APOCALIPSES | Tríptico de Wolfgang Pannek

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Wolfgang Pannek | Alemão radicado no Brasil desde 1992. Diretor teatral, produtor cultural, cineasta, ator, autor e tradutor. M.A. (filosofia, letras e psicologia) pela FernUniversität Hagen (Alemanha). Doutorando em filosofia na Academia de Artes de Leipzig.  Ao lado de Maura Baiocchi, é diretor da Taanteatro Companhia (São Paulo) e co-autor e organizador de sete livros, publicados entre 2007 e 2022, sobre o taanteatro ou teatro coreográfico de tensões. Em 2021, publicou o livro Bilder der Macht. Das ikonoklastische Denken Gilles Deleuzes (Imagens do poder. O pensamento iconoclasta de Gilles Deleuze), Transcultura, SP, 2021. Publicou artigos em revistas acadêmicas e culturais no Brasil, na Argentina e na Alemanha. Concebeu e dirigiu espetáculos de autoria própria e a partir da obra e vida de autores como Tabori, Beckett, Pessoa, Nietzsche, Artaud, Deleuze e Guattari, entre os quais a trilogia cARTAUDgrafia e 1001 Platôs. Produziu e organizou múltiplos eventos internacionais em torno de Antonin Artaud e Gilles Deleuze. Em 2020, dirigiu o projeto cinematográfico Antonin Artaud’s The Theater and the Plague. Em 2021, dirigiu junto com Maura Baiocchi o filme APOKÁLYPSIS. Desde 2021, é diretor de produção do Festival Internacional de Ecoperformance.


Flamenco

Mar Chiquita, espejo glacial,
aflorado entre Chaco y Pampa
entre florestas secas y pastizales dulces

Cuenca-encuentro
del Mishqui Mayu, Suquía, Xanaes
ríos caudales de las sierras y cumbres altas

Mar interior cruzado
por cardúmenes de flechas plateadas
cercado de humedales halófilos

Territorio fluctuante
donde abundan
los amantes de la sal

Crustáceos, moluscos, gusanos errantes
algas, larvas, cianobactérias
criaturas a la deriva
y el predador que coloran
– tokoko, parihuana, chururu –
el flamenco

Pájaro rosado, pájaro rojo-sangre
los continentes conocen
tu vuelo nocturno

Tu sueño color de fuego
se cierne sobre las lagunas saladas y dulces
de Mundos Nuevos y Viejos

Coucucuoc … gyeeeoe … coccou
Tu canto crudo
resuena en zonas extremas
desde el eoceno hasta el antropoceno

Errática y sedentaria
tu fidelidad pertenece a la extravagancia escarlata
al baile alado de las multitudes
a las líneas oblicuas y cuñas tormentosas
dibujadas sobre océanos cósmicos:

Aire y agua
livianos, fluidos, húmedos
engendradores y sostenedores
de la vida
Pero tus migraciones
pájaro mítico
están cada vez más cortas
tu nido arcaico
está amenazado

Minería, toxinas, basura
Contaminación
de acuíferos, ríos, lagos, mares

Polución
doméstica, agrícola, industrial
plaguicidas, fertilizantes, insecticidas

Excesos
inorgánicos, orgánicos
Explosión bacteriana
Paralización
de la respiración
Transfiguración del cuerpo agua
en pozo fecal

Pájaro milagroso
tus hermanos del Quénia
encanecidos en el Vale del Rift
su muerte pálida
por mercurio, arsénico, cromo y plomo
más allá de un presagio
un pajarocídio

Contaminación y calentamiento
guerra planetaria atroz
contra tu pueblo, tu cuerpo
tu obra:

Traslado
de luz a la oscuridad
de oscuridad a la luz

Evoluciones incendiarias
al redor del horizonte

Vuelo según tu naturaleza
velocidad perfecta

aquí ahora
recreación de la Tierra solar


Ode Infernal

Ó
memória fóssil de eons arqueanos
repósito pétreo de poeira estelar
e morfoses primevas
quando águas e ares se dividiram

Ó
bactérias, plantas, plâncton
sob calor, pressão
quebrados e transfigurados
em petróleo, gás, carvão

Ó
inconsciente da Terra
nas jazidas das trevas
solo negro dos começos e fins
a meio passo do sol interior

Ah
especialistas da prospecção terrestre
acionistas, cientistas, engenheiros, peões
de origem obscura, futuro luminoso

Ah
peritos das sondagens continentais
farejadores satélites, sismológicos
de fluxos, gravitações, magnetismos infernais

Ah
nucas duras do progresso
caçadores de lucro e fortuna

Não há
deusa protetora imune
às investidas-choques
de seus capacetes de cão
e à penetração
de sua brocas-diamante

Nenhuma
crina de víboras
capaz de petrificar
a descida-regresso
sem dor, culpa, pranto
pela fenda tenebrosa
à encharcada caverna ctóniana
Ó
azeite dourado, vinho fogo
méthy hýlē naptu naphtha
seu piche santo ungiu há muito corpos e casas
ruas, muralhas, torres e lança-chamas
em terras babilônias, persas, romanas, chinesas e iroqouis

Hé-lá Hé-lá
farra da extração
triunfo da luz, da locomoção
hé-lá-hô
febre-fúria tropical
comércio ciência capital
eh-lá eh-lá eh-lá-hô
nova revelações
inventos, indústria, guerras-invasões

Eia eia
promessa missão
a nova vida por inovação
pensar além, conquistar o além
a vida futura e sob medida
criada por uma mente-líder
profunda e artificial
a anos luz do planeta atual
e com presença-poder sentida
por uma casta escolhida, clientela ideal
neuro-centauros do palácio celestial

Eia eia eia-hô!
Era da combustão
petróleo, gás, carvão
política fossil d’agressão estufa
tufa tufão
guerra carbono e profusão
de polímeros nos ares e mares

Tohu tohu

Ó
salvação pela razão
revolução do submundo dos mitos, mortos, monstros
por códigos, algoritmos e superinteligências pós-mundanas
Transcendência
do humano pelo transumano
da natureza pela pós-natureza

Tohu tohu tohu va-bohu


Hamlet em Necrópolis

Arav respirava cada vez mais rápido.
Sem fôlego, com pulmões em chamas
dores infernais no crânio
só queria morrer.

Ó tempo fora dos eixos!

             Visto-me de sombras, pai
             lavo e cubro teu corpo
             com talco perfumado.

Quando parou de inalar, Thabisa foi sedada.
Por duas semanas, um ventilador empurrou ar
para seu peito
até o pulmão deteriorar.

Ó tempo maléfico!

              Vestido de carvão, mamãe
              velo teu corpo
              à espera do último destino.

Stepan deitou de bruços, paralisado.
Em vão, os enfermeiros o reviraram
de hora em hora
para impedir a ruptura de sua pele.

Ó calamidade do tempo!

              Em trajes de tristeza, irmão
              compartilho contigo
              a derradeira refeição.

Guang resistia entre dois cateteres, venoso e uretral.
Uma máquina coração-pulmão movia seu sangue
quando o monitor multiparamétrico cessou
de registrar seus sinais vitais.

Ó tempo de desespero, irmã!

             Canto
             choro
             e desmaio.

Elinor exalou o suspiro fatal
sem pânico nem dor.
Em coma, perdeu a vídeo-chamada do marido.
Ninguém segurava suas mãos.

Ó tempo inominável, mulher!

              Derramo sangue na terra.
              Aos teus pés deposito
              meu coroação buquê.

Ibiri sufocou, contaminado na fila hospitalar
arrancado dos braços da mãe e da aldeia.
Desapareceu sem virar morto, em terra incógnita
de onde nenhum viajante retorna.

Piza wai, Piza wai, uuu ibade,ibade. Piza Wei Piza Wei, uuu

                Onde, filho, estão tuas brincadeiras,
                teus saltos, tuas canções
                teus raios de alegria?

Ó, filho, já não estás!
Ò mwananga, awehele cona?
Já não passo a mão em teu corpo
desertado de gritos, dança, pranto e canto.
Já não pinto tua cara de penugem e urucum
nem choro com o fogo que devora carne, casa e pertences.
Já não como tuas cinzas-mingau na Terra-Floresta do Orinoco
nem purifico esse teu pó nas correntezas dos rios Ganges, Volga, Limpopo ou Mississipi.

Já não ofereço teu cadáver aos abutres do planalto tibetano
nem o enterro em direção à sagrada mesquita.
Não iço tua vianda no pinheiro sepulcral Inuit
nem alimento com ele as raízes da árvore mphama.
Já não deposito uma cruz sobre teu peito
nem pedras de memória sobre teu túmulo.
Já não tenho rosas, nem rezas.

Ó tempo peste!
A terra infectada estremece
e nos dissolve como sal.

Destino?
O que resta?
Ser ou não ser, agir ou não?
Nenhuma questão?
Só tempo, só silêncio?

 

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