Série um Século de Surrealismo – Poetas, 01
Organização, texto e tradução de Floriano Martins
Ao dizer que a criação deve brotar alheia a toda preocupação estética ou moral, André Breton deixou ao sol a má interpretação que seus acólitos acabaram por ver no Surrealismo uma ausência de moral e estética. Os fundamentos do Surrealismo dizem respeito ao imperativo de uma liberdade total na criação, o que inclui a não filiação alguma a quaisquer ordens. No entanto havia uma ordem por trás dessa cortina, cuja raiz era a própria razão de ser do movimento. Daí que o desafio maior de Breton tenha sido o de encontrar um equilíbrio entre essa aparente dicotomia. Em minhas conversas com a brasileira Leila Ferraz (1944), que esteve em Paris ao final dos anos 1960, convivendo com alguns integrantes do grupo surrealista, embora sem ter conhecido pessoalmente Breton, ela me disse que não se pode esquecer que ele continha um conhecimento extraordinário. Introduziu no pensamento moderno, na arte e na poesia não apenas o seu genial trabalho, mas uma condição capaz de abrir para o universo artístico e pensante do início do século passado em diante uma ampla gama de mentes afins. Recolheu as preciosidades de todos os tempos e de centenas de culturas trançando uma forma e uma lógica, um mais além do real. E felizes os que perceberam a trajetória vinda à luz através de suas mãos. Se ele tinha um gênio forte e dominador? Não poderia sê-lo de outra forma. Caso contrário, a arte jamais teria tido a presença e o espaço que ganhou. Breton tinha um faro absoluto para as sutilezas humanas. A rigor, foi uma figura admiravelmente controversa. Audacioso em todos os seus momentos, de aceitação ou rejeição, André Breton foi exímio experimentador, sendo vultosos seus exercícios em áreas como a colagem, o desenho, a fotografia, os objetos encontrados, a escrita automática etc. Sua conhecida resistência ao romance tem um argumento relevante: há certo estado do verdadeiro em que este é levado a tomar um valor inapreciável, único, e para tanto exige a total depuração do supérfluo. Essa depuração o levou a criar uma prosa poética que renovou o ambiente narrativo, de que são exemplos livros como Nadja (1928), Les vases communicants (1932) e O amor louco (1937). Breton pôs em estado de moto-perpétuo a mais expressiva e contundente revolução alcançada pela criação artística no século XX, incessante mesmo diante de sua morte. [FM]
LUA DE MEL
Aonde conduzem as inclinações recíprocas? Existem uns ciúmes mais emocionantes que outros. A rivalidade de uma mulher com um livro, com prazer passeio nessa escuridão. O dedo contra a fronte não é o cano de um revólver. Creio que nos escutávamos pensar, porém o maquinal “Nada”, que é o mais altivo de nossa recusa, não será pronunciado ao longo da viagem de núpcias. Sob a altura dos astros não há nada para mirar fixamente. Qualquer que seja o trem é perigoso mostrar-se pela portinhola. As estações estavam claramente repartidas em um golfo. O mar, que para o olho humano não é tão belo como o céu, não nos abandonava. Ao fundo de nossos olhos se perdiam belos cálculos orientados ao porvir como os das muralhas das prisões.
UMA E MIL VEZES
A Francis Picabia
Ao amparo das pisadas que na tarde alcançam uma torre frequentada por signos misteriosos em número de onze
A neve que tomo em minha mão e que se dissolve
Esta neve que adoro sonha e sou um desses sonhos
Eu que só concebo o dia e a noite a estrita juventude necessária
São dois jardins nos quais passeiam minhas mãos que nada têm que fazer
E enquanto os onze signos descansam
Tomo parte no amor que é um mecanismo de cobre e de prata nos caniços
Sou uma das mais delicadas engrenagens do amor terrestre
E o amor terrestre oculta os outros amores
À maneira dos signos que ocultam meu espírito
Uma facada perdida assobia no ouvido do pedestre
Desfaço o céu como um leito maravilhoso
Meu braço pende do céu com um rosário de estrelas
Que desce dia após dia
E cuja primeira conta vai desaparecer no mar
No lugar de minhas cores viventes
Logo não haverá mais do que a neve sobre o mar
Os signos aparecem na porta
São de onze cores diferentes e suas dimensões respectivas os fariam morrer de piedade
Um deles tem por obrigação baixar-se e cruzar os braços para entrar na torre
Ouço o outro arder em uma região florescente
E aquele cavalo na indústria na escassa indústria montanhosa
Parecida com o jumento que se alimenta de trutas
Os cabelos os longos cabelos manchados
Definem o signo que porta o escudo duas vezes ogival
Desconfiem da ideia que fazem girar as enxurradas
Minha construção minha bela construção página a página
Casa feita necessariamente de vidros a céu aberto a chão totalmente aberto
É uma falha na rocha suspensa por uns anéis na vareta do mundo
É uma cortina metálica que se atira sobre inscrições divinas
Que vocês não sabem decifrar
Os signos não tocaram ninguém além de mim
Irrompo na desordem infinita das súplicas
Vivo morro de um extremo a outro desta linha
Linha estranhamente medida que une meu coração ao parapeito de sua janela
Através dela me comunico com todos os prisioneiros do mundo
NÃO HÁ LUGAR
Arte dos dias arte das noites
A balança para feridas que se chama Perdão
Balança vermelha e sensível ao peso de um voo de pássaro
Quando as amazonas de pescoço de neve com as mãos vazias
Empurram seus carros de vapor sobre os prados
Vejo essa balança perpetuamente enlouquecida
Vejo a íbis cortês
Que regressa do tanque atada ao meu coração
As rodas do sonho enfeitiçam as marcas esplêndidas
Que se erguem muito alto sobre os caramujos de suas vestes
Enquanto o assombro brinca de cá pra lá sobre o mar
Sal meu querido amanhecer não esqueças nada de minha vida
Toma essas rosas que brotam dos poços dos espelhos
Toma o palpitar de todos os cílios
Toma até os fios que sustentam os passos
Dos acrobatas e das gotas de água
Arte dos dias arte das noites
Eu estou na janela muito distante de uma cidade cheia de espanto
Lá fora homens com cartola passam em intervalos regulares
Parecidos com as chuvas que eu amava
Quando fazia bom tempo
“À ira de Deus” é o nome de um cabaré
Em que entrei ontem
Está escrito sobre a frente branca com letras mais pálidas
Porém as mulheres-marinhas que deslizam por trás dos cristais
São demasiado felizes para ter medo
Aqui nada de corpos do delito sempre o assassinato sem provas
Nada de céu sempre o silêncio
Nada de liberdade mas sim para a liberdade.
[O MARQUÊS DE SADE…]
O Marquês de Sade retornou ao interior do vulcão em erupção
De onde havia saído
Com suas belas mãos ainda franjadas
Seus olhos de moça
E essa razão à flor de salve-se-quem-puder que não foi
Senão sua
Mas do salão fosforescente com lâmpadas de vísceras
Não parou de lançar ordens misteriosas
Que abrem uma brecha na noite moral
Por esta brecha vejo
As imensas sombras rangentes a velha casca minada
Dissolver-se
Para me deixar te amar
Como o primeiro homem amou a primeira mulher
Em plena liberdade
Esta liberdade
Pela qual o próprio fogo se fez homem
Pela qual o Marquês de Sade desafiou os séculos com suas grandes árvores abstratas
De trágicos acrobatas
Aferrados ao fio da Virgem do desejo