4 Poemas de Lucebert (Holanda, 1924-1994)

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Tradução de Allan Vidigal*

Lucebert foi um pintor experimental, autor de desenhos, poeta e uma das principais figuras do movimento CoBrA. Seu trabalho tipicamente mostra uma imensa liberdade e espontaneidade. Ele pintou o que surgiu em sua mente, sem se ater a nenhum motivo fixo. Na década de 1950, ele começou a fazer seus desenhos e aquarelas a partir de pontos, linhas e hachuras cruzadas, sobre as quais pintou – deliberadamente – formas desajeitadas de corpos humanos e criaturas fantásticas. A tendência de querer sempre experimentar o levou a muitos outros campos: fotografou, fez cerâmica, escreveu peças de teatro e pintou murais monumentais.


LUTO POETICAMENTE

quero dizer
águas simples iluminadas
que expressam
a extensão da vida toda

não fosse eu alguém
igual a tantos outros
mas fosse eu quem fui
o anjo de pedra ou líquido
o nascimento e a decomposição não me teriam tocado
a estrada do abandono à comunhão
a estrada pedras pedras bichos bichos aves aves
não estaria seria tão suja
quanto hoje se vê nos meus poemas
que são visões aleatórias daquela estrada

nesta era aquilo que sempre se chamou de
beleza o rosto da beleza se queimou
ela não mais consola os homens
consola as larvas os répteis os ratos
mas assusta a humanidade
e a move com o senso
de ser uma migalha de pão sobre as saias do universo

não mais apenas mau
o golpe fatal nos faz rebeldes ou humildes
mas também bom
o abraço nos deixa tateando desesperados
no espaço

e assim voltei-me para a língua
e toda a sua beleza
lá ouvi que ela nada tinha de mais humano
que os defeitos de fala da sombra
que aqueles do sol ensurdecedor


MOORE

é a terra que boia e rola pelo povo
é o ar que suspira e sobra pelo povo
o povo descansa lânguido como a terra
o povo ergue-se tão alto quanto o ar
do seio da mãe brota o filho
da testa do pai nasce a filha
como rios e margens úmidos e secos é sua pele
como ruas e canais encaram o espaço
sua casa é seu hálito
seus gestos são jardins
escondem-se
e são livres

é a terra que boia e rola
é o ar que suspira e sopra
pelo povo


PROCLAMO UMA REVOLUÇÃOZINHA

proclamo uma bela revoluçãozinha
não pertenço mais à terra
sou água novamente
trago a espuma das cristas sobre a cabeça
trago sombras fugidias na cabeça
no meu dorso dorme uma sereia
no meu dorso dorme o vento
o vento e a sereia cantam
a espuma das cristas murmura
caem as sombras fugidias

proclamo uma bela revoluçãozinha crepitante
e caio e murmuro e canto


TRANSMIGRAÇÃO DA ALMA

encarquilhado tropeça de conjuntura em conjuntura
o bode expiatório outrora encantador
pode troçar dele se quiser
ele sorri mas não se afeta
não queimado mas feito em cinzas um desmaio
passageiro irá se erguer novamente
e tolo ajeitar as calças e a casaca

logo estará alto e forte entre os pilares
o mármore do seu queixo fustigado pelas sombras
o relho brincando com a bota
o olhar que tudo penetra fixo na lua ameaçadora

lentamente ele desaba e o povo aplaude
despropositadamente agigantado ele desaba
e se põe ao lado do covarde do ponto de descarga
não inabalado de liberdade como um pano de chão


ALLAN VIDIGAL (Brasil, 1971). Poeta, editor e tradutor. Possui mais de 20 livros de história empresarial publicados, incluindo algumas das maiores corporações do Brasil. Parou de contar livros traduzidos depois de chegar a cem em temas diversos que vão das Artes à Zoologia, passando pela Ciência da Computação, Design, Economia e assim por diante. Tem traduzido com frequência para a Agulha Revista de Cultura e projetos isolados de Floriano Martins.

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