Tradução de Allan Vidigal*
O poeta inglês David Gascoyne cresceu na Inglaterra e na Escócia e morou em Paris no início dos anos 1930. Sua poesia sofreu várias mudanças importantes durante sua longa carreira. Inicialmente um imagista, depois um surrealista dedicado, Gascoyne escreveu inicialmente poemas visionários, obras fantásticas repletas de imagens alucinatórias e linguagem simbólica. Na década de 1940, ele estava escrevendo poemas místicos nos quais as imagens cristãs desempenhavam um papel importante e a dor extática do buscador religioso era primordial. Após a década de 1950, sua escrita foi reduzida devido a um colapso mental e contínuas crises de depressão severa. Mas o lugar de Gascoyne na poesia britânica moderna é seguro; escrevendo no século XX, Elizabeth Jennings descreve Gascoyne como o “único poeta inglês vivo na verdadeira tradição da poesia visionária ou mística”. Em um artigo para o Dicionário de Biografia Literária, Philip Gardner chama Gascoyne’s Poems, 1937-1942 “entre as coleções mais distintas e poderosas dos últimos cinquenta anos”.
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O interesse precoce de Gascoyne pelo simbolismo e pelo alucinatório o levou a estudar os escritores surrealistas da década de 1930, uma escola pouco conhecida na Inglaterra naquela época. Ele foi um dos primeiros poetas britânicos a tomar nota dos surrealistas, e geralmente é creditado por apresentar seu trabalho ao mundo de língua inglesa. Em 1935 e 1936, Gascoyne traduziu coleções dos surrealistas Salvador Dali, Benjamin Peret e André Breton. Sua introdução de não-ficção às crenças do grupo, A Short Survey of Surrealism , é descrita por Stephen Spender no Times Literary Supplement como “um livro delicioso que transmite, quase pela primeira vez em inglês, o fascínio desse movimento”.
Esse interesse pelo surrealismo é evidente na segunda coleção de poemas de Gascoyne, Man’s Life Is This Meat, livro que contém obras dedicadas a surrealistas como Max Ernst, René Magritte e Salvador Dali. Os poemas utilizam as justaposições, imagens intensas e lógica onírica encontradas em muitas obras surrealistas. Skelton diz sobre os poemas desta coleção que “Gascoyne empregou técnicas surrealistas com bons resultados. … Alguns poemas parecem produtos de um jogo de associação livre, [mas] uma segunda olhada mostra que eles estão cheios de implicações profundas.”
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A capacidade de Gascoyne de combinar sua poesia visionária com uma consciência do mundo real ao seu redor é comentada por Skelton, que afirma que em Poemas, 1937-1942, Gascoyne “alcançou uma poesia religiosa que combina simbolismo poderoso com relevância contemporânea”. Escrevendo em A Liberdade da Poesia: Estudos em Versos Contemporâneos, Stanford acredita que “a poesia de Gascoyne cria um mundo que não escapa nem substitui o mundo que já conhecemos. Todos os problemas que a realidade nos faz enfrentar, enfrentamos novamente nesta poesia; e encontrando-os aqui pela segunda vez, não os encontramos mais modificados pelas pequenas distrações da vida cotidiana, ou pelo alívio cômico que a existência oferece. Neste versículo, somos levados a experimentar o impacto total da maldade – o próprio mal assume uma imagem. Assim, sem piedade ou mitigação, somos obrigados a olhar para esse quadro de nossa culpa e habitar uma esfera que parece estar vedada contra a possível entrada de esperança.”
FUNDAÇÃO DE POESIA
ORFEU NO SUBMUNDO
Cortinas rochosas
E lágrimas de pedra,
Folhas úmidas no abismo do céu:
De um lado a outro o dossel
Aberto por mãos rígidas.
E ele chegou com a lira partida,
Trajando as vestes azuis de um rei,
E via com olhos rasgados na tela;
E mal se escutava o mar distante,
Vez por outra, em rajadas súbitas de vento,
a canção quebrada.
Vindas do sono, vez por outra,
De seus lábios entreabertos,
Palavras atônitas tentavam contar
A história da noite brilhante
Do dia encoberto pelas asas
Os voos do pensamento sob o sol
Acima das ilhas dos mares
E dos desertos, e dos prados, das planícies
De uma terra estranha.
Ele dorme com a lira partida entre as mãos,
E em torno de seu sono abre-se
O dossel rígido, as lágrimas e as folhas úmidas,
Cortinas frias de rocha que ocultam o céu sem fim.
SALVADOR DALÍ
A encosta do abismo, infestada de amantes;
O sol que os ilumina é um saco de pregos; os rios
Primeiros da primavera escondem-se em seus cabelos.
Golias mergulha a mão no poço envenenado
E baixa a cabeça e sente meus pés a andar por seu cérebro.
As crianças que caçam borboletas se voltam e o veem
Com a mão no poço e meu corpo brotando da cabeça,
E sentem medo. Largam as redes e entram na parede como se fosse fumaça.
A planície lisa e seus espelhos escutam o rochedo
Qual um basilisco come flores.
E as crianças, perdidas nas sombras das catacumbas,
Clamam aos espelhos por ajuda:
‘Arco do sal, espada da memória,
Escrevam no meu mapa o nome de cada rio.’
Um cardume de bandeiras abre caminho pela mata telescópica
E voa como pássaros em direção ao som da carne assada.
Areia cai sobre os rios ferventes pelas bocas dos telescópios
E forma gotas límpidas de ácido com pétalas de chama rotatória.
Feras heráldicas vagueiam pela asfixia dos planetas,
Borboletas saltam de suas peles e brotam línguas longas como as das plantas,
As plantas se entretêm com uma armadura de nuvens.
Espelhos escrevem o nome de Golias na minha fronte,
Enquanto as crianças são mortas na fumaça das catacumbas
E os amantes flutuam rochedo abaixo como chuva
A GAIOLA
Na noite insone
As florestas pararam de crescer
As conchas escutam
As sombras nos poções acinzentam
Pérolas dissolvem-se na sombra
E eu retorno a ti
Teu rosto está gravado no relógio,
Minhas mãos no teu cabelo
E se a hora que mostras libertar os pássaros
E se eles voarem para a floresta
O momento não mais será nosso
É nossa a gaiola enfeitada
O copo d’água até a boca
O prefácio do livro
E os todos relógios funcionam
Os quartos escuros se movem
Expostos, os nervos do ar.
Depois que se for
O momento emplumado não voltará
E eu terei ido embora.
A PRÓPRIA IMAGEM
Para René Magritte
Uma imagem de minha avó
sua cabeça surgindo invertida sobre uma nuvem
a nuvem trespassada na torre
de uma estação de trem deserta
distante
A imagem de um aqueduto
um corvo morto pendente do primeiro arco
uma cadeira em estilo moderno do segundo
um abeto alojado no terceiro
e neve salpicando a cena toda
A imagem do afinador de pianos
sobre o ombro um farnel de pitus
guarda-fogo embaixo do braço
um bigode de ramos e argila
e as bochechas de vinho
A imagem de um avião
uma hélice feita de bacon
as asas de banha reforçada
a cauda é feita de clipes
o piloto é uma vespa
Uma imagem do pintor
a mão esquerda num balde
e a direita afagando um gato
deitado na cama
seu travesseiro, uma pedra
E essas imagens
e muitas mais
são bonecas de cera
em mini-gaiolas
de seis dedos de altura.
YVES TANGUY
Os mundos se partem na minha cabeça
Tangidos pelo vento acéfalo
Que vem de longe
Inchado de poeira e poente
E da histeria da chuva
Os gritos distantes da luz
Despertam o deserto infinito
Absorto em seu sono tropical
Abduzido pelos oceanos cinzentos e mortos
Abraçado pelos membros da noite
Os mundos se partem na minha cabeça
Seus fragmentos são migalhas de desespero
O alimento dos condenados solitários
Que aguardam o tumulto rude de dias
Turbulentos trazendo mudanças sem fim.
Os mundos se partem na minha cabeça
O futuro fumegante já não dorme
Suas sementes agora germinam
Já crescem e já gritam
Entre as rochas do deserto do amanhã
Semente planetária
Plantada pelo vento grotesco
Cuja cabeça está cheia de rumores
Cujas mãos têm a urgência dos tumores
Cujos pés se afundam na areia.
ALLAN VIDIGAL (Brasil, 1971). Poeta, editor e tradutor. Possui mais de 20 livros de história empresarial publicados, incluindo algumas das maiores corporações do Brasil. Parou de contar livros traduzidos depois de chegar a cem em temas diversos que vão das Artes à Zoologia, passando pela Ciência da Computação, Design, Economia e assim por diante. Tem traduzido com frequência para a Agulha Revista de Cultura e projetos isolados de Floriano Martins.