Josep Vicenç Foix (Espanha, 1894-1987) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 31
Organização e tradução de Floriano Martins

J. V. Foix sempre esteve ao dia com as vanguardas, desde as páginas do diário Trossos (1918), sua prosa poética inicial, ao modo Apollinaire, sua amizade com Salvador Dalí, uma presença intensa de surrealismo, sobretudo, sempre foi possível encontrar em sua poesia, mesmo que mantivesse uma postura crítica não propriamente em relação ao movimento, mas sim às experimentações das vanguardas que ele considerava um risco à formação da língua catalã, ou seja, o poeta defendia um ponto de vista de que a literatura catalã era ainda um modelo em construção e poderia se deixar contaminar por aquilo que ele considerava os facilismos das linguagens vanguardistas. Em 1925, ele chegou a publicar um artigo que pode ser lido como uma resposta crítica ao primeiro manifesto surrealista de Breton, onde abordava negativamente a influência do cubismo e do futurismo. Entre 1926 e 1930, Foix colaborou em vários espaços vanguardistas: L’Amics de les Arts, Revista de Poesía e Quaderns de Poesia, sempre dando notícias oportunas sobre o Surrealismo graças à sua leitura de publicações de Paris e das cartas regulares de Dalí. É bom lembrar que Gertrudis (1927) e KRTU (1932) se encontram entre os melhores exemplos da prosa surrealista catalã.


[DIZEM QUE ANDAS ENCIUMADA]

Dizem que andas enciumada da garupa da moça da leiteria. Mas eu estava em sua casa e vi o console com o espelho diante do qual ela penteia seus cabelos. No fundo do espelho, duas grandes cortinas avermelhadas endossavam a entrada de um corredor em que havia uma pintura na parte de trás. Uma antiga litografia que apresenta as torturas a que o diabo submete as garotas que, de volta da dança, à meia-noite, se olhavam no espelho. Isso nos incomodou tanto que me levou um tempo perceber que a moldura do espelho e a entrada para o corredor não eram senão o cerco da entrada do estábulo em que reina a garupa de meu cavalo.


NOTAS SOBRE O MAR

Bem atado meu nariz de papelão, grotesco, eu passeava pelo cais com um imponente dicionário de sinônimos sob o braço. O barqueiro, queiras ou não, me fez navegar mar adentro. Ele era um pastor anglicano, e queria demostrar que os mais belos milagres aconteceram no mar. Mas ao perceber meu nariz arbitrário logo tratou de calar-se. A partir de então, enfaticamente, disse que nada além da vaidade dos homens permite que, na vida humana, nosso planeta seja chamado de Terra, mas que Deus e os santos o nomeiam, em seu idioma eterno, Mar; que a terra é apenas um acidente no nosso planeta, um fenômeno transitório. “Homens, ele me disse, são a pena de pombo do mar”. O grande enigma dos homens era, para o meu barqueiro, uma peixeira esférica que caía pelos espaços celestiais para o consolo dos anjos.

De chapéu e casaco negro, também com luvas negras, os três cavalheiros gesticulavam comicamente frente ao mar laranja. Quando eles me viram, retrocederam admirados. Surpreendido, indaguei com uma emoção precipitada: – Vocês também por aqui? E nos rimos loucamente. Então eu corri para vestir o terno preto, o chapéu, as luvas e desenhar com carvão três grandes rugas em minha testa. Na margem do rio, nos lembramos, com gestos teatrais e simétricos, o outro mar de cor laranja em que, um dia imprecisamente, também nos encontramos os quatro, vestidos de forma idêntica, e quando ao longo da margem do rio, também com grande risada, tentamos lembrar em que século, antes do país do mar laranja, certa ocasião discutimos os quatro qual planeta pertencia ao mar onde uma vez eles três e eu, todos em preto e rindo, tentamos lembrar…


NOTAS SOBRE O PORTO DA SELVA

Estendido na praia sem fim, eu vi como as ondas furiosas lançavam um tronco como o meu, porém em estado fóssil. Tentei, em vão, me incorporar; pseudo-morfeizado, meu corpo era um tecido espesso de caracóis pedregosos, de conchas antediluvianas, de deliciosas miniaturas bastante oxidadas de animais desaparecidos. No fundo de interstícios raros, uma membrana transparente descobria paisagens subaquáticas maravilhosas, onde os sinais do zodíaco flutuavam luminosos. Através da passagem escura que atravessa a rocha de Teiera, que encerra, virado para oeste, o horizonte, uma procissão incomum de monstros avançou; polvos com pernas de camelo, gigantes com cabeça de cavalo, mãos hercúleas suportadas por graciosas cordas de avestruz, olhos de córnea fosforescente entre enormes cílios de escama. Ah se o mar, transformado em uma única onda negra, cobrisse toda a Terra! Mas o mar, em sua transição noturna, é uma vasta laje de ônix, em que os cometas refletem suas artérias vermelhas e brilhantes, desenhando misteriosos deltas inabordáveis.

Sobre a testa cornuda dos cavalos que fazem barulho, incontáveis, pela praia, os cometas, em noite fechada, enroscam suas fibras incandescentes. Uma corrente tropical empurra o louco fazendeiro para mergulhar no mar. O mar é, nesta hora, um deserto móvel de areia negra de embarque impossível, em que os cavalos, com um fortíssimo relincho, deixam cair os olhos. A escuridão submerge a terra e conseguimos o choque ruidoso de milhares de corpos cristalinos.


PRÁTICAS

Um sofá na margem do rio é uma maravilha. Um homem, curvado sob o peso de um enorme R, avança lentamente, deixa a inicial no sofá, que hesita e dá no rio, mas o rio é de vidro e se quebrou com uma fenda irregular que vai de costa a costa. Se eu me abaixasse para sentir sua espessura, isso feriria a minha mão. Uma voz faz tropeçar o fundo dos álamos como se fosse uma decoração teatral, e claramente diz MARTA! Simultaneamente, repito o nome: (não serei o único que a chamou?). Esse R deve ser um M, é um M; não: é um R. Ah se o homem que a trouxe voltasse! Mas ele não se atreve a sair porque está em mangas da camisa e a cortina já está no alto.

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