há homem mas sim um único corpo: o teu,
repartido em estrelas de beleza, em partículas fugazes
de visível eternidade?
Morro nisto, oh Deus, nesta guerra
de ir e vir entre elas pelas ruas, de não poder amar
trezentas ao mesmo tempo, porque estou condenando sempre a uma,
a essa uma, a essa única que me deste no velho paraíso.
CARTA A HUIDOBRO
1. Pouca confiança no XXI, em todo caso algo passará,
morrerão outra vez os homens, nascerá algum
do que ninguém sabe, outra física
em matéria de soltura tornará mais próxima a imantação da Terra
de sorte que o olho ganhará em prodígio e a própria viagem será voo
mental, não haverás estações, comente com o abrir
a chave do verão por exemplo nos banharemos
no sol, as jovens
perdurarão belíssimas esses nove meses por obra e graça
das galáxias e outros nove
por acréscimo depois do parto à mercê
do crescimento dos lariços de antes do Mundo, assim
as marés estremecidas bailarão arejadas outro
prazo, outro ritmo sanguíneo mais fresco, o que por contradança fará
com que o homem entre em seu húmus de uma vez e seja
mais humilde, mais
terrestre.
2. Ah, e outra coisa sem vaticínio, pouco a pouco envelhecerão
as máquinas da Realidade, não haverá drogas
nem míseros filmes nem jornais arcaicos nem
— dissipação e estrondo – mercadores do aplauso ignominioso, tudo isso
envelhecerá na aposta
da criação, o olho
voltará a ser olho, o tato
tato, o nariz
éter de Eternidade no descobrimento incessantes, a fornicação
nos tornará livres, não
pensaremos em inglês, como disse Darío, leremos
outra vez os gregos, uma vez mais se falará etrusco
em todas as praias do Mundo, à altura da quarta
década se unirão os continentes
de maneira que entrará em nós a Antártica com toda sua fascinação
de borboleta de turquesa, sete trens
passarão sob ela em múltiplas direções a uma velocidade desconhecida.
3. Até onde alcançamos ver Jesus Cristo não virá
na data, pássaros
de alumínio invisível substituirão os aviões, já ao fim
do XXI prevalecerá o instantâneo, não seremos
testemunhos da mudança, dormiremos
progenitores no pó com nossas mães
que nos fizeram mortais, dali
celebraremos o projeto de durar, parar o sol,
ser – como os divinos – de repente.
RIO TURVO
1. A Cerração
Amei uma jovem de vidro
transparente e bestial neste verão, adorei seu nariz,
seu largo pelo negro fez estragos
em minha concupiscência, era, como dizê-lo?, olfato
e pele, toda ela era olfato e pele, a envolvia
uma espécie de aura histérica enquanto
era pelo menos duas, a que soluçava
e a que falava sozinha com os anjos, o jogo
de todas as luzes era perturbador, chegava
da rua com essa beleza indiscutível das de 30
que quase já viveram tudo, do parto
ao frenesi, deitava-se nua
aí nessa cama as janelas abertas
ao mar, o que mais lhe agradava era o mar.
O caso concreto era a impiedade de seu coração, dizia
que o Mundo lhe importava uma flauta,
e deveras lhe importava escassamente uma flauta, o epicentro
de sua rotação e sua translação era a cópula, uma cópula
bem mais mental. Me dizia por exemplo: – Agora
vou voar, e voava do catre ao teto
uns dez metros ou algo assim como quem nada no ar
de costas, estilo borboleta.
Para dizê-lo de uma vez me consta que voava
porém sem sair dela, ou seja, saindo e não saindo,
tudo se fez difícil, amava outro
e eu andava na idade dos patriarcas
intacta no entanto a ereção
ainda que lisa e singelamente amava outro,
pelo menos dizia que amava outro no sul. D’accord,
o perdedor é o abismo.
Cada um ama sua venenosa como pode, eu amei minha venenosa,
impossível arrancá-la de meu miolo
até não sei quando, vendo-a de longe
hoje sexta penso em seus pés
até onde chegarão, a linha de sua vida é curta
e isso está escrito no I Ching. Por último
não é que a cerração tenha entrado em mim, eu é que entrei na cerração.
Dos encurralados é o Reino.
2. Terça Treze
Para ver o que me agrada de ti? O riso ridente
de tua boca –uma vez desnuda – as axilas
fora claro do nariz cujas cartilagens
datam do Renascimento, ah e o pelo,
esse negro teu pelo que é minha adoração,
que te cobre de norte a sul o dorso
e o fulgor da morenice, minha
perversão e minha adoração.
Ali vão as coisas entre as duas: impossíveis. Hoje
completas 36, pareces fraca
porém não mais conheço por dentro a embarcação, eu e outros.
Mas não falemos dos náufragos.
Nada então de sobrevida. Não há sobrevida,
para que serva a sobrevida. O terminal
é o único que está em jogo:
a borboleta é terminal, Picasso
é terminal,
Picasso que inventou a borboleta
quando entrou em Jacqueline depois
dos setenta, isso é terminal
e coisa de meses
desde o prodígio amniótico. Picasso
e sua dança! Se é que lhe dura,
se é que lhe dura mais que a pintura.
Dizes que te vais. Bem, então vais,
hoje mesmo nesse avião para o sul vais
tão ligeira como vieste. Esquece
este verão. Total foste parte
de minha ressurreição. Por último
não fiquei teso aí nesse matadouro
da sala de cirurgia. Todo
fui tão flexível. Você
foi feliz. Eu fui feliz. O adeus sangrento foi feliz.
3. Fascinação
Não com sêmen de ejacular mas sim com sêmen de escrever
digo à ave: – abre-te, ave, e
se abre; – recebe-me,
e me recebe, ereto
e pertinaz; ali mesmo voamos
incompletos até muito além do Gêneses
setenta vezes sete, e assim
esvaziado o sentido: – “Sou vossa
geme com gemido em seu êxtase, para vós nasci,
o que mandais fazer de mim?” Cego
de seu cheiro, beijo então um aroma
que não senti em mulher: – “Guarda-me
— irrompo arterial – este leite de dragão
até a Ressurreição na limpeza
de tua figura de pele, clitóris
e mais clitóris no frenesi
da Espécie. Não haja mortalha
entre nós”.
Para o que a possessa: – “Ai, corpo,
quem fora eternamente corpo, tato
de ti, liturgia
e lascívia, de ti e o beijo
correra como furacão e eu fora o beijo
de mulher para uivar-te
loba de mim, Rio
Turvo abaixo até a Antártica, louca
como sou, zumbido do Princípio”.
De histeria e pó, amor,
fomos feitos, lê-se
ociosa em maia, em sânscrito as estrelas; lê-se!
de que se escreve? – “Diz-nos
de uma vez Teresa de Ávila, Virginia
Woolf, Emily minha
Brontë de um descampado a outro, Frida mutilada
que andas voando por aí, de que
se escreve?