Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 30
Organização e tradução de Floriano Martins
Certa vez se disse que o romance póstumo João Ternura (1965), de Aníbal Machado, possuía uma relação com o surrealismo que vinha de seu humor. Era certo, em termos, não fosse o fato da crítica ter deixado de lado essa relação em outros livros seus. Em primeiro lugar, é mais do que simplesmente o humor, e mesmo neste caso teríamos que observar a extensão e intenção desse humor, por vezes corrosivo, que destruía tanto a linguagem quanto a moral. A sua narrativa é composta de relatos, prosa poética, cartas, fragmentos reflexivos, o que faz de João Ternura um romance híbrido que percorre várias experimentações. Além disto havia a sua passagem pela poesia e o aforismo – Aníbal era um mestre neste gênero. O ritmo intenso e vertiginoso de sua escrita fez desse autor um dos nomes mais renovadores, com sua alma permanentemente irrequieta, criou um personagem (ele mesmo?) que a todo instante desacatava a realidade. Portanto, estava certo o crítico Oswaldino Marques ao dizer de Aníbal Machado que ele foi um dos maiores surrealistas brasileiros. Sem esquecer um outro livro seu, Cadernos de João (1957), que seria plenamente possível incluí-lo entre os nossos grandes livros surrealistas, vale recordar que Aníbal defendia a adoção do surrealismo como um modo de liberar as forças vivas retidas no subconsciente, o que permitiria encontrar as forças vivas da poesia. Para tanto, segundo ele, não apenas o humor era arma indispensável, mas também o sonho, o ludismo, o mistério, o absurdo e tudo o que lhe permitisse invadir a realidade e lhe expandir a visão de mundo.
O SILÊNCIO POR DENTRO
Recolher as palavras
Apagar os sinais
Destruir a cidade
Despovoar o silêncio
Sorrir debaixo das águas
Esperar dentro da pedra.
OS PERSONAGENS
Sempre assim: chega quando é menos esperado, quando o supõem desparecido ou morto.
Entra, deslizante e vago – meio corrente de ar, meio fantasma. A roupa neutra, o olhar alucinado, a idade indecisa. Mal acaba de chegar, verifica que “não é aquilo” e pede o chapéu. Rápida é a sombra que marca em seu rosto a passagem do entusiasmo à decepção.
Retira-se então, as narinas palpitando ao fato de alguma coisa que ainda não apareceu e está quase… Quase a surpresa… quase o encontro maravilhoso…
Nunca se lembra do que lhe sucedeu na véspera e nem faz planos para o amanhã. Mas não quer perder um minuto sequer das horas que escoam, e nenhuma das possibilidades deste mundo lhe é indiferente. Sofre ao pensar nas coisas que possam estar acontecendo, longe, à sua revelia.
Na verdade, é um tipo que nunca se senta, nem chega a chegar completamente. Está sempre saindo. E saindo sempre com o ar de quem vai atirar-se pela janela…
O TERCEIRO
Meu duplo é insuportável. Em sempre brigar comigo. Quando não é para brigar, é para zombar.
Se boto asas, ele acrescenta um rabo. No momento em que pretendo ensaiar o voo, ele me obriga a rastejar.
Mãe, não posso ser o anjo que você pediu. Os caminhos da inocência dão para a estrada do mal.
Minhas purezas acabam em porcaria.
É ele, mãe, é ele que me atrapalha!
Se descubro um irmão, ele me envenena: “Cuidado, pode ser um inimigo”. Se me entusiasma um gênio, ele interrompe: “É possível, mas tem algo de imbecil”.
Se tomo qualquer iniciativa, ele me pergunta: “Para quê?” Se não faço nada, ele finge espanto: “Ué! Morreu?”
Sempre assim, travando minhas peras quando me manda caminhar, instilando-me a dúvida quando me convida a crer. Até ao meu sono ele desce e interfere nos sonhos.
Quando meu duplo mais entretido se mostra comigo, então e aproveito e fujo… Abandono os dois e formo o terceiro.
O terceiro é a delícia da libertação, longe da vítima e de seu sadista.
Como terceiro, assisto à briga dos dois. É um espetáculo. Aprendo os golpes. E me exercito para combater com vantagem os inimigos que ficaram de vir.
Eles parecem que são muitos. E já estão descendo do futuro…
ÚLTIMA CARTA DE PERO VAZ
Digo a Vosmecê que no fim da planície há um gigante fumegando
Uma viúva sem consolo e um pássaro conversível
Debaixo das árvores
Os suicidas vomitam o retrato da amada
Os bichos roem o código das águas
No caminho do mar as pedras não respondem
Vive-se a combinar a linguagem dos homens
Com os traços imerecidos
Da sombra deles na poeira
Nas grandes linhas adutoras
Passam fora do horário
Invisíveis cavalos
Não é segredo
Que por elas fugiram os principais culpados
Daquele crime ao crepúsculo
De que hei falado a Vosmecê.
Dentre mais coisas que vi
Há que notar
Nos solstício de verão
Prateleiras de luz derramando no céu
E na posta-restante
Um ventre de mulher
Com o sobrescrito apagado
São tão compridas as distâncias
Que os cavalos se fundem no horizonte
O horizonte ao jóquei
E o jóquei ao vento
Há um violão escondido na garoa
E uma moça fugindo dentro do violão
Seus brincos são dois ninhos de passarinho
Há um foco de generais
Ao pé de uma bananeira
Uma rainha se banhando na cascata
Cifras de um cálculo abandonado
Transformadas em colônia de formigas
Debaixo das areias
Há um cassino-iceberg
Que desce devagar
Para os mares do sul
Há uma nuvem metida em aparelho de gesso
Diversas virgens coloridas gemendo
Sob o cascalho de aluvião
Há um som corrosivo de sino
Atacando os profetas de pedra
Uma planície em disparada
Com os bois fora do prumo
Um sol de metamorfoses
Um rio morrendo de cansaço
E navios de sombra
A navegarem pela floresta
Procurando-se bem
Nota-se ainda
Uma coluna de vapor e pasmo
Que vem subindo há milênios
E há a vida em geral
Que é servida e ninguém quer…
[UMA BARRAGEM QUE SE ROMPE É UM DESRECALQUE VIOLENTO]
Uma barragem que se rompe é um desrecalque violento: o rio que realiza o velho desejo de voltar ao primitivo leito. O mais concentrado de todos os silêncios, o que reúne as forças de cosmos e resume numa tensão extralúcida as experiências do temo, o silêncio dos silêncios – é aquele, de poucos instantes, anterior à catástrofe que sabemos irremediável e próxima. A explosão vai dar-se ou o afundamento: os minutos têm o peso da eternidade, escurece sem que a luz caia, a morte já procedeu à nossa chamada. Nesse momento, a única saída é virarmo-nos para o outro lado da vida e nos vermos passeando no jardim do bairro, parados nalgum terraço ou sentados numa espreguiçadeira, a apreciar o próprio desastre que nos vai vitimar. Se ocorrer alguma frase de ternura familiar, por exemplo: “Vamos dormir, meu bem?” – manifestação alucinatória de um desejo de volta à segurança em circunstância impossível – o trágico poderá ser evitado.
Esse tipo de sublimação, efeito involuntário do próximo medo, poderá a futura vítima desenvolvê-lo em exercícios preliminares, situando-se mentalmente num desastre imaginário… e fechando os olhos.
A MOENDA
O que deixou de ser
e flutua sem rumo
folhas insetos
bolhas
ecos
rumores de passos
rolar de carruagens
O que vive imperceptível
e se expande sem nome
apelos perdidos
gemidos de sombra
sonhos cancelados
tudo sobe
à roda do pensamento
Clamores da noite
escória dos dias
cincas de amor
tudo o que se vê
passando longe
pelos filtros do vento
Entre os dentes da moenda
se reduz a fantasmas
do tempo
e ossos do espaço
detritos
do mundo.
INICIATIVAS
Faça o que lhe digo. Solte primeiro uma borboleta.
Se não amanhecer depressa, solte outras de cores diferentes.
De vez em quando, faça partir um barco. Veja aonde vai. Se for difícil, suprima o mar e lance uma planície.
Mande um esboço de rochedo, o resto de uma floresta.
Jogue as iniciais do lenço. Faça descer algumas ilhas.
Mande a fotografia do lugar, com as curvas capitais e a cópia dos seios.
Atire um planisfério. Um zodíaco. Uma fachada de igreja. E os livros fundamentais.
Sirva-se do vento, se achar difícil.
Eles estão perdidos. Mas nem tudo o que fizeram está perdido.
Separe o que possa ser aproveitado e mande. Sobretudo, as formas em que o sonho de alguns se cristalizou.
Remeta a relação dos encontros, se possível. E o horário dos ventos.
Mande uma manhã de sol, na íntegra.
Faça subir a caixa de música com o barulho dos canaviais e o apito da locomotiva.
Veja se consegue o mapa dos caminhos.
Mande o resumo dos melhores momentos.
As amostras de outra raça.
Com urgência, o projeto de uma nova cidade!