Série um Século de Surrealismo – Poetas, 06
Organização e texto de Floriano Martins
Tradução de Eclair Antonio Almeida Filho
O encontro de Jorge Camacho (1934-2011) com André Breton (1896-1966) foi decisivo em duplo sentido, o de abertura do cubano para o riquíssimo ambiente surrealista e para o francês a descoberta de um artista total – poeta, pintor, gravador, designer, fotógrafo –, marcado por um espírito apaixonado e íntegro. O próprio Camacho confessa que o encontro, que se deu em 1959, graças ao amigo comum e escultor cubano Agustín Cárdenas, representou o início de uma nova vida artística e intelectual. A partir daí, aceito o convite a participar do grupo surrealista, se descortina toda uma agenda de maravilhas, que inclui exposições e participações em revistas e livros, dentre eles o seletivo Le surréalisme et la peinture (1965), de Breton. Inteiramente à vontade em sua vida nova, Camacho descobre um mundo singular e profundo envolvendo alquimia e esoterismo, assim como as leituras de Sade, Georges Bataille e Oskar Panizza, compreendendo múltiplo universo que mesclava erotismo e estudos sobre alucinações, o que acentuou a singularidade de uma poética que desde o princípio – tanto na pintura como na poesia – apontava na direção de uma evocação dos mundos subterrâneos. Um capítulo da biografia de Jorge Camacho, sempre ao lado de sua companheira, Margarita Camacho, diz respeito à última viagem do casal a Cuba, em 1957, por ocasião de sua participação no Salão de Maio de Paris em Havana, juntamente com Max Ernst, Wifredo Lam, Pablo Picasso, dentre outros. Na ocasião conhece o escritor Reinaldo Arenas, vítima de perseguição política. Jorge e Margarita tomam a decisão de retirar de Cuba alguns manuscritos de Arenas, graças ao que o escritor se tornou conhecido fora do cenário repressivo de seu país. Anos depois, Camacho envia uma carta a Fidel Castro, não sem, ao mesmo tempo, tratar de torná-la pública, onde condena a repressão e exige justiça para o povo cubano. A única resposta obtida foi o imediato desaparecimento de seus quadros das salas do Museu Nacional de Belas Artes de Havana. Há poucos anos, em afortunado contato que tive com sua viúva, Margarita, recebi diversos catálogos de exposições, além do precioso volume com sua poesia: L’arbre (1968). [FM]
ESCADA DE NUVENS
Meu grito bate asas
A sombra da faca-mentira.
O espelho fecha os olhos
Quando a luz alça voo.
– Se o pássaro arisco
Atear fogo na catedral de vento!
A noite congela a cortina
De Inconveniência.
Meu riso de sangue.
O CUBO MUDO
De tão antigas as folhas do colchão
Modelam o falso colo de meu rosto.
Enganchados ao templo da feira
Meus dedos umedecem a cal viva.
– À estátua de sal
Falta o olhar de antílope!
O meu coração-nevoeiro
Os meus olhos de puma
Tatuados de branco.
IF
A luz explode de riso louco
A janela se abre rumo a floresta de pimenta.
Locomotiva moedora de algodão
A casa roda sobre um lago de goma.
– O para-raios adormecido
sonha com a cabeleira cúprica?
A cidade é o nó transparente
De coração de mosca!
Quando as águas desérticas
Limitam o tremor de espuma.
As escamas dos peixes
Se tornam
Os ossículos dos trilhos.
ANTEGOSTO
No riacho de fogo
a lâmina se revira.
P. R.
Abram esferas!
O vento corre como uma lâmina de gelo.
Na soleira de carvão
Minhas unhas que não estão.
– Vale mais tirar o traço de geada
Pois a água está seca!
Para o olho cinzento que cai
Quando a pálpebra se evade:
A arma de gaze.
PEIXE-PRESSÁGIO
Na dobra do sangue
O vertical coração-de-dobradeira
Exsuda de ouro espumante de plumas de ferragens.
Para a torre espalhada
Exilada a crença líquida
O fio de estrela afogado de ar
Ata o raio que lê na aurora.
– Ao belo cogumelo de vidro!
Quando a ponte foge
Como uma bola preciosa.
A LUZ SILENCIOSA
O mundo como uma gota de osso
soçobra rumo ao azul da Prússia.
No espelho circulado de tua fronte
Habita o pó de cornamusa.
O despertar mira a mão que amarrota
A gravata faca de cristal.
Um coração sem cabo
Fere o inimigo de musgo?
O musaranho é um poleiro
Onde afundo minha memória de chumbo…
Aqui está o trevo encarnado
Da catarata de sal!
Quando fico pasmo com um riso viscoso.