Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 10
Organização e tradução de Floriano Martins
Pedro García Cabrera é um dos grandes nomes da tradição lírica das Ilhas Canárias. Ainda jovem publicou Líquenes (1928), considerado pela crítica um livro decisivo, cuja temática navega por entre ilhas e mares, com a intensidade das viagens que marcaram sua vida. García Cabrera fez parte da geração espanhola do ’27, porém sua grande atuação se dá junto aos amigos poetas e artistas, nas Ilhas Canárias, que em 1932 fundaram o periódico Gaceta de Arte, destacada revista literária e filosófica que trata do cinema e das artes plásticas. Graças a esta publicação o grupo chamou a atenção internacional, e em seu torno se definiu toda uma geração surrealista. Além da poesia, Pedro García Cabrera também foi autor de obras de teatro e textos políticos. Sua atividade política o levou à prisão, por ocasião da eclosão da Guerra Civil Espanhola, encarcerado em um navio-prisão, juntamente com outros políticos republicanos acusados de socialistas. Posteriormente seria enviado para o campo de prisioneiros da Villa Cisneros, no Sahara espanhol. Em março de 1937 ele conseguiu escapar e seguiu para Dakar, onde permaneceu escondido por sete meses. Foi a época em que conheceu o grande poeta senegalês Léopold Sédar Senghor. Sua vida, no entanto, foi marcada pela tragédia. Ao tentar retornar à Espanha, sofreu um acidente de carro, que lhe queimou as pernas. Foi novamente detido em Granada e desta vez ficou preso até 1946. Mesmo após libertado, com o fim da guerra, permaneceu em prisão domiciliar, na cidade de Santa Cruz de Tenerife, onde ocupou um cargo burocrático inexpressivo. A quase totalidade de sua obra, portanto, foi escrita em cativeiro. Entre seus livros, encontramos Con el alma en un hilo (1936-1937), En el puño del recuerdo (1940), Agenda de un prisionero (1939-1940), Día de alondras (1951), La esperanza me mantiene (1959), Entre cuatro paredes (1968), Vuelta à la isla (1968), Hora punta del hombre (1970), Las islas en que vivo (1971), Elegías muertas de hambre (1975), Ojos que no ven (1977) e Hacia la libertad (1978).
POLUIÇÃO
Agora estamos na capela.
Nenhum juiz assinou a sentença
Para deixar de ver a face dos dias,
os cabelos do ar,
o sopé das montanhas.
As fábricas saem como querem:
imolam
o que ainda nos restava.
E a morte produz dividendos
nesta sociedade de sepultura aberta
que chamamos de consumo.
Até ao mar machuca o horizonte,
a solidão da nossa companhia.
Estão perdendo ar os pulmões,
o mar suas esperanças
e os rios suas coxas sem regaço.
E não digamos nada das penas
daqueles que trabalham à noite
para encontrar o amanhecer.
Façam um plebiscito.
E deixem as árvores votarem
com seus ninhos vazios,
as águas com seus peixes flutuando à deriva,
as tocas nuas.
E que os desertores também votem,
as ilhas, as areias,
as latas de lixo nas ruas,
o beijo dos noivos e dos cinemas.
Sim, votemos no sonho da vida
aqueles que estamos à beira da morte.
PILOTO DA MINHA MORTE
Quando o gelo ganha o jogo
para a fogueira em que queimo,
quando minha existência já é um mito,
me enterrem nas margens do mar,
onde as ondas continuam defendendo
a liberdade que sempre fecundou
a ilha do meu corpo,
o leme jamais rebentado
que deu direção aos meus passos
e encheu minhas veias de horizontes.
Eu terei vida enquanto meu sonho viver
e seu rumor levante minha palavra
dos pés da água sem fronteiras
até os templos da eternidade.
BIOGRAFIA MÚLTIPLA
Um dia escreverás a tua história.
Ilhas que têm um beijo de coral
e as raízes, pirâmides de sombra
e ninhos de vulcões, que te desenham
–gêmeas de teus elevados mirantes–
em cartas ausentes de teus olhos
que pulsam a insônia das velas.
São imagens tuas, anagramas
da solidão de boca sem amante,
maduras de esperar, mães de mitos
com anjos tatuados e tambores,
vinhetas fiéis de tua biografia.
COMO UMA ÁRVORE
Foi em tua pequena mão,
no mar de uma mão,
onde semeei a minha vida
como uma árvore.
Teus dedos, nossos dedos,
raízes de ternura.
E a sombra sobre nós cresceu
como uma árvore.
As minhas mãos nas tuas
teus dedos enxertados nos meus,
a árvore tornou-se um ninho.
Foi em tua pequena mão,
no mar de uma mão,
onde nós dois nascemos
como uma árvore.
ILHAS DO DESPERTAR
Chega de ser pontas apagadas
do cinzeiro dos mares.
Umbigos da sede,
só um prazer da humanidade pode nos valer.
Vivemos como ardemos e pensamos,
com nosso sentimento de vulcões
e a melancolia de estarmos sós.
A pirotecnia de um amor de fundo
nos acelera, embora pareça,
de tão rápido, um cronômetro parado.
Esperar não é um fim.
Borrão e conta nova para a brandura
de ruminar solidões.
Nosso escoamento de esperanças
não esconde o punho da rebeldia.
E rompemos o pijama do silêncio.
Nem somos descendentes
de uma língua cortada
nem queremos suar fel e vinagre
nem continuar sendo súditas
de uma feira de esquecimentos.
Não desejamos outras pertinências
que não sejam as asas dos voos.