4 Poemas de Paul Celan (Romênia, 1920-1970)

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Apresentação e tradução de Floriano Martins

Há uma reiterada estratégia de descaracterização da influência surrealista em certos países que se baseia na inexistência de formação grupal e consequente nacionalização do movimento. Os próprios postulados do Surrealismo raramente se verificaram, em sua totalidade, na amplitude estética de seus criadores. Uns foram mais afeitos ao automatismo; outros, ao humor negro; outros, ao maravilhoso. Houve também aqueles em que a alquimia e o misticismo proliferaram mais. Nenhum deles, sob quaisquer circunstâncias, podem ser entendidos como menos surrealista que os demais, ou mesmo ser desqualificados como tal. Em períodos localizados os surrealistas seguidores de Breton estiveram embriagados por uma chama ideológica, ora o comunismo, ora a anarquia. Outros passaram ao largo dessas duas catedrais de areia. No caso específico de Paul Celan, verificamos sua simpatia pelo movimento – que certa parcela da crítica refere como adesão estratégica –, a relação com amigos surrealistas, na Áustria e na Romênia – este segundo país foi um dos palcos mais ricos do Surrealismo na Europa –, a riqueza imagética de sua poesia. Celan foi um dos mais rigorosos, sensíveis e sofisticados poetas europeus daquele momento, sua poética sempre alcançou alta escala de elegância. Em circunstância alguma se pode dizer que ele necessitasse ser reconhecido como surrealista, porque jamais se tratou disto, em qualquer poeta. Romeno de nascimento, Paul Celan (1920-1970) radicou-se francês e além de sua própria poesia traduziu a mais de 40 poetas de diversos idiomas. A mancha negra e silenciosa que encobre o mundo no período da 2ª Guerra Mundial, não emudece ou angustia a sua poesia, pelo contrário, lhe dá força à tessitura de uma leveza profunda, como a encontramos nestes versos: No manancial de teus olhos / um enforcado estrangula a corda. Ele próprio reforçaria tal ideia, ao dizer: O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma mensagem na garrafa, lançada ao mar da convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de um dia ir a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também neste sentido os poemas estão a caminho – têm um rumo. Para onde? Em direção a algo aberto, de ocupável, talvez a um tu apostrofável. Em resposta a um questionário bem ao modo surrealista, vejamos outro modo de abordar essa condição do rumo aberto da criação:

O que é a solidão do poeta?
Um número de circo não anunciado no programa.

O que é uma lágrima?
Uma balança esperando por um peso.

O que é embriaguez?
Uma página em branco entre outras cores.

O que é o esquecimento?
Uma maçã verde arpoada.

O que é o retorno?
Quase nada, mas poderia ser um floco de neve.

O que é a última noite antes de partir?
Afastar-se de uma exposição de porcelana antiga.

Em ensaio publicado na Agulha Revista de Cultura em 2019, a poeta Viviane de Santana Paulo, assim observa:

Fortemente influenciado pelo simbolismo e surrealismo franceses, Paul Celan (1920-1970) associa motivos bíblicos e hassídicos em sua poética. A experiência traumática do Holocausto possui uma forte presença em sua obra como na famosa Fuga da Morte (Todesfuge), que traduz o horror de Auschwitz por meio da linguagem: leite negro da madrugada nós o bebemos de noite/ nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite / nós o bebemos bebemos / cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado. O estilo repleto de contradições, paradoxos, metáforas e a força da imaginação que remete ao sonho levaram-no a ser denominado como poeta surrealista e seus poemas foram classificados como fantásticos. Na monografia de Marieke Ermans sobre Paul Celan e o Surrealismo (Paul Celan und der Surrealismus), encontramos uma importante observação do especialista alemã, ao chamar a atenção para os paradoxos da poesia de Celan que se estendem aos limites do lógico, ele descreve os frequentes paradoxos como parte da busca de Celan pela realidade, concentrando-se principalmente na realidade tangível e reprodutível por meio da linguagem. As imagens e ideias em seus poemas, portanto, nunca são totalmente irreais. Segundo Knörrich, Celan usa uma técnica surrealista que inclui elementos da realidade (racional), mas compondo-os de tal maneira que entram em conflito com as expectativas do leitor e, portanto, parecem absurdos e surrealistas.


ELOGIO DA DISTÂNCIA

No manancial de teus olhos
vivem as redes dos pescadores do Mar Extravio.
No manancial de teus olhos
o mar mantém sua promessa.
Aqui arremesso de mim,
coração que morou entre os homens,
os vestidos e o brilho de um juramento:
Mais negro no negro, estou mais nu.
Somente discordante sou fiel.
Eu sou tu quando eu sou eu.
No manancial de teus olhos
singro e sonho pilhagem.
Uma rede pegou uma rede:
nos separamos abraçados.
No manancial de teus olhos
um enforcado estrangula a corda.


OUVI DIZER

Ouvi dizer que na água
há uma pedra e um círculo
e sobre a água uma palavra,
que põe o círculo em volta da pedra.
Eu vi meu álamo descer até a água,
vi como seu braço se estirou até a profundidade,
vi suas raízes viradas para o céu implorando pela noite.
Eu não corri atrás delas,
apenas recolhi do chão essa migalha
que tem de teu olho a figura e a nobreza,
tirei de teu pescoço a corrente das sentenças
e com ela orlei a mesa onde jaz a migalha.
E então não mais vi meu álamo.


ARGUMENTO E SILÊNCIO

Para René Char

Posta na corrente
entre ouro e esquecimento:
a noite.
Ambos quiseram pegá-la,
a eles lhes deu licença.
Deposita,
agora deposita também tu o que quer despontar
ao lado dos dias:
a palavra sobrevoada de estrelas,
a orvalhada de mar.
A cada um a palavra,
a cada um a palavra que o cantou,
quando a matilha lhe saltava pelas costas —
a cada um a palavra que o cantou e ficou empedernida.
A ela, à noite,
a sobrevoada de estrelas, a orvalhada de mar,
a ela a silenciada,
da qual não jorrou o sangue, quando o venenoso dente
das sílabas se cravou.
A ela a palavra silenciada.
Contrária às outras que, logo
que rodeadas obscenamente por ouvidos de descaro,
também escalam o tempo e os tempos,
dá testemunho ao final,
ao final, quando apenas repicam as correntes,
dá testemunho dela, que ali jaz
entre ouro e esquecimento,
ambos irmanados desde sempre —
pois onde
clareia, me diz, se não é onde ela,
que na região aluvial de suas lágrimas
mostra aos sóis que descem
uma e outra vez a colheita?


ENTARDECER DAS PALAVRAS

Entardecer das palavras — buscador de mananciais no silêncio!
Um passo e outro passo mais,
um terceiro, cujo rastro
tua sombra não elimina:
a cicatriz do tempo
se dilata
e inunda a terra de sangue — os cães da noite palavreada, os cães
repercutem agora meio a
meio dentro de ti:
festejam a sede mais selvagem, a fome mais selvagem…
Uma lua derradeira te assiste:
lança à matilha
um extenso osso de prata
— nu como o caminho pelo qual vinhas —,
porém isso não te salva:
o raio que suscitaste
se encrespa ainda mais perto,
e em cima dele nada um fruto
que mordeste há anos.

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