Curadoria e tradução de Floriano Martins
O poeta é o que faz o inventário vivo da natureza, o poeta nomeia as coisas e seu nomear é fazer viver. As coisas começam a existir. Já não pretendo que não existissem antes, porém o poeta as faz existir para o homem, confere a elas esse calor humano que as aproxima de nós, que faz com que entrem nos corações e as acostuma ao nosso ser e a elas nos acostuma. Essas coisas que existiam antes em condição de inventário morto ou obscuro se convertem em acontecimento espiritual.
Por isto o poeta é aquele que ilumina, no duplo sentido de dar à luz e de dar luz. Ilumina os cantos opacos, descobre as relações recônditas e depois oferece aos homens seus descobrimentos. É o grande eletrificador do universo.
O poeta tem o corpo aberto de par em par ao mundo, é o ser suscetível a todas as vibrações, o homem fácil à chegada das visões e dos fluidos. Não o homem pertinaz que fecha as portas e janelas de seu espírito.
O poeta desce às profundidades da alma, sobe à superfície e busca o contato cósmico. Eis aí as fontes da criação. Da criação como a entendo, como descobrimento de correlações ou diferenças e apresentação de um fato novo.
Quando se sai do ato essencial se cai no adorno, na Poesia ornamental. Esta era a poesia dominante quando abri os olhos à vida. Havia que estabelecer novamente o fato poético. Daí me nasceu a ideia do criacionismo. Havia que recriar o mundo, descobrindo-o novamente. Sempre acreditei que a poesia é ato de transubstanciação. Este ponto, que desenvolvi amplamente em uma conferência na Sorbonne e em outra em Berlim há mais de dez anos atrás, daria para muitas páginas de explicação. Direi somente que na criação e na expressão poética há um ato taumatúrgico duplo: o de captação da natureza e o que traslada o conhecimento de alma em alma. Ato taumatúrgico, tirando desta palavra seu sentido extra-humana. O poeta não deve imitar a natureza em seus aspectos, mas sim em sua força criativa. Deve fazer com que seu espírito seja como a natureza: fonte de vida. Para o poeta se trata sempre de captar a realidade e de criar uma realidade nova.
A poesia cria com seu material próprio que é a linguagem. Ao poeta lhe estão permitidas todas as aventuras da linguagem, sempre que as justifique. Contudo, muitas vezes acontece da linguagem se voltar contra seu homem e o devorar. Isto se dá com os poetas que têm demasiado coração e pouco cérebro.
[…]
Nunca devemos esquecer que a arte tem um rol compensatório entre os vazios e os desequilíbrios, as mentiras e as verdades, as dores e as alegrias que angustiam o homem.
VICENTE HUIDOBRO
“Interrogación a Vicente Huidobro”, entrevista onde não consta o nome do entrevistador. Revista Tierra # 4. Santiago, novembro de 1937.
IMPOSSÍVEL
Impossível saber quando esse canto de minha alma dormiu
E quando voltará outra vez a tomar parte em minhas festas íntimas
Ou se esse troço se foi para sempre
Ou então se foi roubado e se encontra íntegro em outro
Impossível saber se a árvore primitiva dentro de teu ser ainda sente o vento milenar
Se recordas o canto da mãe quaternária
E os grandes gritos de teu rapto
E a voz soluçante do oceano que acabava de abrir os olhos
E agitava as mãos e chorava em seu berço
Para viver não necessitamos tantos horizontes
As cabeças de papoula que comemos sofrem por nós
Minha amendoeira fala por uma parte de mim mesmo
Eu estou próximo e estou longe
Tenho centenas de épocas em meu breve tempo
Tenho milhares de léguas em meu ser profundo
Cataclismos da terra acidentes de planetas
E algumas estrelas de luto
Lembras quando eras um som entre as árvores
E quando eras um pequeno raio vertiginoso?
Agora temos a memória demasiado carregada
As flores de nossas orelhas empalidecem
Às vezes vejo reflexos de plumas em meu peito
Não me olhe com tantos fantasmas
Quero dormir quero ouvir outra vez as vozes perdidas
Como os cometas que passaram a outros sistemas
Onde estávamos? Em que luz em que silêncio?
Onde estaremos?
Tantas coisas tantas coisas tantas coisas
Sopro então para apagar teus olhos
Lembras quando eras um suspiro entre dois ramos?
VOZ DE ESPERANÇA
Tens olhos de orgulho desesperado e de fogo coberto
Tens carne cor de tormento milenar como os desertos de cólera variada e no fundo idêntica
Tua tristeza é sentir a injustiça vertiginosa que mofa a marcha
E arrasta os pedaços
Tua sorte seria romper as ataduras que te convidam às trevas
E criar com tuas mãos um planeta em forma de coração
Ouves a tosse dos escravos e um forno ruge em tuas entranhas
Ouves as maldições abatidas
Ouves gemer e gemes
Com todo teu esqueleto de amarguras imensas
Ouves os gritos da fome sob chapéus como tabacos desfolhados
Sob os farrapos de noturnas faturas
Ouves o pranto e choras
Ouves a morte que sai da noite entrando nos ossos
Ouves o corpo do mundo repartido em lamentos
Ouves o angustiado irmão dos peitos sem ar
Ouves gemer e gemes
Molhado de séculos e catástrofes molhado de esperanças
Ouves a súplica dos mares empunhados
Ouves cair as lágrimas ao largo da noite
E as vê atravessas o dia
Ouves sofrer e sofres
Ouves chorar o homem e choras como o homem
Porém uma febre de borboleta gigantesca
Parte da aurora retardada entre redes opacas
Nasce uma fogueira e nasce uma voz rodeada de fogo
Uma voz que redime um astro cego e taciturno
Uma voz que se tem lavado em largos sonhos
Uma voz de torrente sacudida
Uma voz de pavorosas profundidades
Uma voz que levanta os gestos
Brandindo o mundo entre centelhas iracundas
Martelando na frágua do universo
Uma voz cansada de chorar
E que se ergue de seus princípios
À dignidade negada por imundas razões
E exigida por todas as raízes de seu ser invencível
Uma voz cansada de gemer
O homem é paciente
Mas não tanto quanto o tempo contemplado
Desde a margem da noite
O homem é sofrido
Seus músculos lavrados a golpe de milênios
Porém a terra é suave e o compreende e o ama
De tantos a tantos séculos
O homem é afável
A terra o ama e pede um modo de harmonia
E quer uma forma de fraterna doçura
Não quer estar coberta de tragédias
Nem girar sob crimes entre febres sangrentas
A terra o ama
(Que seja sempre assim)
Quer sua luz de flor meditativa
Quer sua ventura como um canto necessário à marcha
Que caiam então os que constroem a desgraça
Os que fecham o horizonte
Os que impedem o canto
Que se enterram ao fundo de sua noite
Que caiam sim que caiam
E vamos descarregando os mortos a bordo do planeta
Lancemos carniças ao vazio
E que o cometa do mal agouro lhes envolva em seu sudário
E lhes arraste ao nada sem memória
Se aproximam os homens em marcha desprendida
De montanhas geológicas e cheios de ternura
Vem o homem amado da terra
Com seus olhos de abraço suficiente
Chega o homem para pedir seus direitos
Eu me descubro ao teu passo como ante um mar
Que vem da noite
E te entrego minhas mãos e te entrego meu peito
E deixo a tuas plantas a atitude de meu cérebro
Tens um corpo transpassado como alarido de cão nebuloso
Tens tua voz de lágrima a sorriso
Tens teu céu como um mar levantado por suas ânsias
Tua tristeza é ver que não sabem o que valem sob tua pele terrestre
Tua alegria amassar o futuro de teus filhos como ervas entusiastas
De tua mulher como árvore de doçura
Árvores árvores velai sobre o destino
Árvores cantando sua existência
Sejam luminosas sobre o sonho da estima
Que hora seria no revés do mundo
Quando teu coração sentiu sua hora
E tua pele terrestre dói transpassada de alaridos?
Árvores árvores que nudez se aproxima
E que manhãs de metal cantante se preparam
As folhas contavam à terra suas proezas
E a visão do futuro ilustre se ergueu em alguns olhos exclusivos
Que desde então choram de febre entusiasmada
Que hora seria que hora
Quando o mundo te trouxe a notícia do futuro coroado
Os pés se fizeram rápidos
O corpo se vestiu de nudez em estátuas de vento
E os olhos devorando-se entre si como dois loucos coléricos
Giraram entre sóis e vidros por todo o universo
Tuas mãos que delírio de fogo que ampla simpatia
Que lento abraço aos ruídos da vida
Teu coração em búzio descendo às suas raízes
Nadando em suas origens. De pé em seu objetivo compreendido
Tinhas tanta fome de ti mesmo
Rota de obscuras geologias de selvas submarinas
E de sombras ajoelhadas sob o vento
Até o momento em que um giz no sonho traçou o destino
Levantou os gestos de suas profundidades
E disse a ti o que eras e terias que ser
Sobre esse pedestal que percorres inconsciente
Que hora seria que hora caindo das árvores
Quando os mortos deram a ordem de despertar
E as tribos sonolentas olhando as estrelas
Se puseram em marcha até às formas de suas línguas
Até sua essência de memórias desveladas
E sua paixão de ser em penetrante vida
Ideia redentora como um pão escuro que se faz luz de sangue e células
Que hora seria então
O furacão rugia entre suas barbas surpreso
E a viagem era uma estátua de sua raiz ao tronco e à ramagem
Um trabalho invisível de séculos e cimentos ofegantes de ar
Não há detenção possível até o arco de flores e horizontes
Que assinala seu triunfo
É o homem
O homem de pé sobre seus sonhos
O PASSAGEIRO DE SEU DESTINO
I
É assim como somos
E como passeamos hoje sobre a terra
Precedidos pelos ruídos de nossos antepassados e seguidos pela dor de nossos filhos
Aferrados em nossa idade e cantando quando as rochas choram a morte de um veleiro que preferiram sem razão alguma
Ou talvez porque o viram brincar em sua infância
Ou porque era belo todo cheio de vento vindo do país do vento
Não temos medo quando o vento arranca as palavras de nossa garganta
Não temos medo das baleias nem de todos esses monstros que têm mais envergadura que uma badalada
Não temos medo de nos inclinarmos sobre vossas canções das quais podem saltar um gêiser ameaçador e a vertigem infinita das brumas
Não temos medo do além que se agita como um mudo do além que salta sobre nossa razão
E desse frio lúcido que vela sobre a constelação de nossas inquietudes
Mais absurdo que o morto que enterraram com a metade de uma carta no cérebro
Com a palavra fabulosa no meio da língua
Com um grande rosto entre os fios de lágrimas no fundo de seus olhos
Esses olhos que se converterão em ternos calhaus sobre os caminhos do além
Tudo isto é útil para a formação da superfície
Para o interesse do fogo impaciente no fundo de seu antro
E devemos assinalas seu trabalho e elogiar sua lei
É tarde em todos os rincões do mundo
É tarde e a tarde afundará no mar
Sem soltar o timão do horizonte
Porque ela é o chefe único ela guarda o segredo
Ela pode erguer o braço e desatar da morte o cadáver recente
Agora que estremeces como o mar
O horizonte afundará para sempre
Agora que a selva se entrega ao inimigo
Lança-te sobre o mar
Separando as ondas como o cadáver separa a eternidade
Homem vês que o mar se amalgama e tens medo
Tu bem poderias saltar por cima da conflagração de mentiras unânimes
Invade o terreno sideral sem vacilar
Invade os países do louco que te despreza e te olha com a parte inferior de sua alma
Proclama tua importância à tribo submetida que começa a aparecer no fundo do céu
II
A terra está em febre por causa dos cantos seculares dos pássaros
É o despertar inútil da tribo iluminando-se a cada passo
O mar lava suas ondas que devem suavizar o mundo
E espargir suas carícias até a extinção da comarca
É provável que devam polir o céu como a proa de um grande navio
Talvez envelheçam antes que as árvores assediadas por fantasmas após a meia-noite
As árvores sem sorte as árvores perdidas como o avô que trata de sair de nossa profundidade
E fazer gestos de ausência no vazio
Eis aqui o acontecimento íngreme após a perdição
Eis aqui a habitual desventura daquele que não pode deter os rios
E deve chorar suas mortes como as montanhas
Em vão ele quisera fechar o mar
Amanhã as espumas emitirão um pensamento novo
Farão coroas brilhantes para meu coração capaz de rodar com vossos melhores veleiros
A catástrofe memorável foge sem esperar o resultado
Afunda em velas estendidas nas águas antigas
Sem sequer mirar o rei à deriva que esqueceu as manobras de exceção
Tenho visto como ninguém surgir sob meus pés a aberta solidão
E tenho sentido em meus olhos o sobressalto estelar
Talvez idêntico às paragens desconhecidas
À distância sem solução
O lugar do instante em que alguém deixou a trilha de seus pés
A ponta extrema da árvore onde começa o infinito
E o mar à distância como o terror da noite
Silêncio suplico-vos silêncio
Há um sonho que passa entre os homens
Há um sonho em marcha entre os homens e os presságios
Temos sede de um lugar sem inquietude e sem cálculo
Onde o demônio da tempestade terá os olhos murchos e os cabelos cortados
Silêncio te suplico
Vê passar a nave hipnotizada de minha alma
Arrastando uma longa barba de água
Vê essa estrela no fundo do céu
Essa estrela que se distancia com todos os seus marinheiros
III
É preciso arremessar os números e segui-los com nossos olhos
Vê-los tomar seu posto buscar a elevação injusta da fumaça
Ou então cair no fundo da memória
Te digo que não há que deixar-se enrolar pelo vento
Que é necessário chamar à porta do turbilhão
Nunca deves fugir da aproximação do horror nem da simples noiva que canta a alegria de suas artérias
Nenhum abismo deve perturbar o riso de teus dentes heroicos
Nenhum alento deve enfaixar o metal de tua alma
Nem oscilar teus edifícios internos
Quero vê-los brilhar sempre com o mesmo fósforo do tempo
Em cima da asa viril imobilizada por causa de sua brancura
Não esperes esse encontro prometido nos profundos veludos eternos
É preciso cobrir o naufrágio sob um edredom de lã
É preciso saudar os oráculos do mar
Acorrentar o paraíso sob o fogo de nossa voz
Devolver nosso coração à sua tenda
Não queremos repartições gratuitas antes da vida
É preciso tapar o naufrágio com uma rolha qualquer
Esquecer o voo das mãos desesperadas
Não há circunstâncias atenuantes para o céu
Eu não quero resvalar sobre as nuvens nem cair em armadilhas estendidas pelo inimigo que não se nomeia
Que a morte desesperada uive e que lance sua semente
Que cambaleie entre as pedras de seus abismos
Que divida os homens
Que divida os homens digo em degraus de sombra e luz
A insinuação do mistério
A alternativa de duas margens a escolher
Ainda assim não me verás estremecer
Eis aqui o polo sem fim eis aqui o mar
Eis aqui o naufrágio sob uma tampa de metal
O naufrágio é o prato do céu
Não me verás estremecer
Nem ainda à altura da meia-noite definitiva
Dessa virginal meia-noite de todo homem que nos espera à margem de nós mesmos
Dessa última meia-noite que recai às vezes com a quilha no ar
Não me verás estremecer
Ao contrário agitarei as sombras em torno de mim
Prepararei eu mesmo o vento que deva empurrar-me
O grande vento solitário que quer abraçar o destino
Atrás da última rocha onde ancora a última sereia fatigada sob o peso de seus cabelos sonoros
Eis aqui a rocha sombria o primeiro semáforo do infinito irresistível semelhante apenas aos do olho da vertigem
Eis aqui erguida a rocha tenebrosa como a estátua do destino
Muito além está a zona sem frente nem corpo
A zona amarga como o vento após o raio
A zona vazia onde uma pluma planeja o princípio do mundo
Onde tudo se sepulta e se dissolve na espessura de um manto irrisório que cobre os mendigos cósmicos
Os mendigos em agonia milenar que se arrastam atados pela lei das alucinações em busca de uma evidência