Por Gladys Mendía, poeta, tradutora e editora na PL5
É importante para mim escrever sobre um autor peruano que me impactou desde que o li pela primeira vez em 2007, César Moro. Nascido como Alfredo Quíspez Asín em Lima, Peru, em 1903, Moro é um gênio com um lugar especial na história da literatura latino-americana. Sua obra, vida e influência no surrealismo internacional oferecem uma fascinante jornada pela vanguarda artística e literária do século XX.
Para compreender a obra de César Moro, é essencial conhecer alguns aspectos de sua vida. Moro viveu em uma época de profunda mudança política e cultural no Peru e no mundo. Em sua juventude, ele se juntou ao movimento literário vanguardista, que buscava romper com as convenções artísticas estabelecidas e explorar novas formas de expressão. Moro se destacou como poeta, mas também como artista plástico, o que lhe permitiu explorar a interseção entre a palavra e a imagem em sua obra.
No prólogo da Exposição Internacional de Surrealismo realizada em 1940 no México, Moro diz o seguinte sobre a pintura surrealista:
“A aventura concreta por excelência. É o salto que esmaga as cabeças viscosas e amorfas da escória intelectual. Da passagem da aventura surrealista, entre milhares de flores maiores que galgos e menores que o céu, lançam-se lanças pueris de quem pretendia ser escorpiões, mas eram apenas formigas trabalhadoras. Uma multidão de mariposas noturnas cobre literalmente cada centímetro da pintura surrealista, presságios e maldições suculentas pululam; o céu inerte confessa, finalmente, seu papel de pano de fundo para o tédio, para o desespero do homem”.
Sua poesia e colagens são claras manifestações do surrealismo, com o uso de imagens oníricas, exploração do subconsciente e ruptura das regras gramaticais e linguísticas. Mas, acima de tudo, é uma poesia autêntica, que encontra sua razão de ser em sua própria existência. Seus versos são essenciais, assim como a natureza e seus instintos. O que me cativa na poesia de Moro é que ela vem de um movimento irresistível. Uma vibração que nasce com as palavras certas e não outras, com essas imagens impossíveis. Uma palavra que nasce libertando-se de seus limites e inventando sua própria reviravolta, na qual a vida está em jogo. É tudo ou nada. Essa é sua paixão poética.
Moro é capaz de alcançar os níveis mais profundos, criando uma rede de relações incomuns. Em sua busca sobrehumana, ele usa a linguagem poética porque seria impossível expressá-la em uma linguagem cotidiana. Para dizer sua verdade, ele usa todas as ferramentas possíveis, humanas e cósmicas; ele leva a linguagem ao extremo em sua busca por renovação. Além da consciência pessoal, há a inconsciência coletiva. Ele não apenas inclui e relaciona elementos opostos, mas também mostra a simetria, sem limitações. Ele nos apresenta aquele “ponto fósforo onde a realidade se recupera, mas transformada”, como diz o autor francês Antonin Artaud (1896-1948) em seu livro “O Pesa-Nervos”; que entendeu o surrealismo como “um meio de libertação total do espírito” e acredita nas “cosmogonias individuais”.
“Primeira vez”, um poema colagem de Moro.
Moro colaborou na revista Amauta, dirigida por José Carlos Mariátegui entre 1926 e 1930. No número 14, de abril de 1928, ele publicou três de seus primeiros poemas em espanhol: “Oráculo”, “Folowing you around”, mais tarde intitulado “Abajo el trabajo”, e outro poema anterior escrito em Lima, “Infancia”, datado de 1924.
César Moro é, sem dúvida, um dos expoentes mais importantes da vanguarda na América Latina. Ao longo de sua carreira, ele se relacionou com figuras proeminentes do movimento surrealista (em 1928), como André Breton e Benjamin Péret. Foi nessa época que ele começou a escrever em francês, idioma que aprendeu na escola. Em 1933, ele retornou ao Peru. Juntamente com seu amigo Emilio Adolfo Westphalen, ele se dedicou a disseminar os princípios do surrealismo. Em 1938, ele se estabeleceu no México. Lá, ele começou a amizade com escritores e artistas como Leonora Carrington, Wolfgang Paalen, Benjamin Péret, Remedios Varo, Xavier Villaurrutia, ao mesmo tempo em que se afastava do surrealismo parisiense. Ele se aproximou do universo poético de Marcel Proust. Foi no México que ele escreveu sua obra “A Tartaruga Equestre” (escrita em 1938, mas publicada em 1957 por André Coyné). Inspirado por uma experiência amorosa angustiante, seu relacionamento com seu amante mexicano durante oito anos. “A Tartaruga Equestre” é um exemplo perfeito de seu estilo surrealista, onde os elementos se entrelaçam de maneira inesperada e desafiadora. Lá estão presentes o tenente mexicano chamado Antonio, o poeta peruano chamado César e uma tartaruga chamada Cretina. O poema a seguir não está incluído em “A Tartaruga Equestre”, foi escrito em 1939 e publicado pela primeira vez em “Obra Poética 1” (1980), mas o incluo aqui para mostrar o nível de paixão e adoração que César sente por Antonio naquela época e como ele leva essa adoração ao nível cósmico:
ANTONIO é Deus
ANTONIO é Deus
ANTONIO é o Sol
ANTONIO pode destruir o mundo em um instante
ANTONIO faz chover
ANTONIO pode escurecer o dia ou iluminar a noite
ANTONIO é a origem da Via Láctea
ANTONIO tem pés de constelações
ANTONIO tem o sopro de uma estrela cadente e da noite escura
ANTONIO é o nome genérico dos corpos celestes
ANTONIO é uma planta carnívora com olhos de diamante
ANTONIO pode criar continentes se cuspir no mar
ANTONIO faz o mundo dormir quando fecha os olhos
ANTONIO é uma montanha transparente
ANTONIO é a queda das folhas e o nascimento do dia
ANTONIO é o nome escrito em letras de fogo em todos os planetas
ANTONIO é o Dilúvio
ANTONIO é a época Megalítica do Mundo
ANTONIO é o fogo interno da Terra
ANTONIO é o coração do mineral desconhecido
ANTONIO fecunda as estrelas
ANTONIO é o Faraó, o Imperador, o Inca
ANTONIO nasce da Noite
ANTONIO é venerado pelas estrelas
ANTONIO é mais bonito do que os colossos de Mênfis em Tebas
ANTONIO é sete vezes maior que o Colosso de Rodes
ANTONIO ocupa toda a história do mundo
ANTONIO supera em majestade o espetáculo grandioso do mar enfurecido
ANTONIO é toda a Dinastia dos Ptolomeus
O México cresce ao redor de ANTONIO
As reviravoltas que ocorrem em “A Tartaruga Equestre” participam de uma dimensão cósmica e mítica, transportando o leitor para lugares celestiais de deuses e semideuses. Diz Américo Ferrari, poeta, tradutor e ensaísta peruano, que “A Tartaruga Equestre” tem um histórico. Aparentemente, Moro ficou muito impressionado ao testemunhar a cópula entre duas tartarugas. Depois, adotou uma tartaruga que chamou de “Cretina”. Essa cena da cópula das tartarugas aparece no poema “Liberdade-Igualdade”:
A divina tartaruga sobe ao céu da selva
Seguida pelo tigre alado
……………………………………………………………….
Em vão os olhos se cansam de olhar
O divino casal envolto na cópula
Rema interminavelmente entre os galhos da noite
De tempos em tempos, um vulcão irrompe
A cada gemido da deusa
Sob o tigre real
Maravilhosa representação poética e erótica. O tigre e a tartaruga são o casal divino. Antonio é o tigre que “cuspe de manhã para fazer o dia”, o “belo demônio da noite, tigre implacável de testículos estelares, grande tigre negro de sêmen inesgotável…”
O poema a seguir foi o primeiro que li de César Moro:
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A água lenta, o caminho lento, os acidentes lentos
Uma queda suspensa no ar, o vento lento
O passo lento do tempo lento
A noite não termina e o amor se torna lento
As pernas se cruzam e se entrelaçam lentamente para criar raízes
A cabeça cai, os braços se levantam
O céu da cama, a sombra cai lentamente
Seu corpo moreno como uma cachoeira cai lentamente
No abismo
Giramos lentamente pelo ar quente do quarto aquecido
As mariposas noturnas parecem grandes carneiros
Agora seria fácil nos destruirmos lentamente
Arrancarmos os membros, beber o sangue lentamente
Sua cabeça gira, suas pernas me envolvem
Suas axilas brilham na noite com todos os pelos
Suas pernas nuas
No ângulo certo
O cheiro das suas pernas
A lentidão da percepção
O álcool lentamente me levanta
O álcool que brota dos seus olhos e que mais tarde
Fará crescer sua sombra
Passando a mão lentamente, subo
Até seus lábios de besta
Em 1944, “Carta de Amor” foi publicada no México, traduzida do francês para o espanhol por Westphalen. Lá, Moro escreveu poemas de amor de uma intensidade lírica sem igual. Poemas que Américo Ferrari recomenda ler como cartas. O próprio autor, em uma carta ao seu amigo Westphalen, diz: “Para lê-lo bem, seria preciso lê-lo em um único soluço. É muito íntimo. Pense que é uma carta com um destinatário”. E em outro momento ele diz: “A maioria das minhas cartas são testemunhos”.
Carta a Antonio
“Eu te amo com tua grande crueldade, porque você aparece no meio do meu sonho e me levanta e como um deus, como um deus autêntico, como o único e verdadeiro, com a injustiça dos deuses, todo deus negro noturno, todo de obsidiana com sua cabeça de diamante, como um potro selvagem, com mãos selvagens e pés de ouro que sustentam seu corpo negro, você me arrasta e me joga no mar das torturas e suposições.
Nada existe fora de você, apenas o silêncio e o espaço. Mas você é o espaço e a noite, o ar e a água que bebo, o veneno silencioso e o vulcão em cujo abismo caí há muito tempo, há séculos, antes mesmo de nascer, para que de seus cabelos você me arrastasse até minha morte.
Em vão me debato, em vão pergunto. Os deuses são mudos; como um muro que se afasta, assim você responde às minhas perguntas, à sede ardente da minha vida.
Por que resistir ao seu poder? Por que lutar com sua força de raio, contra seus braços de correnteza; se assim deve ser, se você é o ponto, o polo que imanta minha vida.
Sua história é a história do homem. O grande drama em que minha existência é a sarça ardente, o objeto de sua vingança cósmica, de seu rancor de aço.
Tudo sexo e tudo fogo, assim você é. Tudo gelo e tudo sombra, assim você é: belo demônio da noite, tigre implacável de testículos estelares, grande tigre negro de sêmen inesgotável de nuvens inundando o mundo.
Guarde-me junto a você, perto de seu umbigo onde começa o ar; perto de suas axilas onde o ar termina. Perto de seus pés e perto de suas mãos. Guarde-me junto a você.
Serei sua sombra e a água da sua sede, com olhos; em seu sonho serei aquele ponto luminoso que se expande e transforma tudo em chama; em sua cama, ao dormir, você ouvirá como um murmúrio e um calor em seus pés se entrelaçará e subirá lentamente, apoderando-se de seus membros, e um grande descanso tomará seu corpo e, ao estender a mão, sentirá um corpo estranho, gelado: serei eu. Você me leva em seu sangue e em sua respiração, nada pode me apagar.
Sua força é inútil para me afastar, sua raiva é mais fraca que meu amor; já você e eu, unidos para sempre, apesar de você, vamos juntos.
No prazer que você tira longe de mim, há um soluço e seu nome.
Diante de seus olhos, o fogo inextinguível”.
Em uma das cartas enviadas ao seu amigo Westphalen, datada de 6 de julho de 1946, ele diz:
“Se você soubesse como estou atormentado e como esse novo tormento se junta à minha perseguição. Se eu pudesse te dizer o quanto a vida me oprime, como se organiza para matar toda esperança, todo desejo, antes de me matar fisicamente. Se entregar completamente a uma ideia ou a um amor e, depois de oito anos de dedicação, de amor louco, de adoração, se encontrar pior do que no começo, ou seja, mais sozinho por causa dessa derrota e tão machucado.”
O escritor colombiano Omar Castillo afirma em um texto crítico literário incluído no volume bilíngue “As selvas despidas gemendo” (Cintra e ARC Edições, 2020):
“A obra poética de César Moro é uma demonstração das provocativas buscas realizadas nas veias da linguagem e das descobertas obtidas para a expansão significativa do idioma espanhol. A forma como ele escreve seus versos, sem qualquer pontuação, permite que seus poemas tenham um ritmo em constante construção, uma sequência de imagens produzindo uma imantação de desenho que revela o imprevisível de suas descobertas, o momento repentino em que cada palavra ressurge das cinzas para capturar a atenção do leitor atento”.
Encerrando este breve ensaio, gostaria de compartilhar um poema que considero uma declaração de vida em relação à poesia:
Viagem para a noite
É minha morada suprema,
da qual não há retorno
Krishna (Bhagavad Gita)
Como uma mãe sustentada por ramos fluviais
De espanto e de luz de origem
Como um cavalo esquelético
Radiante de luz crepuscular
Atrás do denso ramal de árvores e árvores de angústia
Cheio de sol, o caminho de estrelas do mar
A acumulação fulgurante
De dados perdidos na noite completa do passado
Como um suspiro eterno se você sair à noite
Sopra o vento e passam os javalis
As hienas saciadas de rapina
Dividido ao longo do espetáculo
Faces sangrentas do eclipse lunar
O corpo oscila em chamas
Através do tempo
Sem espaço mutável
Pois o eterno é o imóvel
E todas as pedras jogadas
Para o vendaval nos quatro pontos cardeais
Retornam como pássaros guias
Devorando lagos de anos desmoronados
Teias insondáveis de tempo caído e lenhoso
Cavidades enferrujadas
No silêncio piramidal
Esplendor fúnebre e cintilante
Para me dizer que ainda estou vivo
Respondendo por cada poro do meu corpo
Ao poder do seu nome, oh poesia
César Moro é fundamental na história da literatura e da arte do século XX. Sua criação é uma expressão de liberdade através da imaginação. Fiel ao seu instinto e intuição, é um tesouro único que merece ser redescoberto e celebrado no contexto da literatura universal e da vanguarda artística.
(Santiago do Chile, octubro 2023).
que beleza de artigo!
Obrigada!!!