Roberto Piva (São Paulo, 1937-2010) – Série um Século de Surrealismo / Poetas

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Série um Século de Surrealismo – Poetas, 09
Organização e texto de Floriano Martins
Os poemas foram reproduzidos do blog de Claudio Willer. A reunião deste material é uma homenagem nossa ao grande poeta que foi Roberto Piva.

Roberto Piva quase sempre em sua vida foi um poeta, como ele próprio disse um dia, marginalizado. Mesmo quando o elegeram um dos marginais da poesia brasileira, pela inclusão na antologia de Heloísa Buarque de Holanda, ou mesmo agora, mais recentemente, quando da publicação de sua poesia completa em valioso projeto editorial. Um marginalizado sob muitos aspectos, por suas estranhas imagens corrosivas, pelas ações por muitos acreditadas como virulentas, pela multiplicidade voraz dos registros de sua poética – sobretudo por incompreensão e preconceito.

Poeta desprezado e cultuado com talvez idêntico grau de cegueira. Situado pela crítica em um labirinto de afinidades que não ultrapassa os lares da literatura e das artes plásticas. Embora correta a leitura de suas declaradas conexões com tais áreas, resta sempre esquecida a paixão essencial e não menos influente em sua vida que constitui a música. O próprio poeta nos dá inúmeras pistas, que vão do rock ao jazz, de Carl Orff aos tambores do candomblé, passando pelo samba-canção e o experimentalismo de John Cage.

Roberto Piva é um raro poeta brasileiro em profunda sintonia com a música, o que inclui a canção popular, em que um dos exemplos é o rock lancinante de Jim Morrison, o poeta-compositor, figura emblemática da banda The Doors, mas não somente ele e sim toda uma geração lisérgica, com Brian Jones, John Lennon, Keith Moon, conexão que Piva soube filtrar juntamente com os momentos mais agudos da Beat Generation, sem se deixar apanhar ou adotar por núcleo algum, ao mesmo tempo, ele, parte de todos e nenhum.

Pensemos em Jim Morrison. Quando escutamos em Strange days o verso we shall go on playing or find a new town, ali está presente Piva com a São Paulo que soube desentranhar como uma alucinação que toca o fim do mundo e as cidades sem limites que ele evoca em seus poemas. Morrison com quem também dialoga na poesia, como sugerem as imagens de An american prayer, tanto em celebrate symbols from deep eider forests como we’re trying for something that’s already, found us. Em todos os sentidos coincide com a voz de Morrison ao dizer que a música lhe acende o instinto. A música ali está em Piva, não apenas como referência culta, como fonte de registros para um diálogo poético, mas também como parte essencial do cenário de suas tramas, presente também na vida de seus personagens, no Barney Kessel que ele próprio escuta ao escrever um poema, nos violinos enfadonhos que compõem a paisagem de Os escorpiões do sol, no porno-samba que dedica ao Marquês de Sade ou ainda no batuque dos tambores com que ele próprio se faz acompanhar ao ler sua poesia.

A imagem, a metáfora, a extravagância, a tempestade orgíaca com que povoa suas cidades-poemas, nada faz sentido longe do espaço cósmico samba-canção do nada, longe do tambor do xamã, longe do piano ocidental que Dante afinou no buraco ameno do purgatório, infinidade de notas que semeia nos ouvidos de entidades, deuses, demônios, querubins, garotos perversos, sempre queimando na própria pele de seus escritos estas palavras seminais: o mundo vive na partitura sublinhada do meu sangue o seu único esplendor. Sem música não há Roberto Piva. Seriam insuficientes as pontes que ergue entre o poético e o plástico, entre Guimarães Rosa e Di Chirico, entre as ruas que bebe com seus garotos e os cancros que denuncia na lírica de seu país. A riqueza brasileira que adverte em seus versos ganha força incessante no ritmo das linhas cortadas, na afinação de referências aparentemente díspares entre si, como uma gafieira de abismos volumosos, tornando sua poesia o que ele próprio define como um samba turbulento, o samba da luminosa escuridão de Osíris, Piva no batuque de vísceras, Sun Ra e maracatu, jazz e forró nuclear, Nelson Cavaquinho e carnaval de rua.

O poeta que deu ritmo frenético à poesia, revelando uma fonte de prazer orgíaco que é a própria matriz de cantares, evocação de deuses, festa cósmica e entrada na matéria da vida com suas estações de erros e delírios. A poesia dança com ele em sua partitura errante. Roberto Piva com sua macumba de sons e um samba temperando as tripas de seu mergulho na existência. Absolutamente música & longe de limitar-se a ela. [FM]


POEMA ELÉTRICO DO CU
 
músculo de veludo na boca de todos os feirantes         torpedeiros         meninas de internato         negociantes         padeiros         farofeiros         torcidas         exércitos de humanocultura         onde você habita alucinante como         derradeira
 
cu boquiaberta entrada franca dos demônios         pesadelo dos adolescentes         fogueira da         solteirona em férias         árvore genealógica         da Cloca Mater onde foi chocado         o ovo humano numa temperatura         de 300 sóis
 
cu fonte de energia kundalini         hóstia dos         grandes libertinos         fornalha dos         cocainômanos         boca azulada da         verdade corpórea diagramada no infinito do desejo         cu grande iniciador         de tempestades amorosas         vertigem verdadeira         onde os amantes deslizam
 
cu vaporizador da Idade Média do corpo         onda bioenergética de metais coloridos         omoplatas carregadas de hidrogênio         leopardos alucinados de tanto veludo 
 
cu de cabelos negros         loiros         ruivos         castanhos         cipoal de intrigas   onde o caralho         se perde         se desnorteia         desmaia de gozo         na contração do espasmo da alegria erótica
 
cu selvagem assaltante noturno         diurno         trombadinha         espadachim das estradas         que levam         ao Grande Precipício anunciador de Paixões
 
cu das penugens suaves & sumarentas         flor carnívora         labareda policiada pela civilização         ave louca         solitária         perdida         bêbada         amorosa 
 
cu proletário  do  corpo         grande escorpião revoltado         teu voo de liberdade começa  a acontecer
 
*****
 
 
BILHETE PARA BIVAR
 
hoje é o dia que os
          anjos descem nas
          catacumbas de cimento
sem o aviso das
          máquinas de empacotar
sem saltar sobre
          caramanchões de poluição
disseminando comportamento
          de Lacaio
é o momento do
            último homem
o que dura mais
            tempo
é o tempo do crime
            & sua prova
a caveira que ri
            na noite vermelha
a explosão demográfica
& a fome a galope
é o Sol mudo a
Lua paralítica
Drácula janta na
esquina
E para que ser poeta
em tempos de penúria? Exclama
Hölderlin adoidado
assassinos travestidos em folhagens
hordas de psicopatas
  atirados nas praças
enquanto os últimos
poetas
perambulam na noite
acolchoada
 
*****
 
O HINO DO FUTURO É PARADISÍACO
 
Este poema ê dedicado aos presos políticos do Brasil-
Contra a tortura, pelas liberdades democráticas
un cor feroce.
una virtute armata…
MACHIAVELLI
 
I
Todas estas embalagens mortas
todas estas estatísticas tolas
todos estes desabamentos dos miolos da Terra
todas estas moscas vaporizadas nos olhos dos dementes
todas estas hérnias jogadas no lixo
todas as autópsias surrupiadas no escuro
todas as mãos decepadas eletrocutadas esmagadas
todas as bocas urrando sob o mesmo focinho incerto
toda a voracidade da TV & suas sucuris metálicas da desolação
todos estes brinquedos tristes carregados de bala de goma
todos os enforcados de cabeça para baixo
toda esta merda de marchas cívicas
todo o soluço do país soluço mais fundo que o coração rubro da aurora
todas as academias & seus poetas empalhados
todas as pupilas do crime
todos os gorilas da guerra-fria & sua pop music
todos os garotos de 15 anos com cérebros de catarro esperando a sepultura
todos os hippies de butique brincando de profetas enquanto costuram os olhos do estudante
há uma porta trancada na cara do país
há um anúncio classificado que escapou da Idade Média
há uma paisagem dilacerada escamoteada em símbolos mais castrados que um cantor de rock
 
II
 
Neste momento uma ave desova o poente no calor de novembro entre duas rochas onde a primeira é toda de cactos selvagens relutando como um segredo relutando como o degredo da tua mais simples ilusão os ovos rolam nas trevas onde rondam tigres para passar o tempo o tempo o tempo o tempo
 
III
 
Crianças deste mundo
Mares deste mundo
Flores deste mundo
homens, mulheres corações da noite
no fundo do olho do furacão
na ponta da faca do espaço
na franja vermelha das cidades
tua febre é o último adeus à resignação à moléstia cardíaca do tédio
tua febre é a saída apertada entre dois goles de vida
 

IV

para aqueles que vomitaram sangue
para aqueles que ofertaram o último suspiro
para aqueles que o raio X é o espectro de um crocodilo acendendo um cigarro
para aqueles sozinhos
para aqueles que se calam diante dos regulamentos
para aqueles cujas almas se transformaram em geleias de pura transcendência
para aqueles que não têm a Bahia como válvula de escape curtição do grande embalo refrigerado tudo bem bicho legal tamos aí
para aqueles para os quais tudo é ilegal & que vivem como bichos contra a vontade & fedem nas prisões estando aí à disposição da bússola dolicocéfala da repressão
para aqueles que são procurados infernizados enquanto tudo bem tudo bem canta a televisão na sua primavera animal
para aqueles cujos estômagos viraram papa & seus cérebros cartuchos de dinamite
para aqueles que não têm mais filhos
para aqueles que perderam seus amores no último trem blindado do Esquadrão da Morte
para aqueles que acordam sempre no mesmo lugar na mesma manhã no mesmo arco-íris quebrado.

 

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