Leila Ferraz (São Paulo, 1944). Poeta, artista plástica, tradutora
O HÁLITO DO VENDAVAL
Há folhas espalhadas por todo o jardim, e venta
como se não houvera vento antes desta manhã.
Leva para o mar todas as memórias da luxúria.
E eu me abro para mais um dia, outro dia, novo dia.
Para quem perdi meus dedos nesta noite.
Acordei com estrelas e bambus.
Odores sensuais cozeram meu corpo à cama
e as lembranças de sedas, rendas, cadeiras tombadas
e ilógicas derramaram um esquecimento lilás.
Meu leque roxo se fechou de medo
e o vento grita seu nome através do canal.
Procuro a terceira lua de Júpiter em pleno dia
e minhas virtudes já se confundem em confissões.
Taras me perseguem por todos os lados
e me viram do avesso enquanto rezo o café da manhã.
EXTENSÕES DESCALÇAS
Há um véu vindo de não sei onde,
nublando a imagem esmaecida
e pronta para caminhar.
O sonho brinda a manhã
e as lembranças permanecem.
Um outro dia pronto para acontecer
entre o limite possível e o deslumbramento.
O que será? Quem virá?
Enquanto não vêm as respostas
⎼ e não virão ⎼ eu construo
o dia sem arrimo, sem cal e sem saberes.
OLHARES TROCADOS
Não sei mais o que é olhar para dentro de um homem através de seus olhos.
Não consigo imaginar um homem procurando o meu olhar
– que foge de pudor – ao sentir seu coração despido
e a nudez do desejo revelando suas formas.
Meu rosto desfigurado pelo tempo e sem máscaras ou pinturas
é cego como as estátuas gregas.
A velhice e suas dores agonizam todos os pecados,
banindo a culpa e os remorsos gravados a ferro e fogo sem piedade da pele que abriga minha alma.
Solitária em minha frágil taça de cristal
posso apenas sorver o vestígio azul do teu licor.
E uma lágrima eterna desce a face pelos caminhos já tão percorridos pelo tempo.
Dedos mímicos ainda moldam um ritual de sombras
que se entregam à vertigem do teu olhar olhando o meu.
OFERTÓRIO
Dou-te esta manhã fria e molhada,
por uma réstia ensurdecedora de almas.
Minha mãe geme de dores,
e nada posso fazer, a não ser distraí-la
em seu catre de persistentes eternidades.
Ela fala sozinha e se esquece do que disse.
Confunde o amanhã com o ontem.
E eu ainda me assusto com o futuro.
O dia de hoje é quase uma lágrima fugidia.
Minha mãe soletra uma repetição de mil vidas.
Vou colocá-la em meu cavalo branco,
quem sabe a galope enganemos a dor.
ANTES QUE O SOL SE PONHA
A aparição misteriosa desta deusa universal
– grande mãe terra – surge de relance
insinuando sortilégios e mistérios das profundezas
que deverão se revelar. Algo mudou. Um estado de ânimo.
A premonição de um tremor desconhecido, assustado.
Uma pausa solene invade esta caverna
de transparentes águas azuis… Passos cautelosos,
sobre o que não pode ser controlado,
deixam suas pegadas repletas de silêncio.
Pisam sem saber ao certo aonde querem chegar.
São a pausa solene para o descanso dos desejos
que se desconhecem das máscaras usadas
em seus inumeráveis atos de loucura.
Um arrepio delicado sopra um berrante
de sigilosas mensagens, por enquanto inaudíveis.
Os pares descansam de abruptas tempestades.
E tateiam murmúrios delicados e inquietos,
enquanto o sono se esvai sem deixar o menor vestígio.
LÁGRIMAS INSUSPEITAS
Algumas mulheres de minha geração sofreram muito
com a usurpação do tempo que devia ser delas.
Não há ouvidos para meus apelos.
É como se eu tivesse enraizado meus pés em uma terra devoluta
e meus braços se agitassem unicamente com a força dos ventos em fúria.
Doem-me as feridas de um tempo que passa levando consigo
meu corpo e flagelos da alma para a cova rasa do esquecimento.
Mais do que nunca hoje eu fui embora.
Para bem longe, onde a liberdade me escolta presa à arquitetura da satisfação solitária.
Sou uma civilização perdida e isolada do mundo.
Presa em um retângulo de sacrifícios.
Meu desgosto é trágico como uma ópera de cavernas.
Só me resta pouco tempo neste corpo cativeiro de almas.
A OUTRA ESCRITA DA PELE
Das palavras apanhamos, de seus músculos esquivos,
com elas nos confundimos e nos acertamos.
Sofremos e nos flagelamos pelos pensamentos
que se vertem em poemas.
Um gesto louco e dominador nos joga sobre telas e papéis,
onde tatuamos nossas almas com tintas dolorosas e arrebatadoras
e nos expomos em roupagens orgásticas.
Esculturas arrancadas de seus conceitos
e colagens infinitas de sonhos revelados.
Meu corpo é o corvo que me devora o fígado.
Meu corpo é a cereja que escorre pelas tuas pernas.
Meu corpo é o livro que defloras página por página,
apesar das minhas súplicas.
Queres arrancar minha alma custe o que custar,
de seus temores e pudores, e da inquietude que a ilumina.
Queres me expor sem que eu exposta esteja.
Meu corpo de solfejos e pérolas é escravo de sua história.
É o laço. Um ponto. Uma linha. Um plano.
Nenhuma surpresa. Conheço a Leila poeta há quase quatro décadas. Já publicamos no Leia Livros como novas revelações da poesia brasileira, lá pelo final dos 90. E fizemos juntos um dos primeiros saraus do pós ditadura: Poesia Linguagem Universal. No Jornal Nacional, eu, Leila e o poeta Ramiro Nascimento declamamos nossos poemas por oito minutos. Tudo com uma incrível ambientação de espelhos numa reportagem da jornalista Sabrina Petrovski. Leila é um talento em poesia,fotografia e artes plásticas.
Hamilton Faria
Hamilto, agradecemos pelo seu depoimento. muito significativo para a memória da poesia brasileira. abraço