Nancy Morejón (Cuba, 1944)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Para a minha poesia e a literatura cubana, o espanhol é uma referência essencial. Em primeiro lugar, é a língua em que se falava da luta contra a escravatura no século XIX. Aponte, Plácido e também o general Antonio Maceo são figuras históricas que têm um vínculo indissociável com esta parte da história cubana. Em segundo lugar, o espanhol nos une à história cultural dos países hispano-americanos. A formação de nossa nação ocorreu em espanhol, nessa língua foram valorizadas suas experiências históricas. Para Loynaz e Guillén este é um fato irrefutável. Sua literatura pode parecer muito diferente e realmente é. Mas isso não apaga o fato de que eles compartilharam, de ângulos opostos, uma tradição literária semelhante.

[…]
Minha poesia tem a ver com muitos modos e poetas, não há uma influência única. Mas a minha experiência pessoal com Guillén foi decisiva. Sem ele, eu nunca teria escrito alguns dos meus poemas principais. Porém, minha poesia é muito diferente.

[…]
As artes visuais são muito importantes para mim. Por ocasião do colóquio dos centenários, foi inaugurada a exposição de René de la Nuez com a sua interpretação de fragmentos da obra de Guillén. Para De la Nuez, Guillén é um poeta eminentemente visual. Quando minha mãe estava muito doente, no início dos anos 90, comecei a rabiscar, alguns desenhos espantavam minha tristeza. Não sabia que os esboços eram possíveis. Continuo a fazê-lo com uma frequência progressiva. Também fiz várias exposições em colaboração com outros artistas, ou seja, escrevia poemas e eles ilustravam ou vice-versa, e publicava estudos sobre os seus trabalhos. Uma das minhas primeiras iniciativas, quando fui reconduzida como diretora do Centro de Estudos do Caribe da Casa de las Américas, foi apoiar a organização da exposição e a publicação, em 2000, do catálogo Mitos no Caribe. Porém sou, sobretudo, uma poeta que desenha também para reforçar a sua percepção da realidade, para fugir daquela neurose que, embora inconsciente, sempre te atinge… Admiro a obra do pintor Manuel Mendive, um grande amigo, um grande afeto quase familiar. Eusebio Leal escreveu que Mendive é um artista que sabe construir uma ponte entre a África, a América e a Europa. Essa ideia também é importante no meu próprio trabalho e permanece viva em tudo que faço.

NANCY MOREJÓN
Fragmentos de “Universos múltiples dentro de una tradición cubana única”, entrevista concedida a Ineke Phaf-Rheinberger. Foro de debate, Iberoamericana, 2003.


POEMA CEGO E SEM BOCA

what happens to the canefield in the hurricane?
Kamau Brahtwaite

Não vejo e não tenho boca. Nem quisera tê-la.
Nem vejo, nem tenho boca. E não quero tê-la.
Sou um corpo negro, banhado entre as gotas,
Balançando-me entre as yagrumas
sem boca e sem olhos
deitada na grama alta dos canaviais,
à espera das minúsculas auras.
Negra é a pele da mulher que uiva muito mais
do que o olho dos furacões, ao lado de meu corpo
sem olhos, sem boca e sem corda
porém com uma memória intacta
que voa pelos céus
buscando ancorar sua dor nas margens de Gorée
ou para ir voando, cega como a minha alma,
sobre as planícies do Congo
até encontrar refúgio seguro embalado pelos ventos,
a chuva, o pardal e os salgueiros sem piedade alguma.


IANSÃ

Quando o vento atravessa com fúria os cemitérios, sob um sol implacável ou uma chuva tranquila, estamos no reino de Iansã, um dos orixás mais respeitados e temidos da mitologia afro-cubana. Sua presença indica inegável trânsito entre dois mundos: o da terra e o do céu. Ela nos junta e por isto conseguiu relacioná-los e coloca-los a viver como um casamento exemplar, desses que chegam às bodas de ouro por decisão própria.

Iansã sacode o vento em qualquer estação e ergue, ao vento, seu inconfundível iruquerê como sinal de paz. Ganhe ou perca a batalha, Iansã aposta por sua paisagem natural – formada por tumbas irregulares, brancas ou cinzas, ou apenas sem cor – povoada por mortos, cruzes, epitáfios, abóbodas e seus correspondentes habitantes, ou seja, espíritos recém-chegados ainda sem identidades ou seres transitando pastando os ares da noite que é a hora favorita da deusa.

Os velhos guardiões dos engenhos, na quietude dos canaviais, falavam entre si, em voz baixa, dos egguns viajando pelos ares, em silêncio, enquanto perambulavam por vales e montanhas e córregos sem nome e, sobretudo, sem permissão de Iansã que fazia vista gorda com o fim de protegê-los de qualquer perigo à espreita, de qualquer injustiça, lhes concedendo um espaço entre os vivos e um bestiário inclassificável.

Esse reino de Iansã há muito se encontra, porque ali respira, em numerosos óleos e esculturas realizados por Manuel Mendive graças a quem conheci fontes de suas ações. Sua presença sobrevoava os céus, ou a terra firme das profundezas. Em alguma esquina da composição, mostra seu focinho iku, travessa, comendo na mão de sua rainha: Iansã. Então o espectador é apanhado pelo misterioso encanto da morte. Como faunos do céu, brotando de uma música rara, os egguns bailaram uma dança sem par por entre as folhas volantes e a harmonia dos ares, outra vez, ao redor do cemitério chinês que o olho do pintor contempla.


TEMA PARA SANTIAGO

Homenagem ao cineasta cubano Santiago Álvarez

Eu não poderei esquecer as bicicletas claras de Hanói,
uma terça 13, que atravessavam o ar puro daquele dia
sob um céu mais claro e mais azul.
Tinha a força natural do Nilo, do Amazonas e do Mekong.
Não poderei esquecer, em Kampuchea,
as tumultuosas tumbas, guaridas do pavor,
sobrevoadas por pássaros roubados de suas jaulas de ouro.
Como esquecer que essas imagens sagradas
nos assaltam como tigres organizados
da monstruosidade?
Como dizer que em nossos olhos
fervem suas almas arrastadas por bestas
diluvianas sobre sangue pulcríssimo vertido
para que existe outro mundo melhor?
Tu que me escutas,
onde quer que estejas, como te chames,
empurra a porta de tua alcova, vai para a rua,
busca a penumbra fiel das salas de cinema
que ali verás para sempre a flor humana de Santiago
erguida entre o fervor e o céu.

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