Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 21
Organização e tradução de Floriano Martins
Os anos 1960/70, em Manhattan, foram marcados por uma cena artística cuja mescla visceral por vezes evocava cantos de conflito e dissidência entre os vários grupos ali surgidos. Um desses círculos de poesia era como que presidido por Emilie Glen, que se destacava por sua altura, a voz contagiante e seus poemas que expunham narrativas breves de vidas embaralhadas pelas aflições existenciais e os jogos de palavras. As sessões de leitura eram conhecidas como abertas, porque após a performance daqueles poetas marcados para cada apresentação, o público estava convidado a intervir, lendo seus poemas ou refletindo sobre qualquer tema improvisadamente. Emilie Glen, era uma das maiores decanas desse cenário aberto, que muitos consideravam uma espécie de antessala dos beatniks. Brett Rutherford, ao escrever o estudo introdutório do primeiro volume dos escritos de Emilie Glen, intitulado Poems from Chapbooks, recorda que ele não gostava de revelar sua idade, e acaba enganando a todos graças à sua estonteante beleza jovial. Certa vez, ao visita-la, Brett rememora: Emilie me mostrou seu longo poema em prosa publicado em 1949 na New Directions, mas não admitiu ter publicado nada antes. Ela tinha uma expressão levemente em pânico, enquanto eu examinava o livro e anotava sua data de copyright. “Mas você devia ser uma menina muito jovem quando isso saiu”, eu disse. Emilie sorriu de alegria, e mudamos de assunto. Brett aguça a memória: Na década de 1960, a poeta se viu presente em vários cafés de Greenwich Village, onde lia seus poemas e tocava piano. Um de seus poucos poemas vitriólicos daquele período, uma denúncia não publicada de um dono de café que tocava flamenco, sugere a amargura de um caso de amor fracassado. Em resposta a pedidos de clientes dos cafés, a partir de 1966, Emilie mandou fazer pequenos chapbooks mimeografados de seus poemas atuais e grampeá-los à mão (Coffeehouse Poems, Mad Hatter, Paint and Turpentine e outros). Emilie Glen jamais conviveu com os surrealistas, porém a sua paixão pelo teatro a levou a atuar no que se poderia chamas de tableaux vivants sexuais, sugestivas encenações de orgias no palco, que acabou resultando em um livrinho que ela escreveu, uma série de retratos dos atores dessas peças, intitulado Twat Shot. O tom visceral com que experimentava simulações, improvisos, jogos de palavras, tudo isto a situava entre aqueles criadores que deram ao Surrealismo uma dimensão mais ousada. Acentua Brett Rutherford: O forte de Emilie é o poema narrativo. Há sempre uma voz falante, um personagem retratado, uma história contada. Ela cruza livremente gênero, raça e classe, escolhendo outsiders, excêntricos, sonhadores, perdedores. Alguns poemas são retratos de personagens, algumas peças em miniatura de duas ou três vozes, como o triste romance do gerente da sala de correspondência com a garota fugitiva que adora harpas em Hall of Harps. Autorizado pelo espírito arisco de André Breton, eu diria que Emilie Glen é uma dessas poetas que o Surrealismo sempre quis para si.
FÔLEGO
Seu foguete espacial
Sua árvore de luzes —
O Empire State Building.
Ele jura pela janela inválida
que recuperará o fôlego
quando as luzes da torre escurecerem.
Sempre erra,
desvia o olhar distraído.
A noite de sua morte
delineada na janela
através de suas feições
está saindo
FRIO FRIO
Tubarões de inverno no verão indiano
meus dedos estão duros congelados
preciso comprar luvas de lã
para usar usar
não consigo parar essas explosões de lágrimas
eu pediria ao meu amor para esfregar minhas mãos quentes
do jeito que ele sempre
Ele morreu ao meu lado na noite
luvas de lã para usar em seu enterro
mãos cinzentas de frio
mas não tão frias quanto as dele hoje
ATRAVÉS DO CORREDOR
Raramente o vejo
Ouço-o subir as escadas
Observo sua luz sob a porta
Posso atravessar o corredor a qualquer hora
não posso dizer que sim
ocupado como eu sem fazer muita coisa
Cheiro reconfortante de sua sopa
lembrando que ele está ali
Ele morreu à noite
sentado em sua mesa de papel caído
Agora que a polícia trancou a porta
Oh, olhar para dentro
FALANDO DE ERVAS DANINHAS
O que você não quer no seu jardim
é isso que é uma erva daninha.
Eu quero todas elas no meu jardim,
todas as ervas daninhas.
Dois minutos no meu jardim
e elas se tornarão respeitáveis.
SEM VENTO
Do meu quarto sem vento
Eu olho para cima para um toldo de cobertura
Com a palavra do vento
Um estremecimento em seu comprimento
Vieiras um bando de pássaros amarelos.
Não pode haver tanto vento lá fora
Quando está sem vento aqui
ATRASADO PARA A COZINHA
Eu nado através da plataforma continental
Até uma queda tão profunda que
ainda tenho que pressionar
Duas milhas abaixo até a noite do fundo do mar,
O lodo globigerina de diatomáceas e radiolários,
E a poeira de estrelas cadentes:
Estou descobrindo montanhas e vales,
Prados marinhos florescendo
com lírios e anêmonas,
Palmeiras marinhas, ervas marinhas,
Sempre que eu quiser, posso descer
Na barriga vermelha escura de uma baleia:
Peixes ferozes passam por mim,
Eu não sou a comida deles e eles não são meus,
Eu ouço as criaturas marinhas,
E elas parecem notar minha voz borbulhante:
Plâncton sempre plâncton,
Eu mordisco diatomáceas e alface do mar,
Nada precisa ser cozido no mar