3 Poemas de Aimé Césaire (Martinica, 1913-2008)

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Tradução de Nicolau Saião*

Aimé Fernand David Césaire (Basse-Pointe, Martinica, 26 de junho de 1913 — Fort-de-France, 17 de abril de 2008) foi poeta, dramaturgo, ensaísta e político. Além de ser um dos mais importantes poetas surrealistas da primeira fase do movimento no mundo inteiro, no dizer de Breton, Aimé Césaire foi, tal como o senegalês Léopold Senghor, o ideólogo do conceito de negritude, sendo a sua obra marcada pela defesa das suas raízes africanas. Autor de, entre outros, “Caderno do Regresso ao país natal”, “As armas miraculosas”, “E os cães deixaram de ladrar, “A tragédia do Rei Cristophe”… A sua poesia, intensamente dramática, vaza-se igualmente num lirismo de grande transcendência iluminante devido ao entrecho rico e complexo em que ele a faz existir.


CONQUISTA DO AMANHECER

Morremos as nossas mortes nas florestas de eucaliptos gigantes, mimando os encalhes de forros estranhos,
no país onde crescer
é uma drosera irrespirável
pastando na boca das luzes sonâmbulas

embriagada

guirlanda muito bêbada roubando de uma forma evidente
as nossas pétalas de som
na chuva campanular de sangue azul,

Nós morremos
com olhares crescendo em amores extáticos em
quartos comidos por vermes, sem uma palavra sufocada nos nossos bolsos, como uma ilha
que se afunda na explosão enevoada dos seus pólipos –
a noite.

Nós morremos
entre as substâncias vivas inchadas de forma anedótica com premeditações
um arborizado que apenas jubila, que apenas rasteja no próprio coração
dos nossos gritos, que só pestanejam nas vozes das crianças,
que só rastejam pelas pálpebras no degrau perfurado
miriápodes sagrados, lágrimas silenciosas,

Morremos uma morte branca florescendo como a mesquita, seu esplêndido peito de ausência onde a aranha-pérola saliva sua ardente melancolia de mim convulsiva
na conversão inevitável do
fim.

Morte maravilhosa de nada.
Um cadeado fornecido para as fontes mais secretas da
árvore do viajante que se alarga nos quadris de uma gazela desatenta

Morte maravilhosa de nada

Os sorrisos escaparam do laço da complacência
a vender as joias de inestimável valor da sua infância
no auge da feira dos sensíveis no avental do anjo
na temporada da abertura da minha voz
na inclinação suave da minha voz
ruidosamente
a adormecer.

Morte maravilhosa de nada

Ah! a garça depositou o orgulho infantil a ternura divina
aqui nas portas mais polidas que os joelhos da prostituição – o castelo dos orvalhos – o meu sonho onde adoro a secura dos corações inúteis
(com excepção do triângulo da orquídea que sangra violentamente como o
silêncio da planície) a jorrar
numa glória de trombetas grátis com casca escarlate e coração não cremoso, escondendo da voz ampla precipícios do incêndio criminoso e tumultos inebriantes da cavalgada.


A MULHER E A CHAMA

Um pouco de luz que desce a nascente de um olhar
sombra gêmea do cílio e do arco-íris num rosto
e ao seu redor
quem lá vai angelicamente
vaguear

Mulher
o clima de agora
e o tempo actual pouco importam para mim
pois a minha vida está sempre à frente de um furacão

Tu és a manhã que desce sobre a lâmpada com uma pedra noturna
entre os dentes
tu és a passagem das aves marinhas e também
és o vento através das junqueiras salgadas da consciência
insinuando-se de outro mundo

Mulher
tu és um dragão cuja cor adorável se dispersa e escurece tanto
como a constituição do canto inevitável das coisas
Estou acostumado a roçar os incêndios
estou acostumado com cinzentos ratos do mato e íbis de bronze da chama

Mulher
ficheiro do lindo fantasma da trave
capacete de algas de eucalipto
o amanhecer não é
o abandono das fitas
de um muito saboroso nadador.


ENTRE OUTRAS MORTANDADES

Com todas as suas forças, o sol e a lua cintilam
os luzeiros tombam como testemunhos demasiado maduros
como uma ninhada de ratos cinzentos

Não temas, nada antecipa que as suas águas subam
e com elas levem a espelhada ribeira

Salpicaram-me de lama os olhos
e eu vejo, terrivelmente vejo
que de todas as montanhas, de todas as ilhas
apenas restam alguns dentes cariados
da impenitente saliva do mar.


Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Cabral Martins (1950), organizou a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado.

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