Entre samples e loops: o trabalho do beatmaker Lincoln Rossi

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Por Monyse Damasceno

Nascido nos bairros periféricos dos Estados Unidos, o Hip Hop continua a reunir expressões artísticas que representam, em tom poético, musical e político, a juventude e a vida no subúrbio das cidades. No fim da década de 70 o movimento passou a ser caracterizado por quatro elementos: o mestre de cerimônia (MC), aquele que domina o microfone e as rimas, o b.boying que utiliza o corpo como expressão artística, a arte do grafite que traduz visualmente a realidade urbana, e, por fim, o DJ que dá o ritmo à lírica do rap (de rhythm and poetry).

Ainda no âmbito de criação e produção musical, dentro do Hip Hop surge a figura do beatmaker, que é o responsável pela fabricação da parte instrumental da música. A profissão não é novidade, mas só com o avanço do acesso às tecnologias foi possível dinamizar e difundir essa atividade tão indispensável para a riqueza sonora do rap. Nesta entrevista conversei com Lincoln Rossi, que respira rap desde a adolescência, já foi MC e hoje faz batidas, como beatmaker no selo Correra Records.

Morando em São Carlos (São Paulo) e ao longo dos 20 anos imerso na cultura Hip Hop, Lincoln também produziu trabalhos importantes para a cena do rap brasileiro independente. Nesse caminho nada fácil, porém (às vezes) compensador, Lincoln tem sido destaque em uma competição de beats produzida nos Estados Unidos e por aqui é referência quando o assunto é boombap, um dos estilos dentro do rap. Ele fala sobre a profissão, visibilidade e como desenvolve seu processo de criação, que acrescenta ricas influências criando beats com uma identidade única. 

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Lincoln, hoje você é beatmaker, mas iniciou no rap como MC, como foi essa transição entre soltar rimas e passar a produzir beats ?

Comecei no rap sendo “freestyleiro”, fazendo apenas rimas de improviso com meus amigos na rua, depois, em alguns eventos de skate principalmente, parti para o microfone, foi nesse período em que comecei a escrever e gravar algumas coisas, bem precariamente. Em 2004 a maioria (profissionais e amadores) usava batidas gringas, pesquisava e baixava direto da internet a base de algum rapper famoso gringo, porque era realmente difícil encontrar quem fizesse batidas. E eu não queria usar batidas prontas, queria fazer as minhas próprias, mas não tinha o mínimo de condição técnica para isso.

Foi aí que conheci o Fruit Loops (programa de batidas) com um amigo, como eu não tinha computador em casa, instalamos no PC  de um outro amigo, e a partir daí comecei a gravar os meus primeiros raps em cima de batidas que eu mesmo fiz, que eram bem fracas, lógico. Era difícil ter acesso a tutoriais naquela época, tinha que rachar a cabeça. O Arthur Moura fazia uns vídeos desse tipo e colocava no Soulseek Brasil, um programa de compartilhamento de arquivos dos anos 2000, isso me ajudou muito. Usei o Fruit Loops por muito tempo, mas sempre quis ter uma MPC, e em 2018 comprei a minha.

Naquela época, início dos anos 2000, como era a cena de rap da sua cidade?

Meu movimento era o skate, ia para campeonatos, essas coisas, gostava muito de rap, mas ainda não ia à shows. Via muitos MCs fazendo improvisos nos campeonatos de skate e isso me influenciou, e também haviam as fitas VHS que a gente comprava, fitas de skate, mas que sempre tinham rap embalando as manobras.

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Em 2007, junto com o amigo Fernando, criamos uma dupla, o Duplamente, soltamos umas músicas na internet, a rede social do momento ainda era o Orkut, e a partir disso conhecemos todos os grupos da cidade.

A cena de São Carlos era, basicamente, gravar em instrumentais gringos e ir para Ribeirão Preto gravar as músicas. Mas aí quando a gente chegou gravando e fazendo as nossas próprias batidas, a galera meio que se surpreendeu, eles que estavam há mais tempo no corre não faziam isso, né? Comecei a produzir meus beats e passar para essa galera que estava fazendo rap, ainda não vendia, era o começo, tava aprendendo. Eu ouvia a música gravada em um beat gringo e se gostasse da letra convidava o MC para gravar em um beat meu, é mais ou menos o que eu faço hoje em dia.

Em 2017 lançou o seu EP “Retalhos de um Vida”, em que todas as faixas foram escritas, produzidas, gravadas, mixadas e masterizadas por você. Como foi organizar esse trabalho sendo o produtor também e o MC?

A ideia inicial era fazer tudo sozinho, totalmente produzido, escrito, gravado, mixado e masterizado por mim, sem participação nenhuma, esse era o desafio, mas no decorrer do trabalho tive ideias para algumas participações. Não tenho certeza se ser MC ajuda ou dificulta o processo, porque você fica muito mais crítico, e talvez por isso eu tenha demorado muito, comecei a escrever as primeiras letras em 2010 e terminei em 2017.

Para algumas músicas fiz três versões de batida, até chegar na batida ideal, não queria me arrepender desse disco, pois seria o único que lançaria. Pode ser que daqui a muito tempo eu faça outro, mas é um trabalho muito desgastante fazer tudo sozinho. O que vem no disco não é a melhor qualidade que já alcancei, se eu fizesse hoje sairia melhor, fiz com o que eu tinha em mãos, sou feliz com ele assim, mas hoje prefiro ficar só nas batidas e deixar que outros MCs completem o trabalho.

Atualmente você tem participado do The Producers Corner, uma batalha semanal de beats que é produzida nos EUA, e já acumula algumas vitórias por lá. Como aconteceu esse contato e qual tem sido seu processo de criação ao longo da competição?

Em 2018 comprei a MPC e quase não existiam vídeos tutoriais de brasileiros apresentando, foi quando, assistindo um vídeo, o cara, dos EUA, convidou para participar do The Producers Corner. Na competição, semanalmente uma música é disponibilizada e todos os beatmakers usam esse som para fazer sua batida. Para avaliar os melhores, o campeão da semana anterior escolhe suas cinco preferidas e o comitê organizador define a colocação de cada beat. Não tem muitos brasileiros participando, por lá eu sou o único que participa frequentemente, a maioria é dos EUA ou da Europa.

Até agora conquistei a vitória em três competições, em segunda e terceira colocação já fiquei algumas vezes, e é um desafio muito bom de participar, pois acabo lidando com músicas que fogem do meu gosto musical, e isso estimula muito a criatividade, e por ser semanalmente acaba incentivando a produção constante. O processo nem sempre resulta no beat esperado, começo a fazer e penso que vai tomar um caminho e acaba tomando outro. No fundo, gosto de todos os beats que eu consigo fazer, porque é muito interessante receber uma mostra escolhida por outra pessoa e conseguir desenvolver um beat com aquilo.

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Se liga no trabalho do Lincoln aqui.

Qual o espaço dos beatmakers dentro da indústria do música? Você acha que há o devido reconhecimento?

Acredito que os beatmakers estão tendo um bom reconhecimento sim, passaram a aparecer mais, já surge acompanhando o MC no videoclipe, no título da música, sem nome vem na capa dos discos. Dentro da indústria da música o beatmaker pode lançar vários tipos de trabalho, né? Pode lançar o seu disco solo instrumental ou em parceria com o MC, produzido completamente por ele, ou pode produzir músicas avulsas de vários MCs, o campo é vasto, vai da criatividade de cada um.

Quais beatmakers você dá destaque no BR?

Quem me influenciou muito no início foi o Munhoz, naquela época ele era um dos maiores do Brasil, gravava vários grupos de São Paulo que eu gostava muito e eram diferentes do rap que geralmente chegava no interior, como Facção Central, Racionais. O Munhoz produzia grupos da cena underground, como Elo da Corrente, Primeira Audição, Contrafluxo, Mamelo Soundsystem. O T-rex, que fazia parte do Universo Urbano, também me influenciou muito. Hoje gosto bastante dos beats do Nave, Skeeter Beats, Laudz, o Brasil não fica devendo em nada para os beatmakers norte-americanos, aqui temos um nível alto.

E os equipamentos e softwares disponíveis no mercado, como você vê o impacto deles nas produções recentes, inclusive nas suas produções?

Entre 2004 e 2017 usei o fruitloops, fui da versão cinco a doze, em 2018 comprei uma MPC e uso com o software mais recente da Akai, que ainda está sendo desenvolvido. Sempre foi o meu sonho trabalhar com uma MPC, os grandes beatmakers do mundo sempre usaram, como o DJ Premier, J Dilla, Pete Rock, estou usando e gostando bastante.

Como o software ainda está atualizando, a maioria dos recursos também estão se atualizando, e os beatmakers que se destacam nesse processo são os que buscam inovar, buscar timbres diferentes, uma equalização melhor, mais suja, com característica própria.

Gosto de fazer meus beats sempre com a intenção de causar um impacto, então, começa mais suave e vem trazendo um suspense, e aí chega com um grave pesado, o bumbo com aquela caixa ardida, isso é um som de rap anos 1990, com gingado e swing.

Processos criativos em andamento

Sobre o seu processo de criação: qual o seu estilo dentro da cena? Como você se aventura e desenvolve as ideias para os beats que produz?

O meu estilo de beats é o boombap, o mais clássico. Ele basicamente é criado com sample, bumbo, caixa, chimbal e baixo; gosto sempre do bumbo e da caixa bem fortes, e uma linha de baixo acompanhando o sample. Nesse processo, me aventuro buscando samples e tentando transformar eles o máximo possível.

Vejo que hoje em dia muita gente já tem uma fórmula para fazer a batida, um instrumental limpo de uma música e põe a batida em cima. Eu costumo pegar um sample com vocal e recortar em vários pedaços, agrupando aquilo para formar um looping. O resultado fica diferenciado, quem vai ouvir pode reconhecer o sample, e saber que aquilo foi recortado de uma forma complexa, ou tem gente que vai ouvir e nem vai saber de onde o sample foi retirado. 

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Nos seus trabalhos lançados têm samples de Clara Nunes, Clube da Esquina, Célia, The Stylistics, Sade. O que é o sample e como você escolhe o que samplear?

O sample é uma música em que o beatmaker pega as partes dela e transforma em outra. Você também pode usar a música pura e adicionar elementos por cima ou descaracterizá-la, que é o que eu gosto de fazer. Recorto todas as notas, altero de ordem, altero o tom dessas notas, e crio outro looping que soe harmonicamente com as notas já existentes em uma outra música. Não tenho muito critério para escolhas, o que ouço por aí e vejo que é possível, eu tento, às vezes consigo às vezes não. Têm MC’s que me enviam alguns samples para eu fazer algo a partir daquilo, ultimamente tenho usado bastante os samples que entram no desafio The Producers Corners, principalmente para sair da minha zona de conforto.

Você já lançou muitos singles e alguns EPs. Como é produzir um disco inteiro? Quais os seus processos de criação ao longo deste trabalho e quais resultados você dá destaque dentro da sua carreira?

Produzir um disco inteiro é coisa que mais gosto de fazer, pois consigo deixar um trabalho homogêneo do início ao fim, muito mais coeso. Quantos mais processos eu participar, mais legal acho. Trabalhos meus que dou destaque são os últimos que tenho lançado, quanto mais você vai fazendo, mais vai havendo um aprimoramento, a qualidade aumenta. “Entre o Silêncio e a Resistência”, do Mano Alex, já é um trabalho feito com equipamentos mais avançados, com muito mais aprendizado. Os EPs do Gon Salves e do Chacal, por exemplo, acho que são o meu auge sonoro. Ego, do Chacal, é um dos melhores que fiz até hoje.  

Os último EP produzido foi o “Impermanência”, da Emana, tem algum trabalho que sairá em breve?

Está previsto para esse ano o quinto EP colaborativo, em que convido MCs para rimar nos meus instrumentais, e dessa vez a parceria é com o Xandão Cruz, que tem uma longa caminhada no rap. Ele é natural de Rio Claro, mas atualmente mora em SP, acumula importantíssimas colaborações, como com o Enganjaduz, Família 7 Velas, B Terror Crew, fez parte do grupo Afro Rude e, por um tempo, assinou como Medrado, lançando alguns discos com esse nome.

O álbum que vai ser lançado se chama “Pressa pra Chegar”, participo fazendo as batidas, mixagem e masterização, e em breve estará disponível em todas as plataformas, por enquanto é possível acessar Lincoln Rossi e conferir os meus trabalhos anteriores. 

Créditos das imagens: Arquivo pessoal Lincoln Rossi.

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