Julia Hartwig (Polônia, 1921-2017) – Série um Século de Surrealismo / Poetas

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Série um Século de Surrealismo – Poetas, 11
Organização e tradução de Floriano Martins

Julia Hartwig nasceu em Lublin. Ela estudou literatura polonesa e francesa na Universidade de Varsóvia e continuou seus estudos na Universidade Católica de Lublin. Seus primeiros poemas apareceram na revista Odrodzenie em 1944. Ela morou em Paris de 1947 a 1950. Em 1954, publicou Z niedalekich podróży (De lugares próximos), uma coletânea de artigos, antes mesmo do primeiro livro de poemas, Pożegnania (Despedidas), que viria somente em 1956. Julia morou também nos Estados Unidos de 1970 a 1974, retornando posteriormente a Varsóvia. Durante sua estada nos EUA, participou do Programa Internacional de Redação da Universidade de Iowa e também lecionou em diversas universidades. Ela publicou traduções de poesia francesa de Guillaume Apollinaire, Blaise Cendrars, Max Jacob, Henri Michaux e Pierre Reverdy, além de haver escrito livros sobre Apollinaire e Gérard de Nerval, e publicado traduções de poetas estadunidenses como Robert Bly e Marianne Moore. A poesia de Hartwig foi traduzida para inglês, francês, italiano, russo, lituano, sérvio, grego e alemão.

Ela recebeu o Prêmio Jurzykowski, o Prêmio Thornton Wilder do Centro de Tradução da Universidade de Columbia e o Prêmio de Poesia Georg Trakl, além de seis indicações para o prestigiado Prêmio Nike, tendo sido vencedora do Prêmio Wisława Szymborska 2014 por seu livro de poemas Zapisane.

Possivelmente a proximidade com a poesia de Guillaume Apollinaire e Henri Michaux lhe deu uma dicção poética fortemente marcada pelo surrealismo. Segundo Olga Donata Guerizoli, ela chegou a dizer que o que havia de mais lindo em um poema era a sua condição de inacabado, o que lhe dava uma força intensa de comunicação, porque a vida é inacabada e não há melhor maneira de acumular a beleza do mundo. Sua escrita, muito conhecida antes de mais nada do período tardio, deve alguns de seus recursos também à experiência da tradução da poesia vanguardista. Seus poemas em prosa, que correspondem à escrita ainda influenciada pela poética surrealista, apresentam frequentemente as narrativas dos sonhos, cotejando a observação das imagens impactantes da realidade e as complexas referências culturais. O leve terror que caracteriza a subjetividade encenada nos poemas, por vezes mais denso e mais intenso, e que busca encontrar seu espelhamento no efeito estético do texto, traz os ecos do medo característico do feminino circunscrito pelo patriarcado, enclausurado metafórica e literalmente no “sótão”. Junta-se a esse terror uma certa surpresa devido à aproximação entre o trivial e o sofisticado – uma combinação extravagante –, presente também no surrealismo, na forma da composição das imagens a partir da associação dos elementos dos contextos muito afastados. Nos poemas de Hartwig, a maternidade e a orfandade como possíveis imagens do fazer poético no feminino, presentes também, por exemplo, nos textos de Mary Shelley e de Emily Brontë, fazem pensar na contestação da metáfora da criatividade masculina como obrigatória e exclusiva da escrita literária. Esta remete, com efeito, à visão romântica da criatividade original, à autoria como decorrente da inspiração, portanto, inerente à natureza, estranha ao artifício, à contrafação, e diferente da atividade mimética.

MAIS TARDE, MAIS CEDO

Tudo o que acontece já aconteceu anteriormente
em pensamentos e nos sinais escuros da noite
Nosso passado é um relato que ninguém jamais lerá
Sujeito, no entanto, ao juízo da nossa consciência
cuja sentença é sempre a mesma: culpado
por ser um juiz extremamente imparcial
Porém selecionamos os momentos felizes
Quando acreditamos merecer alguma recompensa
pelos crimes que o tempo comete contra nós


MULHERES SENTADAS

Havia algumas mulheres sentadas tomando café.
Arrancaram minhas unhas – diz uma.
Fui colocada sob um refletor.
Durante dois dias, uma gota d’água caiu na minha testa.
Eles destruíram meus rins.
Eles mataram meu filho e queimaram meu pai.
Mulheres simples de Varsóvia.


NA RUA

Louca Como é fácil dizer
como é fácil pensar sobre isso
Não aquela que se tranca com chave
mas do tipo que alguém encontra na rua
dir-se-ia semelhante ao resto dos transeuntes
Que hábil nesse momento o teu olhar
quão instantânea é essa tua apreciação
essa vibração esse sinal delicado de tudo diferente
– Eu te possuo como a um pardal
Uma flor sugestiva em um chapéu surrado é o suficiente
ou que em um dia de verão nós a possamos ver com um velho e surrado casaco de peles
ou quando fala sozinha e ameaça –
muito fácil de reconhecer
Porém eu tenho em mente aquela que tem olhos como uma faca
e aperta o punho no bolso
Estou pensando naquela que tem a morte nos olhos
aquela que arrasta uma escuridão que é o seu próprio abismo
Penso naquela que anda de cabeça baixa
como se não visse nada do que está em sua frente
e tropeça e continua andando


DESÂNIMO

Não foi meditação suficiente, nem sacrifício suficiente.
Não foi suficiente a renúncia, nem conviveste o suficiente
não pensaste o suficiente como os outros, nem o que entendeste foi suficiente
não foi bastante amor nem tampouco bastante ternura
não mostraste grandeza suficiente nem humildade suficiente nem perseveraste quando deveria ter
sempre culpados sempre impuros sempre condenados


CHEIRO DE ALCATRÃO

Eles estão consertando o telhado.
Trouxeram alguns barris de metal cheios de alcatrão
e os deixaram na grama de nosso quintal.
Todas as manhãs eles acendem uma fogueira debaixo de um barril e apagam à tarde
e um cheiro intenso de alcatrão penetra pelas janelas dos apartamentos
que carrega o perfume dos lilases que florescem de cor branca e carmesim
entre a castanha e a bétula.
É um maio quente. Eles se agitam como jovens demônios ao redor do fogo
mexendo a massa e adicionando carvão
mais impressionante que o sol incandescente.
Com uma polia de cordas móveis
baldes cheios do líquido espesso sobem até o telhado e machucam a videira,
depois do inverno rigoroso, ficou menos espesso
e mostra algumas partes da parede nuas.
Agora nosso pátio lembra a antessala do inferno
não falta nem penugem para cobrir os pecadores no alcatrão
porque os choupos já estão florescendo
e nuvens de luz flutuam no ar.
Um dos trabalhadores é um demônio particularmente sedutor.
Seus dentes brancos brilham quando ele os mostra na careta do esforço
enquanto balança um pedaço de pau no barril
seu cabelo preto brilha na testa alta como um arco-íris.
Ele está acompanhado por uma jovem diaba
diabolicamente linda em sua minissaia.
Todos os dias ele se senta confortavelmente em uma cadeira dobrável, longe da fogueira,
e contemplar o fogo silenciosamente ou apoiando o queixo em uma das mãos
lê um livro com uma capa colorida desgastada.
De vez em quando o trabalhador se volta para ela
como se quisesse verificar se não saiu
ou então senta-se em uma pilha de canos de metal na grama
olhando suas pernas.

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