Curadoria e tradução de Floriano Martins
Vivi nas granjas até os três anos. Era uma menina solitária dentro de uma família solitária. Enquanto minha irmã brincava com minhas primas eu preferia cruzar os campos.
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Meu avô e meu pai eram italianos. Havia em Salto uma grande colônia italiana. Falavam de lobos, da neve, do mundo que haviam abandonado.
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Meu avô tinha uma grande biblioteca. Minha mãe e minhas tias eram muito sensíveis. Recitavam de memória Delmira, María Eugenia, Darío, e assim eu aprendi a memorizar seus poemas.
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Tive uma educação católica, sim, mesmo que meus pais não fossem muito praticantes, mas eram muito crentes, e eu também. Meus familiares gravitam em minha vida. Ainda hoje, muitos já desaparecidos, contudo, persistem.
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Mudamos para a cidade quando ingressava no Liceu. Ali comecei a ler furiosamente as novelas americanas, francesas, italianas, o grande teatro que guardava a biblioteca pública, ensaios, etc. Integrei um grupo de teatro com o qual fazíamos giros, rádio. Interpretávamos dramas e comédias. Desde então sustento uma afinidade com o teatro que não aprofundei por imposição da escritura, mas montei recitais dramatizados de meus textos. Ultimamente um espetáculo de cinquenta minutos com poemas selecionados. Com ele fui a Buenos Aires, Chile, várias universidades dos Estados Unidos.
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Os livros se sucedem e o mundo é o mesmo. Porém, vai se ramificando, seguem surgindo coisas. Vou me pôr a fazer sonetos? Posso quebrar esse mundo? Nunca me propus a ser escritora, me dei conta de que o era. Não se trata de um trabalho, sequer de uma aprendizagem. Quando aos vinte anos olhei minha infância apareceu isso fulgurante, extraordinário, inesgotável. Despregou-se de uma maneira infinita que jamais poderei deter.
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Toda arte é “rara”. Nenhum artista (que o seja de verdade) deixa de ser um “raro”. Porém, no melhor dos sentidos. É como levar um arco-íris às costas.
MAROSA DI GIORGIO
“El mundo mágico y terrible de Marosa di Giorgio”, entrevista concedida a Carlos María Domínguez. Brecha. Montevideo, junho de 1990.
ÁRVORE DE MAGNÓLIAS
Árvore de magnólias,
eu te conheci no primeiro dia de minha infância,
à distância te confundes com a avó, de perto, és o armário
de onde ela retirava o suco e as xícaras.
De ti desceram os ladrões;
Melchor, Gaspar e Baltazar;
De ti desciam os pastores e os gatos;
os pastores, enamoradas como gatos,
os gatos, sérios como homens, com seus bigodes e seus olhos de enamorados.
Escrava negra sustentando criaturinhas, imóveis, nacaradas.
Virgem Maria de negro véu,
de véu branco, ali no pátio.
És a avó, és mamã, és Marosa, tudo és, com a tua eterna
juventude, tua velhice eterna,
menina de comunhão, menina de noiva,
menina de morte.
De ti retiravam as estrelas como xícaras,
as xícaras como estrelas.
Esteve oculto em teus ramos o Livro do Destino.
Ficaste bem longe, foste para bem longe.
Porém, em tua direção trato de retroceder,
Vou avançando em tua direção.
Eu te verei no céu.
A eternidade não pode existir sem ti.
A NATUREZA DOS SONHOS
De manhã cedinho eu bebia o leite, minuciosamente, sob o olhar vigilante de minha mãe; porém, logo ela se afastava um pouco, voltava a fiar o mel, a bordar a bordar, e eu fugia para a imensa pradaria, verde e cinza. Lá longe, passavam as gazelas com suas caras de flor; pareciam lírios com pés, algodoeiros com asas. Porém, eu apenas mirava as pedras, os altos ídolos, que olhavam para cima, para um destino nefasto. E, o que poderia fazer; estender-me ali, para que minha mãe não me visse, até que me passasse, outra vez, tudo aquilo tão horrível e raro.
POEMA X
Este melão é uma rosa,
este perfuma como uma rosa,
dentro deve haver um anjo
com o coração e a cintura sempre em chamas.
Este é um santo,
transforma em ouro e perfume
tudo o que toca;
possui todas as virtudes, nenhum defeito,
a ele dedico uma oração,
depois o festejo em um poema.
Agora, digo apenas o que ele é:
um relâmpago,
um perfume,
o filho varão das rosas.
[O SOL ERA UM DISCO REDONDO]
O sol era um disco redondo, plano, com esplendor, e ao seu redor uma grinalda de ferros breves, dourados, retorcidos. Parecia um espelho.
E que se pode retirar e usar.
Eu o peguei, o agarrei. Não me custou nada. Por momentos estive indecisa. E logo o coloquei na penteadeira.
Porém não me atrevi a me olhar nele. Meu rosto no sol!…
Não era tão audaz. Como sempre, de todos os sítios, de todos os rumos, me chamaram; e não respondi.
Há muitíssimo tempo que estou quieta cuidando do sol.
[ESTOU SENTADA NO CENTRO DA SOLIDÃO DO BOSQUE]
Estou sentada no centro da solidão do bosque. As nogueiras – com que precisão! – acomodam seus frutos deliciosos dentro das bolsinhas de madeira. Ouvimos o breve alarido das martas que buscam amores.
Em casa, todos descansam e parece que não há ninguém. Apenas eu, como sempre, não posso dormir; caminho com a pequena lâmpada de librium; porém, igualmente não posso dormir.
De repente, se retraem o trabalho dos carvalhos e o amor das martas.
Tudo isto ao cruzar de um navio de outros mundos com sua luz comovedora.
Não sei o motivo, me dá medo, e tento fugir.
Porém a nave astral fez crescer novas coisas.
E um firme canteiro de açucenas me detém.