Por Floriano Martins
Laís Araruna de Aquino nasceu em Recife, em 1988. Embora herdeira de uma rica tradição lírica que encontra seus maiores atores em Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo e João Cabral, desde a estreia, com o denso Juventude (2018), a vemos definida por uma voz própria que talvez encontre, embora muito levemente, algum traço em Bandeira, pela afetividade de seu verso, quando este passeia pelas ruas da Recife de ambos. Afinidade mínima, no entanto. O ritmo em Laís Araruna de Aquino vem tecendo uma poética em que se encaixam à perfeição experiência e imaginação, sempre no limiar das relações entre corpo e tempo, cultivando o que ela mesma destaca como um momento precário da beleza. Suas referências, longe da comum baliza literária, enveredam por outras artes e outras leituras, moldadas por uma entranhável volúpia de viver, o que torna seu verso carne e vice-versa, em uma imagem sintetizada por ela, que é a própria encarnação de sua criação: nosso tempo é o enquanto. [FM]
FM | A densidade da juventude por vezes é atingida por um calafrio das circunstâncias (um desastre físico, a perda de um parente, uma mudança inesperada de endereço) ou por vidas passadas, realidades paralelas ou outras fortunas alquímicas. Quantas são as vozes que se manifestam em ti?
LAA | Confesso que, para responder a essa pergunta, tive que reler alguns poemas do Juventude. Fazia tempo que não abria o livro. Estou preparando outro e não costumo reler os poemas do passado. Um passado, no entanto, que certamente não passou. Mas vamos à questão.
Essas vozes que se manifestam em mim: acho que o poeta – falo por mim – sabe menos isto que o seu terapeuta ou um leitor mais crítico (risos). Eu não acho que o poeta deva ter um projeto claro do que quer fazer enquanto escreve. Ele pode ter ou não, claro. Mas, no que toca à minha poesia, prefiro pensar que está mais ao sabor dos eventos, das coisas que lhe acontecem, dos acontecimentos, do que de um eu controlador. Sim, eu sei que tua pergunta não é nesse sentido. Mas deixo-me ir tergiversando.
O eu que escreve ou o tu a que me refiro tantas vezes, que podem ou não coincidir, são expressões menos de um sujeito perdido na sua solidão de indivíduo, como, por vezes, aparece nos versos, do que de uma confluência de pessoas, coisas, valores que o habitam inconscientemente ou não.
Entendo que minha voz é também a da minha avó, a das minhas irmãs, a dos diálogos que tive com os meus amigos, as que escutei ou não escutei nos passeios e ruas que recorri – e também a voz do silêncio do ser. Sem isto tudo, eu nada seria e os poemas não existiriam.
Eu vejo que não é a minha voz a criadora de nada. Sou mais alguém que fica à espera, de campana, como o Turgueniev, em Diários de um caçador, à espera das coisas que lhe aconteçam para poder dizê-las.
FM | Ando lendo o diário de Eugène Ionesco e anota ali algo que me toca: A realidade não é, para mim, mais do que aquilo que imponho ao que é, a esse algo que é, a essa espécie de matéria exterior”. Qual eu projetas naquilo que escreves?
LAA | Seguindo a linha do que disse acima, penso que iria, de certo modo, em oposição ao que Ionesco escreveu. A realidade que (me) assoma não é qualquer coisa fruto de uma imposição minha, de, digamos, uma luta do eu contra a matéria exterior – ou de uma modelagem do eu. Não é assim que eu penso, ao menos. Talvez isto se suceda comigo por passividade, se se pudesse dizer logicamente que uma passividade se impõe.
FM | Na declarada convicção de que o vazio existe (“Minha juventude”), me parece, é onde residem teus poemas. A dúvida, caso eu esteja certo: mergulhas ali a buscá-los ou eles te avisam quando estão prontos para sair? E se estou errado, como eles fazem a passagem de teu íntimo para o mundo?
LAA | Eu prefiro pensar que as coisas se impõem sobre mim. Não é que eu tenha uma vontade deliberada de escrever e sente à máquina e escreva. Isto me é completamente distante. As coisas acontecem e me acontecem. Eu sou muito indolente. Preciso de uma compulsão, de uma ordem que me comande a escrever, sob pena de. Preciso que o inafastável e o irremediável se aproximem – eles, que não são tão inafastáveis e irremediáveis assim, porque podem refluir como uma vela que se apaga. E é somente neste momento de fronteira, neste limiar, que posso me pensar como tendo uma vontade criadora. Melhor dizendo, seria mais uma vontade de tirar as coisas de seu iminente naufrágio.
O vazio, para mim, pode ocorrer de dois modos que se misturam: como jogo de linguagem e como dimensão espiritual. Às vezes, o vazio segue uma contiguidade com o nada e o ser: é outro nome para as coisas que não nomeamos, porém sentimos ali, não à mão, mas sob certa disposição, humor; noutras vezes, o vazio é o que resta ou aflora das insignificantes questões espirituais em que nos metemos e são irresolúveis. É por isto, penso, que o espírito existe.
FM | Mas até que ponto essa compulsão te satisfaz? Ou seria o caso de indagar se satisfaz a naturalidade da escrita? Estava pensando em Bachelard, quando observa que os poetas nem sempre sabem permanecer fiéis à origem mesma de sua inspiração. O passo seguinte: como te satisfazem esses movimentos oníricos, interiores, inspirados, quando se transformam em voos da linguagem, em exteriores pura e simplesmente?
LAA | Eu já li, em algum lugar, que Auden salvava os melhores versos de poemas imprestáveis e os combinava em outro melhor ou maior. Isto, talvez, seja complementar ao que Bachelard diz, certo? Os poetas, ora, todos sabemos, são uns fingidores, não importa quão longe tenham ido no seu abismo ou no seu paraíso.
A linguagem escrita precisa de certo estilo que o pensamento dispensa. E a poética precisa ainda mais, a meu ver, de ritmo. Acho que não corresponde ao que ocorre pensar em uma linguagem natural ou pensar na naturalidade da escrita. Se as coisas acontecem, também é preciso deixá-las acontecer e isto só será percebido quando essas distinções entre sujeito e objeto esvanecerem, ao menos, por alguns instantes. Isto não implica, no entanto, negar o fazer poético e os movimentos inspirados. Eu nunca os negaria, até mesmo porque sofro de profundas dores de cabeça, que são o sintoma mais pungente de que, ainda que imóveis, não estamos nunca inertes.
FM | Teu primeiro livro consolida um tema ousado para a juventude de quem o escreve: a dimensão do eu em sua relação com o mundo. Consegues um perfeito equilíbrio metafísico entre experiência e imaginação, cujo resultado é um volume que considero a mais expressiva estreia nas últimas décadas de nossa tradição lírica. Livro de leituras, de observações, cujas raízes, se vasculhadas, dão sinais de afinidade com o cinema de Bergman, o teatro de Beckett e as ruas do Recife. E ainda apanhamos pelo caminho os raminhos de Copérnico, as flores de Bashô e as artérias noturnas de Chopin. A tua regência é alquímica e a realizas com uma consciência natural que se impõe no espectro mesmo de cada imagem. Agora indago se poderias me dizer a tua ideia desse percurso que traças.
LAA | Como eu venho dizendo, eu prefiro – talvez seja mais prudente sublinhar esse verbo – pensar que não tenho ideia certa ou projeto certo para minha escrita. Até mesmo falar em minha escrita seria um contrassenso com as ideias que esposo – vês, aqui, o paradoxo ou, melhor, o jogo? Melhor seria dizer: tenho um vislumbre do que faço, do que penso em fazer. Mas prefiro não me comprometer com nada. Isto diz muito, eu sei.
Sergei Dovlatov, em Pushkin Hills, diz algo parecido em um contexto totalmente diferente, claro. Ele diz que, em toda a sua vida, detestou qualquer tipo de comportamento ativo…, deixou que as circunstâncias tomassem a liderança. E isto o ajudou a encontrar uma justificação para tudo. Ele diz: qualquer passo decisivo impõe responsabilidade. Então deixemos que os outros sejam tomados como responsáveis. Inatividade é a única condição moral. Em um mundo perfeito, eu teria me tornado um pescador. De qualquer forma, já disse, ele estava em uma situação totalmente diferente da minha e, sabemos, existe responsabilidade na passividade ou, como queiram, na omissão.
Mas, deixando isto de lado, eu agradeço a sua bondade e generosidade. Poderia acrescentar apenas que o meu percurso estaria mais para o caldo das experiências que me atravessaram – ou fui eu quem as atravessei sem que soubesse, sabendo, ao menos, um pouco? Minha honestidade leva a desencantar certas questões, embora minha atividade como poeta possa contradizer tudo isto. Porque, ora, está escrito, no Juventude, que o meu ofício é deixar o coração aberto permanentemente. Então, ao menos, meu ofício o deixa aberto, ao meu coração. Bom, acho que isto diz alguma coisa. Meu coração de campana, à espreita das coisas que ocorrem e, também, um coração vadio, que se deita à rede ou à cama e vê o tempo passar, sem saber direito o que está a fazer, mas fazendo algo em sua inércia. Imóvel, mas não inerte, vês?
FM | Uma espreita sem pudor de tocar o coração do inesperado, sem o incômodo da incompreensão. Completamente alheia à tradição lírica brasileira mais recente, a começar pela creditada a teus pares, em especial por essa fusão de comportamentos, do sangue e da língua, vou me valer um pouco de Dovlatov, em um mundo perfeito, quem se tornaria a Laís?
LAA | Floriano, é preciso que eu diga: se o inferno não existisse, o homem o criaria, não? Em um mundo perfeito ou ideal, eu jamais existiria. Isto é, existiria uma outra, mas não esta que diz eu.
Para começar – e finalizar –, se sou indolente para ficar dias inteiros pescando, se pescar eu soubesse, meu espírito ficaria todo escalavrado se fizesse isto para sempre, se me tornasse alguém do mar, por exemplo. Talvez, tenha sido por isto que me tornei a poeta que sou – ou me deixei tornar –, porque não consigo me comprometer inteiramente com uma coisa, não consigo me deixar satisfazer tão-somente por ela. Se eu jogasse tênis todos os dias, como nos meus melhores sonhos, eu seria tão infeliz ou feliz como sou agora. Isto diz algo? Ora, em um mundo perfeito, imagino que as pessoas não precisem nem se comunicar. E o que eu teria para fazer lá? Não sou tão criativa assim.
FM | Juventude (2018) vem agora seguido por Nós só compreendemos muito depois (2020), que já se prepara para publicação. Dois títulos ousados, saborosos e que se complementam. Manuscreves os teus poemas? Neste novo livro a tua metafísica permanece cultivando o próprio jardim?
LAA | Via de regra, eu começo escrevendo em um caderno. Mas, nos últimos tempos, abro logo o computador. Dá-me preguiça, depois, passar da mão ao teclado.
Acho que resumiste bem tudo o que eu não disse nesta entrevista: a minha metafísica, se eu tenho alguma, está em cultivar o próprio jardim. Se, no novo livro, eu me arrisco em questões mais abstratas e me mantenho nelas por mais tempo, é, talvez, apenas em função de certa expressividade ou de um jogo entre o particular e o universal. Porque, a meu ver, todo particular é universal e todo universal é particular. Bom, perdoe-me se não sou mais explícita. Talvez eu mesma não entenda mais que isto.
[2020]
3 Poemas de Laís Araruna de Aquino
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ATRÁS DO NOME
dizemos a palavra casa para referir a uma casa
dizemos casa e indicamos com a mão –
temos um nome
dizemos esta é uma casa, a minha
e ao alcance das mãos estão as coisas a que referimos
nós somos os que colocam o mundo à distância
das nossas mãos
então, quando caminhamos, atrás de nós caminham
os nomes; à nossa frente, caminha o passado
e, quando vemos o futuro, dizemos o passado
um homem não sabe que pode deixar os nomes
no chão e caminhar com as mãos vazias
sempre dirá isto, sempre dirá aquilo
não sabe que pode deixar os nomes no chão
e ancorar sua casa no vazio
sempre dirá isto ou aquilo
porque não sabe que pode se livrar
do vazio, livrando-se do nome
não sabe que pode desancorar dos nomes
habitando o vazio
ESTAR-AQUI É EXCESSIVO
Da oitava elegia de Rilke escolho o verso
estar-aqui é excessivo como título deste poema
estou em casa, sentada à mesa e escrevo
estou em face de coisas e abro-lhes um parêntese
no mundo
não basta estar aqui desde que isto significa
a consciência de estar-aqui em face de coisas
considero-as por um instante e ouço-lhes o chamado
ou sou eu que lanço um apelo incompreensível
eis a cadeira, a mesa, as folhas do bambu mexendo
ao sopro do ventilador
mas isto não é tudo
essas coisas remetem-me a mim mesma: o que faço
entre elas, qual o sentido desta remissão?
tomo tempo suficiente meditando a questão
tomo consciência de que o tempo atravessa este momento
e o ar torna-se pesado
tomo consciência desta consciência que ocupa as vigílias –
somos o que estanca em face das coisas
pondo-se a si a questão do que faz entre elas
enquanto é arrastado pelo destino de ser o remetido
ao próprio destino
sim, estar-aqui é excessivo
CONVITE
A terra abre suas pálpebras
e oceano e céu são um convite ao fim do mundo
os seus cílios são brancos cúmulos na dissolução da tarde
há um incêndio de sombras e sangue,
sem qualquer ruído
é apenas o sol deposto e a passagem do dia,
um estremecimento forte da pele, um respiro
mais fundo e as velhas questões acossando
tua consciência irredutível de estar vivo agora
e não depois
então diz adeus, despe a tua condição de estrangeiro
deixa que a tua matéria seja a água e o esquecimento
do gosto acre da saliva deglutindo a seco
o contato incômodo com a existência
os dias que foram, os dias que virão
teu medo mais derradeiro
tua angústia mais inominável
deita-os na coluna de espuma
enquanto o corpo é envolvido pela escuridão,
que não te pede absolutamente nada,
a não ser o silêncio profundo da tua alma
e das tuas obsessões calidamente cultivadas
escuta só o corpo latejando na concha
fria do universo, reverberando abandonos
e o êxtase da solidão
escuta esta canção de muito longe,
que todos os homens, em todas as épocas,
já ouviram, sentindo a escassez infinita
de si ante o pálio frio e espectral das estrelas
este ar, este mar não te saúdam
mas te recebem
se tu deixas a ti mesmo para trás
Maravilhosa Laís!
Encontre-me em tanto do que ela escreve.
Coisificar as coisas todas é luta dos que escrevem e ficam tontos entre o referente e referencial.