Kay Sage (Estados Unidos, 1898-1963) – Série um Século de Surrealismo / Poetas

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Série um Século De Surrealismo – Poetas, 12
Organização e tradução de Floriano Martins

Kay Sage desempenhou relevante papel na recepção em Nova York de inúmeros surrealistas europeus, por ocasião da 2ª Guerra Mundial, e, por consequência, os desdobramentos do movimento em seu país. Tanto cuidou de fornecer documentos e recursos aos imigrantes – sem esquecer o pagamento de aluguel para o casal Elisa e André Breton, cuja viagem aos Estados Unidos foi diretamente influenciada por ela – como apresentou muitos deles às galerias onde se realizaram várias exposições. Houve, no entanto, seja da parte dos próprios surrealistas, bem como de seus biógrafos e historiadores – um inaceitável silêncio em relação à sua importância no estabelecimento do Surrealismo em terras estadunidenses. E o silêncio arrastou consigo até mesmo a percepção de sua própria obra pictórica, cujas paisagens insólitas, repletas de símbolos buscados em leituras totêmicas – de que é exemplo a reincidente presença de um ovo em várias telas – e fragmentos de uma decomposição arquitetônica, encontrou identificações – nenhuma ao ponto de ser considerada influência – com certos detalhes na obra de Giorgio De Chirico, Salvador Dali e Yves Tanguy. Muito mais do que paisagismo onírico, o que sua pintura parece evocar é uma leitura visionária de um mundo destruído, com a espantosa indicação de objetos que teriam ocasionado sua catástrofe ou que ainda poderiam vir a ser recuperados.


MUTAÇÃO

Não conte comigo;
Eu mudo tanto quanto a cordilheira em movimento.
Minhas premissas deslizam um pouco a cada temporada,
jamais por algum bom motivo.


ENFEITIÇADO

Vinho fugaz
Entrou como se nada tivesse acontecido para sair com tudo
Atingiu como uma nevasca e marchou com o sol para brilhar no crepúsculo
Um beijo murcho em meus lábios
E uma carícia fantasmagórica que ainda percorre meus corredores
Uma imagem encharcada que só me lembra o que devo esquecer
Espero a lua das ilusões com a esperança de me tornar uma brisa que embaça tua janela
Uma voz muda gritando desesperada versos de amor até de manhã
Sou um homem pobre, não tenho muito
O que me resta
Se nos sonhos eu também sou vítima de teu feitiço?


MEDIDA COMPLETA

Se puseres
todos os teus ovos
em uma cesta,
pelo menos terás
uma cesta cheia
de ovos.


AS CORES DA ALMA

Eu quero viver tuas nuances
Dos vermelhos mais brilhantes aos tons de cinza

Eu quero sentir teus lábios em minhas bochechas
E beber o café de tuas pupilas
Afogar-me em teus azuis
Perder-me nos brancos que vagueias
Ver florescer teu verde
E brotar teus amarelos
Conhecer o negro de tua morte
E renascer com tuas cores mais vivas


RAINHA

A vida não é um mar de rosas
ou, não exatamente, um leito de espinhos;
a vida é apenas um maldito tabuleiro de xadrez
cheio de muitos peões.


PERDIDO EM TUA MEMÓRIA

Luz eterna resplandecente que se fragmenta com tua pele de diamante
Vagalume vibrante que ilumina meu chão instável

Bêbado de ti, memória afogada em pranto de desejo
Chama incessante que grita por um beijo
Palpitação acelerada, caio entre as dimensões de teu olhar

Galáxias e auroras, luz e sombras projetadas em tuas sardas
És tu, a razão destas letras


MORALIDADE

Ela é apenas uma prostituta
nem menos, nem mais;
porém devido à moral
e à didática,
ela é pura demais
para realmente praticar.

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