A Literatura e o Ativismo Indígena – Entrevista com Márcia Kambeba

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Entrevista concedida a Juie Dorrico e Demetrios Galvão em abril de 2020


Márcia Wayna Kambeba é indígena, do povo Omágua/Kambeba no Alto Solimões (AM). Nasceu na aldeia Belém do Solimões, do povo Tikuna. Mora hoje em Belém (PA) e é mestra em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas.

Escritora, poeta, compositora, fotógrafa e ativista, Márcia percorre todo o Brasil e a América Latina com seu trabalho autoral, discutindo a importância da cultura dos povos indígenas, em uma luta descolonizadora que chama para um pensar crítico-reflexivo sobre o lugar atual dos povos originários sul-americanos.


1- Márcia Kambeba fale-nos um pouco da sua origem e da sua história que atravessa dois povos, os Tikuna e os Omágua/Kambeba. Você poderia traduzir o que significa os dois nomes dos povos?

Sou do povo Omágua / Kambeba nasci em uma aldeia chamada Belém do Solimões em 1979 no Amazonas – Alto Solimões. Ainda nasci em meio a ditadura pelo ano. Os Tikuna me acolheram na aldeia entre eles tanto que falaram à minha avó que eu passaria pelos rituais deles incluindo a menina moça. Mas saí da aldeia com 9 anos de idade, não passei pelo ritual da menstruação por tanto. Nasci nessa aldeia porque minha avó era professora lá, morou entre os Tikuna um bom tempo. Segundo meu padrinho que é da Funai de Tabatinga no AM, ela deve ter chegado na aldeia antes de 1973, ano em que ele fez contato com esse povo. Foram anos de muito aprendizado com os Tikuna que me rendeu a experiência de poder dizer: nasci e vivenciei a cultura indígena. Tenho memórias lindas das quais conto em livros.

Mas somos do povo Omágua/Kambeba apesar de termos na família o sangue Kokama e por parte do pai de minha mãe o povo Witoto. Mas afirmar uma identidade é você assumir um povo saber sobre ele e sua relação com sua origem. E minha avó fez esse papel de nunca deixar eu esquecer a origem. Omágua significa povo das águas. E Kambeba apelido dado pela remodelação do crânio, um ritual de iniciação para dizer que eram um povo diferenciado. Não comiam carne humana. Não praticavam antropofagia.

2- Fale-nos como é ser uma mulher Omágua/Kambeba na luta pela visibilidade e direitos aos povos indígenas via literatura.

Ser mulher Omágua e estar na literatura é desafiador. Escrever memórias, narrativas contadas pelos mais velhos na maioria dos avós, é tarefa das mais sublimes porque marca em mim a identidade que carrego. Precisamos informar, ecoar, marcar o lugar do saber em nós, compreendendo que somos parte integrante de uma nação. E precisamos de mais e mais parentes escrevendo. A arte que os povos fazem na cidade nas várias linguagens é um ativismo. Aplausos são bons, mas, a visibilidade tem que ser da causa, da luta e poucos na cidade entenderão a nossa luta por esse olhar. Por isso nos rotulam de artistas indígenas, até somos, mas gostamos mesmo de ser ativistas indígenas.

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3- Recentemente você estave envolvida em um debate sobre o direito dos indígenas poderem ser registrados, oficialmente nos documentos, com o seu nome originário, étnico, próprio de sua cultura tradicional. Essa ainda é uma pauta que precisa ser conquistada e por que esse debate é importante?

Sim. Ter o nome indígena no registro civil, no RG, é um direito de todos os povos. Quando nasci não podia ser registrada criança com nome indígena por ordem do governo. Uma estratégia de silenciar nosso direito, dizimar os povos tirando deles o nome étnico. Hoje as crianças que nascem nas aldeias podem ter em seu Registro, seu nome étnico do povo ao qual pertencem. No meu caso, eu tenho que lutar na justiça se quiser ter. Mas a gente luta por coletividade, não individualizado.

4- Como as tradições Tikuna e Omágua/Kambeba aparecem na literatura que você faz?

Tenho falando pouco no povo Tikuna. Mas eles estão em meus poemas e textos. Quando falo de solidariedade, de ajuri, estou rememorando tudo que vi no período de aldeia.

No meu terceiro livro que ainda que sai esse ano, creio eu, os Tikuna estão mais em foco porque falo de educação indígena e minha memória foi buscar o tempo de minha avó na aldeia como professora. O meu tempo de aprendizado na aldeia em que nasci. Então os Tikuna vêm com força nesse livro. Os Omágua/Kambeba são sempre citados. O meu livro Ay kakyri Tama é dedicado a falar do meu povo. Mostro como se dá a territorialidade e a geografia da aldeia Tururucari Uka onde desenvolvi uma relação de carinho e amizade e de pesquisa. Mas não nego que o que trago de memória, me foi passado pelos Tikuna, como toda relação com a terra e com o rio.

5- Quando e como você compreendeu que poderia se comunicar com o mundo não indígena pela poesia?

Entendi que poderia me comunicar com a literatura e poesia e arte trazendo isso para uma luta social, ambiental, cultural e política quando terminei o mestrado. Antes fazia, mas era no âmbito da fala, da militância mais precisamente. Já na cidade os Tikuna estavam sempre em casa. Quando iam a São Paulo de Olivença cidade que moramos depois de sair da aldeia eles iam em grupo nos visitar. Amavam minha avó. E sempre em casa tinha um Tikuna morando pra estudar. Então nunca perdi a relação de carinho e amizade com o povo que me adotou. Mas depois que entreguei a dissertação pensei: posso fazer essa pesquisa circular através da arte poética. Então voltei a escrever de acordo com o que tinha de conteúdo em meu trabalho. Foram anos de pesquisa para ficar parado em uma biblioteca de Universidade. E aí nasce o Ay kakyri Tama – Eu moro a cidade. Porque não tenho medo dessa afirmação.

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livro Ay Kakyri Tama – Eu Moro na Cidade de Márcia Wayna Kambeba

6- Recentemente li uma entrevista do Kaká Werá em que ele diz que: para o tupy-guarani, “ser” e “linguagem” é uma coisa só. A palavra que designa “ser” é a mesma que designa “palavra” e mais adiante ele complementa, você é o que você fala. Como é para você e o seu povo essa relação entre o pensar, o existir e a palavra?

A palavra é nossa maior forma de educar, de orientar, de repassar saberes. Kaká Wará é um sábio. A escrita aparece bem depois. Ela é recente para nós. A palavra ainda continua sendo nossa forma de articulação, de estratégia tanto que a literatura que fizemos nasce da palavra que ouvimos. A palavra é o desenho, a escrita do pensamento. Depois com o tempo começamos a desenhá-la e nasce a literatura originária ou indígena.

7- Normalmente estamos acostumados a imaginar a figura do pensador e do filósofo como um indivíduo branco e europeu (ou descendente dele). Mas, recentemente o debate acadêmico e o mercado editorial começou, vagorosamente, a integrar figuras diferenciadas no cenário, como os pensadores Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak que vêm ganhando destaque. Como você vê a representatividade deles ocupando, juntamente com outrxs, esse lugar de fala dentro do debate intelectual brasileiro e mundial?

Gosto dos dois. Ailton Krenak é meu amigo amado. Vejo com bons olhos porque precisamos ganhar espaço onde não tínhamos. Precisamos falar e nosso eco precisa ter longo alcance. E acredito que mais indígenas chegarão a esse patamar de Ailton, Davi, Daniel, Eliane entre outros que já tem projeção nacional e mundial. É preciso caminhar e plantar boas árvores pra gerar bons frutos.

8- Das últimas eleições presidências pra cá a Sônia Guajajara vem ganhando uma visibilidade muito interessante no campo do ativismo político e também, dentro do debate feminista indígena. Além dela, temos também a Daiara Tukano e outras tantas, como você observa a atuação das mulheres indígenas nesse cenário?

O cenário indígena feminino tá cheio de mulheres guerreiras e de força. Isso dá uma cara nova ao movimento. Eu me encanto com cada mulher indígena que vejo e que escuto. Cada fala carrega uma esperança, uma força e uma certeza de dias melhores para nossa nação indígena. Gosto das duas Parentas e quero ver mais indígenas mostrado sua cara de povo, de aldeia sem medo das críticas porque elas vem de pessoas ou que desconhecem sobre o que é pertencimento e identidade ou porque tem vontade de ser como aquela mulher e ainda não achou o caminho e aí vem a inveja e sentimentos que são entraves para um crescimento e amadurecimento espiritual. Eu aplaudo todas que se destacam nesse mundo de militância porque eu sei não é fácil mostrar a cara e deixar ela em foco.

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9- Muita gente acha que quando o indígena sai da aldeia ele perde suas origens e suas características. Esse equívoco lançado aos indígenas que vivem em contexto urbano também é decorrente de velhas crenças estabelecida na antiga legislação nacional (do Diretório dos Índios ao Estatuto do Índio – Lei 6001 de 1973.) O livro intitulado “Ay kakyri Tama: Eu Moro na Cidade”, já com duas edições, fala um pouco sobre essa relação entre os dois mundos (floresta – cidade). Comente sobre como é ser uma indígena em contexto urbano e como a sociedade poderia se despir de seus preconceitos sobre o tema.

Quando o indígena sai da cidade ele leva o que mais tem de importante e sagrado, sua memória e identidade. Acredito que esse preconceito que existe por parte das pessoas não indígenas, de que quem deixou a aldeia não é mais indígena “verdadeiro”, um dia vai mudar. Não existe ser ou não ser verdadeiro. Existe o ser, aquele que faz parte de uma coletividade, que entende que seu lugar é a aldeia, mas que a cidade pode fazer com que ele adquira outros sabores que venham a somar com os de sua aldeia. E a partir do momento que eu entendo meu lugar, meu tempo, meu mundo, eu consigo fazer essa ponte ligando aldeia e cidade em mim entendendo que posso usar relógio, celular etc., mas meu ritual, meu banho de rio, meu peixe com farinha terá o mesmo sabor de aldeia porque tá em mim e não me faz menor do que os que estão na aldeia. Mas a sociedade não entende assim, então precisamos lutar pelos que vivem na cidade também. Para que tenham direitos tanto quanto os que estão na aldeia. Por isso meu livro carrega esse tema Ay kakyri Tama (Eu moro na cidade).

10- Gostaria de acrescentar alguma sugestão ou indicação de leitura ou atividade para ser praticada no mês de abril (e no restante do ano também)?

Minha sugestão nesse mês de abril é: leiam escritores indígenas, escutem músicas indígenas, pesquisem povos indígenas e procure desconstruir em si esse olhar preconceituoso que se tem dos povos indígenas e principalmente dos que estão na cidade. Estamos no século 21. Não queria ver os povos buscando a imagem de 1500…O rio mudou e amanhã não será o mesmo haverá uma nova mudança decorrente do processo de terras caídas e do tempo, da cheia e da vazante, da chuva e do vento. A cultura é cíclica como o rio.

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