Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 08
Organização de Floriano Martins
Claudio Willer (São Paulo, 1940-2023). Poeta, ensaísta e tradutor, ligado à criação literária mais rebelde, ao surrealismo e geração beat. Livros recentes: Escritos de Antonin Artaud – nova edição, revista; organizador e tradutor (2019); Dias ácidos, noites lisérgicas – relatos (2019); Extrañas experiencias – poesia 1964-2004 (tradução de Thiago Pimentel, Nulú Bonsai, 2018); A verdadeira história do século 20, poesia (2016); Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, ensaio (2014); Manifestos, 1964-2010, (2013), Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna (2010); Geração Beat (2009); Poemas para leer en voz alta (tradução de Eva Schnell, 2007); Estranhas Experiências (2004). Traduziu Lautréamont, Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Antonin Artaud, Bukowsky, Aimé Césaire, entre outros. Publicado em antologias e periódicos no Brasil e em outros países. Presidiu a UBE, União Brasileira de Escritores, em vários mandatos. Doutor em Letras pela USP, onde completou pós-doutorado. Deu cursos, palestras, coordenou oficinas literárias e outras atividades em uma diversidade de instituições culturais.
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Reproduzimos fragmentos de dois momentos em que CW se manifesta acerca de Surrealismo.
Minha produção poética dialoga com Surrealismo. Minhas imagens poéticas são surreais. Leitura de autores surrealistas foi decisiva para minha formação: os La liberté ou l’amour de Desnos, Nadja, L’amour fou, Les vases communicants ou Signe ascendant de Breton etc., são obras que me fizeram perceber algo e às quais eu retorno sempre, sem falar das descobertas do riquíssimo mundo dos surrealistas hispano-americanos e portugueses, e, é claro, dos nossos brasileiros. Isso, além de artes visuais – meu artista visual do século XX é Max Ernst. Meu processo de criação, espontâneo, é afim ao do Surrealismo. É importante para mim, também, o modo surrealista de pensar a realidade e a criação literária e artística. A leitura de outros poetas – por exemplo, de Baudelaire, ou de Lautréamont, a quem traduzi – a partir da visão surrealista. A contribuição surrealista à crítica, lembrando que além de poeta sou crítico e ensaísta e já escrevi bastante sobre Surrealismo. [CW]
[…]
Desde sua origem, Surrealismo não foi um movimento especificamente francês. Mas foi parisiense em seu cosmopolitismo, que pode ser associado à condição de polo ou capital cultural dessa metrópole, atraindo o romeno Tristan Tzara, os alemães e suíços egressos de Dadá, e os espanhóis e catalães, Miró, Dalí, Buñuel, entre tantos outros. A partir de meados do século XX, observa-se maior presença de autores que, não sendo da França, pertencem à literatura de língua francesa, a exemplo dos antilhanos Aimé Césaire, Magloire Saint-Aude e René Depestre, de Malcolm de Chazal, das Ilhas Maurício, e da egípcia Joyce Mansour. E daqueles de outras línguas e literaturas, nem sempre registrados na bibliografia disponível. Há um viés, não apenas eurocêntrico, porém galocêntrico ou francófono, que transparece em coletâneas preparadas por autores diretamente ligados ao grupo e às atividades encabeçadas por André Breton. Em Arcanos da Poesia Surrealista, publicado no Brasil, Surrealismo parece ser um fenômeno exclusivo da literatura francesa (com o agravante de um dos seus organizadores, Jean Schuster, haver sido legatário de Breton, algo como seu continuador oficial). No extenso Autobiographie du Surréalisme, de Marcel Jean, há informação sobre o que se passou na Inglaterra e Tchecoslováquia, entre outros lugares; mas é como se fosse desenhado um mapa-múndi sem os continentes americanos e a península ibérica. Nas séries de periódicos surrealistas franceses, inclusive La Brèche – Action Surréaliste, dos anos 1960, é mínima a presença de escritores não-francófonos. Nessas publicações, Surrealismo em Portugal não recebeu registros compatíveis com sua importância. Mapeamentos mais amplos, dando conta de Portugal, da América Latina etc., são algo recente, da década de 1980 para cá. Uma etapa importante é o extenso Dictionnaire général du Surréalisme et de ses environs de 1982. Mas a prospecção continua em andamento. Das publicações recentes, a de maior fôlego parece ser a antologia-ensaio Il y aura une fois, de Jacqueline Chénieux-Gendron, com um capítulo sobre autores de língua espanhola, além da inserção de autores de outras línguas e nacionalidades, mas deixando de lado as literaturas de língua portuguesa. Daí a atenção, neste ensaio, para antologias como as preparadas por Ángel Pariente, de 1985, sobre o mundo da língua espanhola; de Perfecto E. Cuadrado, de 1998, sobre Surrealismo em Portugal; e de Floriano Martins, de 2001 e 2004, sobre poesia surrealista na América. De diferentes modos, seguindo metodologias distintas, correspondem à ampliação e enriquecimento da discussão. A registrar também, no Brasil, as publicações coordenadas por Robert Ponge, promovendo encontros de autores franceses e latino-americanos, brasileiros inclusive. [CW]
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO SÉCULO 20
contemplação: estrela no fundo do mar
você: véu de gaze azulada roçando, suave apelo
furacão: róseo
perfeição: parábola de perfumes
lâmina: a mente alucinada
gruta: você e os arcanos da natureza
matemática do sonho: esta nuvem
gelo: explosão de relâmpagos
essa solidez, essa presença: capim ao vento
rápidos, passando à frente: lavanda
e também sombra de árvore
montanha: inteiramente nossa
intimidade sorridente: no calor da tarde
Íris: o nome da flor, o seio ao sol
– quanta coisa você fez que eu visse
o acaso nos transportava e poderíamos ir a qualquer lugar
o mundo tinha janelas abertas
e tudo era primeira vez
gnose do redemoinho, foi o que soubemos
ESTAÇÃO DESERTA
Deveria ter permanecido lá, entre as sombras rastejando em volta do abismo, as silhuetas encobrindo os sons, a noite densa como um salto à distância. Isolados da cidade por uma fronteira de latidos, apenas as mãos distendendo-se para tatear o invisível feito de névoa e olhares reconhecendo-se à sombra das paredes castigadas pelo silêncio.
Deveria ter permanecido lá, na paisagem densa de esperas. Partidas sem direção, itinerários desconexos ocultos nos montes de ferro velho, instantes vazios invadidos por um silêncio de lâmina. O rastro das multidões apressadas encerrado em um torreão belle époque, colunas de ferro, pontilhões dissolvidos, guardiões de um mundo subterrâneo onde todas as arestas convergem. Os passos tateando suaves segredos, rios de gelo represados nos canos arrebentados.
POESIA PICTÓRICA, VISUAL: SIMBOLOGIA DA ÁGUA
Quando a praia onde você está é sentida como real unicamente por trazer a lembrança viva dos cheiros, claridade e ruídos da outra praia onde você já esteve, tanto tempo atrás, quando nada mais resta, a não ser a impressão de que viver foi inútil e de que morrer é algo totalmente idiota, filtrada por uma sensação do sublime, de estar com os pés no chão. ou então quando, ao retornar já madrugada, deu-me a impressão de que se abria um abismo, passagem para outro plano, no encontro das ruas Pernambuco, Rio de Janeiro, Praça Vilaboim, e isso foi igual a perceber que em toda a minha vida nada mais fiz exceto seguir os rastros da minha própria morte. quando a vida é apenas um pretexto: então, selecionar para publicação o que for mais estranho, anguloso, geométrico, fora de esquadro, que possa ser recitado em um tom de voz bem inocente, de quase
A CHEGADA DO TEMPO
outono feito de ar
e suas comemorações invisíveis
a vida mais leve em abril, soma dos demais meses
o céu, suave vórtice
mundo de movimento de nuvens
modulações da claridade
mensagens de chuva e vento
música silenciosa vibrando no corpo
luz acariciante aos domingos pela manhã
escrever é matar-se aos poucos
deixar de ser
alegremente
A PALAVRA
vocês não entenderam nada, vocês não sabem nada
poesia não é querer escrever bem
poesia é o que eu ainda irei relatar em prosa
poesia é o que ainda pretendo escrever
para depois reler e dar risadas, imaginando o espanto de quem vier a ler o que
escrevi
poesia é velocidade
do disparo de revólver verdadeiro, da janela, no automóvel que ia passando
por aquele alvo escolhido ao acaso,
poesia é som,
o áspero ruído do gume de diamante sendo testado por dois especialistas em
arrombamento na vitrina daquela loja de armas a 80 m. de distância de uma
delegacia (eu esperava no carro) (se houvesse cedido, levávamos tudo)
poesia é luz
daquelas janelas abrindo-se todas ao mesmo tempo, todo mundo acordando
para ver que espécie de confusão era essa, o que aquele bando de malucos
fazia na rua àquela hora
poesia é noite
a outra noite, aquela (no HC, minha pressão caiu, e depois ainda tive que dar
a notícia aos amigos)
poesia é dizer
é ela dizer: “como você me revoluciona por dentro”
poesia é escrever
com um cuidado enorme, pesando cada palavra, para não me declarar réu
confesso
poesia é névoa
de fumaça enchendo o quarto, todo mundo a dar risadas sem conseguir parar
poesia é porrada
algo bem melhor do que briga de scholars, aqueles da outra universidade
contra esses desta,
poesia grossa (cacete rombudo, que tal esta imagem?)
poesia é isso, é isto, também é aquilo, é agora
poesia é o que sempre soubemos
o conhecimento animal
um núcleo raivoso anterior à Queda
– Gnose
estou falando de filosofia, de essência,
uma exploração do desconhecido pelo corpo, através do corpo,
o Marquês de Sade nem precisava daquele teatro todo
o que sei é onde penetrei,
– o telefonema que me traz lembranças de trinta anos atrás, de ontem, de agora, seu
som a vibrar neste ar parado de noite antes de mais uma tempestade –
nada me interromperá
sempre usei uma linguagem direta,
Prometeu, Fausto
não quero falar, quero ser dito
sejamos densamente humanos
como a chuva
no ar saturado de excesso
parto ao encontro do núcleo selvagem de qualquer coisa
diamante ou lágrima perdida no fundo do bosque
ex-deusa
assim me despeço
mas eu a reencontrarei
lunar
resta saber o sonho, parábola da vida