5 Poemas de César Moro (Peru, 1903-1956)

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Apresentação e tradução de Floriano Martins

César Moro é uma das mais singulares vozes poéticas do Surrealismo. Poeta bilíngue, ele deixou a maior parte de sua obra escrita em francês. Poeta e pintor, em 1935 organiza em seu país a primeira exposição internacional do Surrealismo na América Latina. Posteriormente, em 1940, já residindo no México, Moro organiza, ao lado de Breton e Wolfgang Paalen, a 4ª Exposição Internacional do Surrealismo. Sua bibliografia inclui livros como Le chatêau de grisou (1943), La tortuga ecuestre e Los anteojos de azufre – ambos em 1958, póstumos. Nele pintura e colagem acentuam uma experiência com o automatismo. Teve uma tríplice residência – Lima, Paris, Ciudad de México –, em cada uma delas confirmando o papel de destaque por ele representado em ambiente surrealista, onde ingressou desde 1928, mesmo quando do grupo se afasta, anos depois, por desacordos com André Breton. Como decorrência desse afastamento, seu amigo e curador André Coyné observa que durante anos, Moro havia confundido surrealismo e poesia. A partir daí, oporá a poesia ao surrealismo, ou, melhor dizendo, desistirá de lhe aplicar qualquer cânone, reconhecendo-a à margem de toda qualificação. Em meu livro Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (2016) eu destaco a expressiva atuação de Moro junto ao Surrealismo, seja na organização de exposições e direções de revistas, como também na escritura de diversos textos sobre artes plásticas, em seguida frisando que houve um momento em que se tornou impossível o convívio com o dogmatismo heterossexual de Breton, principal aspecto a contribuir para sua dissidência do grupo em 1944. César Moro é um dos mais originais e expressivos poetas do Surrealismo.


NO CORAÇÃO DA REALIDADE

Vela do sonho sobre a ribanceira
Azeite das pálpebras funcionando no vazio
A astúcia a embriaguês o pretexto
Mortalha das pedras e dos pães dormidos
Caem em mim para que as lágrimas
Com suas facas vacilantes
Assaltem o último esconderijo
Das asas ornadas de grãos
De promessas de palavras avultadas


ACERTO DE CONTAS

Devemos a íris do olho o orvalho a embriaguês
Uma noite em que me querias derrubar eu levava uma negra bandeira
A noite em que todas as chamas falavam com a boca fechada
Olhos desviados e retornados à baía

A noite em que tudo falava de um encantador desejo de morte
Em que as lágrimas uma vez que disseram tudo queriam me levar para outro lugar
Para um soberbo túmulo de pó de mármore
Um tumulto de hipnose progressiva
A violência prometida o atrativo irregular
Sempre o fogo do pensamento a ideia fixa
Se eu quisesse viver não seria nesta ilha


O CHEIRO E O OLHAR

O cheiro fino solitário de tuas axilas
Um amontoamento de coroas de palha e feno fresco cortado com dedos e asfódelos e pele fresca e galopes distantes como pérolas
Teu cheiro de cabeleira sob a água azul com peixes negros e estrelas do mar e estrelas do céu sob a neve incalculável de teu olhar
Teu olhar de holotúria de baleia de pedernal de chuva de jornais de suicidas úmidos os olhos de teu olhar de pé de madrepérola
Esponja diurna na medida em que o mar cospe baleias enfermas e cada escada rejeita seu transeunte como a besta empestada que povoa os sonhos do viajante
E golpes cintilantes sobre as têmporas e a onda que apaga as centelhas para deixar sobre o tapete a eterna questão de teu olhar de objeto morto teu olhar apodrecido de flor


O MUNDO ILUSTRADO

Assim como a tua janela que não existe
Como uma sombra de mão em um instrumento fantasma
Assim como as veias e o percurso intenso de teu sangue
Com a mesma igualdade com a continuidade preciosa que me assegura idealmente a tua existência
A uma distância
À distância
Apesar da distância
Com tua fronte e teu rosto
E toda a tua presença sem fechar os olhos
E a paisagem que brota de tua presença quando a cidade não era não podia ser senão o reflexo inútil de tua presença de hecatombe
Para melhor molhar as plumas das aves
Cai esta chuva de muito alto
E me encerra dentro de ti a mim sozinho
Dentro e longe de ti
Como um caminho que se perde em outro continente


OH FUROR A AURORA SE DESPRENDE DE TEUS LÁBIOS

Regressas na nuvem e no hálito
Sobre a cidade adormecida
Golpeias minha janela sobre o mar
Minha janela sobre o sol e a chuva
Minha janela de nuvens
Minha janela de seios sobre frutos ácidos
Janela de espuma e sombra
Janela de marulho
Sobre altas marés regressam os penhascos em delírio e a alucinação precisa de tua fronte
Sobre altas marés tua fronte e mais longe tua fronte e a lua é tua fronte e um barco sobre o mar e as adoráveis tartarugas como sóis povoando o mar e as algas nômades e as que fixas suportam o marulho e o galope de nuvens persecutórias o ruído das conchas as lágrimas eternas dos cocrodilos a passagem das baleias a crescente do Nilo o pó faraônico a acumulação de dados para calcular a velocidade do crescimento das unhas nos tigres jovens a prenhez da fêmea do tigre o salto matinal dos caimães o veneno em taça de prata as primeiras marcas humanas sobre o mundo teu rosto teu rosto teu rosto
Regressam como a carapaça divina da tartaruga defunta envolta em luz de neve
A fumaça regressa e se acumula para criar representações tangíveis de tua presença sem retorno
O pelo açoita o pelo regressa não se move o pelo golpeia sobre um tambor finíssimo de algas sobre um tambor de rajadas de vento
Sob o céu inerme vencendo sua distância golpeias sem som
A fatalidade cresce e cospe fogo e lava e sombra e fumaça de panóplias e espadas para impedir teu passo
Fecho os olhos e tua imagem e semelhança são o mundo
A noite se deita ao meu lado e começa o diálogo ao qual assistes como uma lâmpada votiva sem um murmúrio pestanejando e queimando-me com uma luz tristíssima de esquecimento e de casa vazia sob a tempestade noturna
O dia se ergue em vão
Eu pertenço à sombra e envolto em sombra jazo sobre um leito de lume

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