Floriano Martins e o maravilhoso tumulto de sua vida

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Foto por Maya Cauchi

É quase impossível fazer tanto com recursos limitados. O que é ilimitado é a tua credibilidade. É simplesmente espantoso.
Jacob Klintowitz

Abrimos o calendário de 2023 prestando uma homenagem, mais do que merecida, a um querido cúmplice, o poeta, ensaísta, tradutor, fotógrafo, dramaturgo, editor, Floriano Martins, que há alguns anos assina em nossa revista a curadoria do Atlas Lírico da América Hispânica. Floriano é o criador e diretor da Agulha Revista de Cultura, assim como do selo editorial ARC Edições. Com um vastíssimo currículo, esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Equador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Foi curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009), Concurso Nacional de Poesia (Venezuela, 2010) e Prêmio Anual da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil, 2015). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, Estados Unidos, 2010). Tradutor de livros de César Moro, Federico García Lorca, Guillermo Cabrera Infante, Vicente Huidobro, Hans Arp, Alfonso Peña, Juan Calzadilla, Enrique Molina, Jorge Luis Borges, Aldo Pellegrini e Pablo Antonio Cuadra. Entre seus livros mais recentes se destacam Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad (ensaio, México, 2015), Um novo continente – Poesia e surrealismo na América (ensaio, Brasil, 2016), O iluminismo é uma baleia (teatro, Brasil, em parceria com Zuca Sardan, 2016), Antes que a árvore se feche (poesia completa, Brasil, 2020), 120 noites de Eros – Mulheres surrealistas (ensaio, Brasil, 2020), Naufrágios do tempo (novela, com Berta Lucía Estrada, 2020), e El frutero de los sueños (poesía, 2023, Estados Unidos). Para dar maior amplitude a esta homenagem resolvemos convidar algumas pessoas que vêm, diretamente ou indiretamente, trabalhando com o Floriano ao longo dos anos. Gladys Mendía (Venezuela) é sua editora, no ano passado editou Las mujeres desaparecidas e agora este ano editará 120 noches de Eros. Berta Lucía Estrada tem escrito algumas peças de teatro a quatro mãos com o poeta brasileiro. Leontino Filho (Brasil) escreveu posfácios e textos para orelhas de livros de Floriano Martins. Os bolivianos Gabriel Chávez Casazola, Maria Bedrow e Valeria Sandi recepcionaram o poeta na Feira Internacional do Livro desse país sul-americano, onde ele este como convidado de honra. E por último o nome que passa a ser um gratificante imperativo, o de Elys Regina Zils, tradutora, em parceria com Floriano Martins, de sua trilogia do Surrealismo, livros que deverão ser publicados este ano. Elys, também ela poeta e artista plástica, acaba de assumir com nosso homenageado a editora da Agulha Revista de Cultura e, segundo ele, caberá a ela, em um futuro próximo, ser a editora única da revista. Vamos então à nossa roda de conversa. Ao final incluiremos um poema inédito escrito há poucos dias. [Demetrios Galvão]:

GLADYS MENDÍA | Floriano, você é um editor preocupado com a divulgação dos autores hispano-americanos e realiza vários projetos que demonstram esse trabalho de extrema importância. Em seu trabalho com o Conexão Hispânica, você tem percebido uma falta de atenção da crítica literária para com a literatura mais recente, ou seja, de autores vivos.

FM | Não creio que se trate de uma falta de atenção à literatura mais recente, e sim uma essencial e preocupante falta de atenção. É como se a crítica literária, que aos poucos foi se convertendo em uma crônica de eventos tivesse perdido sua razão de ser. Isto é muito determinante de uma leitura quando menos incompleta do que se está registrando em termos de criação e produção. Os autores que vão surgindo são vistos como uma conexão direta com a veleidade do sistema cultural. Mesmo os autores mortos, de grande expressão estética, são deixados para trás. É uma espécie de sepultamento orquestrado do que seria a resposta da arte ao nosso tempo.

GLADYS MENDÍA | Se a resposta for sim, a que você acha que isso se deve?

FM | A palavra que melhor define essa ação que não deixa de ser terrorista se chama mercado. O sistema de retroalimentação sem o qual o mercado não pode funcionar foi gerando uma negação de toda forma de afirmação de uma identidade que estivesse na contramão dos conceitos previstos para funcionamento desse mercado.

BERTA LUCÍA ESTRADA | Eu sei que você é versátil. No entanto, é necessária uma disciplina quase militar e uma organização à prova de desastres para poder realizar todos os projetos de longo prazo que você se impõe e nos quais nos convida a participar. Pergunto-lhe então: Como consegue conciliar o seu comportamento compulsivo com a criação literária, com o rigor da publicação periódica da Agulha Revista de Cultura e com o trabalho de seleção de poemas e tradução para a revista Acrobata? E como se não bastasse todo esse trabalho titânico, você também encontra tempo para a sua criação como artista plástico, como cinéfilo com a neta e com os afazeres domésticos – incluindo cuidar de netos pequenos. E a isso se acrescenta que você vive esperando o convite de escritores e artistas, e você também tem tempo para nos lembrar que estamos atrasados ​​nos compromissos que assumimos com você. Fale-nos um pouco desse louco Floriano que é capaz de pular no vazio trinta vezes por dia e voltar do abismo como se nada tivesse acontecido. Dir-se-ia que os deuses que habitam o nada temem-te e por isso permitem-te escalar novamente as falésias inacessíveis a todos os outros, como se você fosse um novo Sísifo – só para você não é uma condenação, mas uma paixão.

FM | Talvez poderia ser essa explicação que dás, de uma paixão de Sísifo. A verdade é que não encontro tempo para me explicar (risos). Nem creio que valha a pena. Não me sinto condenado a nada, tampouco mestre em qualquer arte de iludir o tempo. Louco? Mas isso não tem significado fora de um plano simbólico. Como eu não carrego nenhuma trouxa na ponta de um bastão, aliás, nem bastão eu uso, creio que não sou o louco convencional do hermetismo. Mesmo os números que o tarô destina ao Louco não são os que me atraem. Definitivamente não sou louco, nem mesmo a sua correspondência com aquele que tinha tudo e perdeu. Há muitas coisas concretas para as quais eu não devoto tempo. A minha mulher sempre reclama disto. Eu não me considero fora dos limites da razão, mas sim alguém que a vive em sua extensão mais intensa. Consigo me disciplinar para atividades múltiplas a um só tempo e sinto a minha ausência se por acaso tenho que cuidar de apenas uma coisa a cada momento.

GABRIEL CHÁVEZ CASAZOLA | Meu país, a Bolívia, tem uma extensa fronteira com o Brasil, mas ao invés dessa proximidade ser uma ocasião de encontro e convergência, parece que vivemos ao contrário, também em questões artísticas, literárias e poéticas. Pensando bem, parece que isso aconteceu entre o Brasil e todos os países de língua espanhola da América Latina. Você concorda ou discorda dessa percepção? E, se sua resposta for afirmativa, o que você acha que causa essa situação e como poderia ser redirecionada?

FM | Todos os países americanos são desconectados entre si. Talvez seja uma maldição do continente. Esta é a definição de nossa existência de meio milênio. Quando olhamos o monstro que se chama Europa talvez pensemos que nos fez imensa falta a concepção paralela de uma União Americana. A verdade é que sempre fomos postos no tablado de uma estratégica global como uma das regiões mais férteis em minerais e que não pode jamais ter essa consciência e se unir em torno dela. De qualquer modo, eu desconfio que o dilema maior seja interior, de ausência de autoestima, que leve cada país a ousar e se afirmar como tal perante o continente. A rigor, mais do que alheios entre si, nossos países são alheios, cada um, a si mesmo.

GABRIEL CHÁVEZ CASAZOLA | Em relação à minha pergunta anterior, devo dizer que você é um dos poucos articuladores – se não o único – que conecta a poesia do Brasil com a da América Latina Hispânica. Quando e como começou seu interesse pela poesia que se escreve em nossos países? Qual foi a sua primeira iniciativa nesse sentido, das muitas que desenvolveu nestes anos? Como foi recebido? Alguma coisa mudou nessa recepção em comparação com seus projetos mais recentes?

FM | Não creio que eu tenha alterado a rota de desinteresse pela cultura hispano-americana no Brasil. Bem lá atrás eu dizia que o Borges que chega no Brasil não é mais o argentino, e sim aquele que foi internacionalizado pelo mercado. Até hoje o princípio é o mesmo e vale para qualquer expressão artística. Teu caudal de indagação, eu vou responder assim mesmo, como um jorro: meu interesse começou quando um amigo me deu um volume com a obra completa de César Vallejo, Américo Ferrari assinava o prólogo e ali mencionava outros poetas que eu desconhecia por completo. A primeira iniciativa foi a de ler, mais e mais, e em seguida traduzir alguns poetas. No Brasil a gente nunca sabe como as coisas são recebidas. E não, não mudou nada, talvez até tenha piorado, porque permanece inserida em um contexto de nulificação intencional, para os brasileiros, tudo aquilo que a arte aponta na América Hispânica.

GABRIEL CHÁVEZ CASAZOLA | Se você tivesse que escolher um poema entre todos os que já traduziu do espanhol para o português, qual seria?

FM | Para uma pergunta impossível uma resposta à altura. Diria que um poema que fosse a soma das imagens de infinitos poemas que traduzi e que me despertaram a atenção mais íntima.

VALERIA SANDI | Sorte ou acaso, você aprendeu sobre o surrealismo entre os 13 e 14 anos, com seu tio-avô que era poeta. Quais foram os poetas do primeiro pilar do surrealismo que você descobriu, sabemos que até agora você tem um terceiro volume da trilogia sobre o surrealismo, em que ano foi publicado o primeiro e o que este estudo incluiu?

FM | Ah o meu tio, ele não me falou de Surrealismo, porém me deu um livro, O surrealismo, de Yves Duplessis. Um livrinho publicado no Brasil e que em 1963 já estava em sua 2ª edição, embora logo em seguida tenha caído em um completa esquecimento. Algum interesse o Surrealismo devia ter entre nós. Perdi este livro. Comprei novo exemplar anos depois em um sebo. Havia um trecho em que se defendia que o exercício do cadáver delicioso permitia separar-se de sua personalidade, para deixar que o automatismo se revele. Isto me pareceu estranho, porque o surrealismo para mim era visto como uma afirmação da personalidade, em sua mais entranhável complexidade, e não como uma cessão da mesma em prol de outra descoberta. Bom, meus primeiros poetas surrealistas, a leitura que me acompanhava a adolescência: Paul Éluard, Murilo Mendes, García Lorca. A minha trilogia do surrealismo teve início com a publicação de Um novo Continente – Poesia e Surrealismo na América, em 2016. Como o próprio título revela, trata de um atlas da presença do surrealismo no continente americano, em especial aquela presença interna, no sentido de uma descoberta do movimento e do modo como ele teve acolhida, repercussão e desdobramento em nossos países. É um livro genuíno em sua proposta de percepção territorial, por abranger todo o continente, e até hoje é uma espécie de estrela solitária em uma constelação que de algum modo se esforça para não se tornar invisível. Posteriormente eu pensei que seria o momento crítico de tratar de um dos maiores dilemas do Surrealismo, a misoginia, e a partir desse entendimento publiquei 120 noites de eros – Mulheres surrealistas, em 2020, uma série de retratos sobre a presença percebida ou não das mulheres no Surrealismo.

VALERIA SANDI | A Agulha Revista de Cultura é um projeto que você criou há 21 anos, sabemos que tem circulação na internet e se dedica à divulgação de estudos críticos sobre arte e cultura. Nesse processo, quais são os maiores obstáculos e pontos fortes que você teve ao longo dos anos?

FM | Nunca fui de levar em consideração os obstáculos. Muitos deles são naturais a qualquer projeto. Creio que o que importa é como nos livramos das dificuldades, desde que essa conquista não seja transformada em carta de genialidade. Afinal, somos todos – ou deveríamos ser – uns herdeiros de D. Quixote, que aos poucos vamos aprendendo a lidar com os moinhos, visíveis ou não.

VALERIA SANDI | Você coordena o renomado Atlas Lírico da América Hispânica na revista Acrobata, que é um projeto que abrange 19 países, cuja curadoria e traduções para o português que você realizou abrangem até agora mais de uma centena de autores. Você afirmou que a coisa mais irresponsável que pode ser encontrada na tradução é quando o tradutor tenta intencionalmente melhorar o texto original. A habilidade na arte de traduzir apresenta desafios constantes. O que tem sido mais gratificante para Floriano Martins?

FM | Desde o momento que apresentei o projeto a Demetrios Galvão, um dos diretores de Acrobata, a ideia era atualizar um projeto que se perdeu com o tempo, a Banda Hispânica. Na ocasião, o que reproduzíamos não era algo preparado especificamente para nossa veiculação. Os tempos mudaram (por vezes, algo neles se modifica). O Atlas Lírico deveria cuidar unicamente dos poemas, e todos traduzidos ao português. A América Hispânica deveria entrar em nossas veias como sangue de nosso idioma. Já estamos trabalhando nisto há dois anos. Em 2023 teremos uma nova safra. Nos últimos meses tenho contado com a ajuda de uma outra tradutora, Elys Regina Zils. Com ela posso avançar mais na frequência de apresentação de mais e mais poetas. O projeto não tem fim, é um moto perpetuo. Ah isso de traduzir, sim, há momentos em que o exercício da tradução foi revelado como irresponsável cooptação estilística, o interesse em apropriar-se de certas características do múltiplo período das vanguardas para atender a alguma delimitação escolástica. Gratificante para um tradutor é o desafio, não de alterar o original, mas de descobrir-se nele.

ELYS REGINA ZILS | Continuando na mesma área destacada de sua obra, a tradução, é importante lembrar autores como Aldo Pellegrini, Hans Arp, Vicente Huidobro, Pablo Antonio Cuadra, Alfonso Peña, Enrique Molina, entre outros. Gostaria de saber um pouco sobre o seu processo de tradução. Quais são os desafios e as alegrias? Muito se tem discutido sobre a exigência de que o tradutor de poesia seja também poeta. Octavio Paz afirmou que em teoria sim, só os poetas deveriam traduzir poesia, mas nem sempre são bons tradutores. E conclui que um bom tradutor de poesia é um tradutor que também é um bom poeta ou um poeta que também é um bom tradutor. Qual é a sua opinião?

FM | O tradutor se aproxima de textos e autores por vezes por um acerto contratual. Foi o meu caso quando me pediram para traduzir García Lorca e Cabrera Infante. Como as duas traduções foram feitas paralelamente, essa mecânica de mergulhar no mesmo idioma em busca de dois autores que lidavam com ele de maneira quase oposta, foi um desafio tremendo. A simplicidade da linguagem em Lorca era tão enganosa quanto os ardis preparados por Cabrera. Lembro algo anterior, o dia em que nos propusemos, eu e o já falecido poeta Francisco Carvalho, traduzir Altazor de Vicente Huidobro. Não havia intenção alguma de publicar o livro e sim de adentrar o mais possível no universo poético do magistral chileno e, certamente, de tornar-se um pouco mais íntimo do idioma. Foi uma experiência muito valiosa. Evidente que ter em si a essência poética nos dá uma espécie de senha para adentrar os mistérios de cada poética. No entanto, a frase de Paz traz consigo certa presunção, pois quem garante a um poeta, qualquer um, que ele é um bom poeta? Ele mesmo? A frase se torna uma tolice.

LEONTINO FILHO | Marina Tsvetáena, em seu livro O poeta e o tempo, assevera: Nem para milhões nem para uma única pessoa nem para mim mesma. Escrevo para a própria obra. Ela escreve a si própria através de mim. Para chegar aos outros ou a mim. Como você reage a estas palavras? Para quem escreve Floriano Martins?

FM | Ah eu escrevo para um lugar sutil de existência no mundo. Não adianta crer na influência como uma fonte de evolução, porque será sempre o receptor quem definirá o que cabe ou não em sua cuia de mistérios e revelações. Assim é com as razões da escrita. De modo que simplesmente não faço a menor ideia de por que ou para quem escrevo.

LEONTINO FILHO | Você é um enorme e intenso dialogador. Em Escritura conquistada, vasta e exuberante reunião de diálogos com poetas latino-americanos, há uma indagação feita por você ao poeta nicaraguense Pablo Antonio Cuadra, que reproduzo aqui: Acredita, como Octavio Paz, que a história, a realidade social de uma época, é uma projeção de sua arte e sua literatura? Sua visão está afinada com a de Paz ou vai em outra direção?

FM | Acho que todos somos levados a crer na impossibilidade dessa afirmação de Octavio Paz. Na verdade, essa compreensão do mundo foi muito veloz e deprimentemente deixada para trás. O homem, naquele sentido da fração de ouro da identidade, já não influi em nada em um mundo completamente deformado pela customização até mesmo dos sonhos. Mas curiosamente podemos olhar com mais atenção a frase de Paz e ver que sim, somos um resíduo em pleno definhar de uma história que nos é revelada a todo momento pela conivência da pior arte e literatura. De qualquer modo, não é uma equação incontestável e mesmo de tão simples resolução. Não são poucas as vezes, em todas as épocas, que a criação artística toma um curso distinto da realidade social. Tanto é certo que aqui estamos nós.

LEONTINO FILHO | Que tal nos apresentar uma brevíssima incursão no universo do dicionário nos moldes do Mário-Henrique Leiria, que nos legou o Dicionário modesto para famílias de poucos haveres. Penso e gostaria, se possível, que você reescrevesse alguns verbetes que constam do texto do Mário-Henrique Leiria, mais especificamente os que seguem: Animal, Estudo, Opinião, Político, Revolução e Universo.  [Dito de outro modo: como você escreveria os verbetes Animal, Estudo, Opinião, Político, Revolução e Universo? [Os verbetes podem estar acompanhados por variantes.]

FM | Se me permites, vou comentar um livro que estamos escrevendo, Susana Wald e eu, que se estrutura na forma de um dicionário de termos que correspondem a uma visão mágica de como eles operam em nossas vidas. Certamente que, observando o que os dicionários costumam apontar como significados do adjetivo modesto, este nosso livro nada tem de discreto, humilde, recatado, simples, despretensioso, moderado, pobre, decente, pudico, decoroso, ingênuo ou pejoso.

LEONTINO FILHO | Retomo, uma vez mais, para seguir nesta Roda de Conversa, o fio mágico dos seus diálogos. Desta feita, a indagação foi dirigida ao poeta Eugenio Montejo, presente na poesía completa do venezuelano, La Terredad de todo: A explicação de uma obra deve ser buscada em quem a produziu ou você não acredita que seja possível uma analogia convergente entre autor e obra? A escrita, tendo seu verdadeiro lugar na leitura, só se definiria, então, pela supressão da figura do autor? Repasso-lhe a pergunta para saber a sua resposta.

FM | A figura do autor não pode ser suprimida. O que pode haver é que a compreensão de uma obra, mais especificamente de uma passagem dessa obra, seja identificada de tal modo com a realidade que não seja mais relevante ficar a determinar uma autoria para essa correspondência. O autor não deixa de existir, mas sabe, talvez deveria saber, de antemão, que seu escrito, sua luminosidade na percepção de algo, é parte do mundo e deve a ele regressar.

ELYS REGINA ZILS | Em diferentes obras suas, você escreve a partir de um ponto de vista feminino. E contra quem possa acreditar que há diferença na escrita entre os gêneros, você alcança uma voz que parece sair das entranhas de suas personagens femininas, tão real que consegue denunciar a sociedade patriarcal em que vivemos e revelar profundas questões do universo feminino. Dito isso, você poderia nos contar sobre sua inspiração para essas criações? Como é a sua relação com essas vozes femininas?

FM | Não há a menor dúvida de que eu seja uma mulher. Claro que também posso, se for o caso, ser homem. Este é o tipo de personificação que ninguém se preocupa quando está diante do romance, do teatro ou do roteiro cinematográfico. Em geral é plenamente possível escrever para todos os gêneros, mesmo agora que eles proliferam de maneira obcecada, incontável, beirando o espetáculo. Eu recebo as vozes femininas como parte de minha observação do mundo e parte de meu sentido de entrega. Quando ainda menino eu achava um encanto ler diálogos em que pessoas de natureza tão distintas entre si eram criação de um mesmo autor. Eu precisava descobrir aquele mistério, deixar os personagens surgir e falar em mim. E naturalmente vieram as mulheres, muitas delas, quase que me tomaram por completo. Hoje há muito descuido com a linguagem, com as características particulares de personagens, por exemplo, nessa proliferação de séries para televisão onde podemos encontrar um determinado ponto de vista, uma dedução, até mesmo uma frase, fazendo parte do universo de personagens tão distintos entre si.

ELYS REGINA ZILS | O catálogo de suas produções é realmente impressionante, pela enorme quantidade e qualidade. E analisando essas obras, o surrealismo é uma constante tanto na sua escrita quanto na escrita de terceiros que você nos oferece. Destaco o pioneirismo do livro Um Novo Continente – Poesia e Surrealismo na América. Além disso, fez parte do grupo surrealista São Paulo/Fortaleza, na década de 1990. Então, o que significa surrealismo para você?

FM | O que ninguém sabe (que eu duvido) ou ninguém comenta é que este livro é verdadeiramente pioneiro. Mas quem vai deixar de realizar coisas pensando em reconhecimento! A constante em torno do Surrealismo é, de minha parte, uma visão de que o movimento foi, malgrado suas inúmeras falhas, o que o torna ainda mais fascinante, o instante de luz mais radiante de todo um século, um século que tendia a ser destruído pelas guerras, um século que quase foi deformado pela mais diabólica de todas as duplas, o mercado e a propaganda, enfim, o surrealismo encontrou um caminho que se multiplicou em infinitas trilhas, como um rio que não parasse de gerar afluentes, e foi de algum modo desnorteando as planificações de sociedades excludentes, ao menos no campo das artes. Claro que hoje temos que perceber a fatura estética como algo dominado pelas leis implacáveis do capitalismo. Não há muito como fugir disto. Abrimos o freezer para tomar uma cerveja gelada e seguimos questionando o capitalismo. Somos todos incongruentes. O excesso transbordante de incongruência no surrealismo se deu justamente nos campos da política e dos costumes. Lugares que o corpo do maravilhoso não encontrou em si mesmo. Acho que é fundamental, no entanto, as ramificações do movimento em épocas e culturas distintas. Ninguém imagina que algum outro movimento possa ter alcançado um espectro tão agigantado de países como o surrealismo. O que há de errado com ele? Talvez a pergunta esteja deslocada. O que faz com que ele desperte atenção em países tão distintos entre si e que até hoje permaneça em curiosa atualização? Para mim? A descoberta de que há um mundo de qualidade superior que pode ser descoberto em nosso íntimo. Não importa que estejamos cercados de um sistema violento de futilidades, o surrealismo é a porta secreta que pode nos levar a um mundo de sutis reverdecimentos da alma humana. Não é suficiente, mas o mundo não começa pronto.

ELYS REGINA ZILS | Entre suas produções estão diversos trabalhos colaborativos, ou seja, escritos a quatro mãos, como com Anna Apolinário, Zuca Sardan, Viviane de Santana Paulo, Berta Lucía Estrada. Como é esse processo?

FM | Nasceu de uma maneira absolutamente espontânea em uma troca de e-mails com a Viviane de Santana Paulo, poeta brasileira há muito residente na Alemanha. Pela ordem, depois dela vieram o Zuca, a Berta e a Anna. Também agora tenho escrito com a Susana Wald, artista húngara de nascimento que há muito vive no México. Mas seria preciso falar de cada um desses encontros mágicos. Em essência, o que se poderia dizer é que o ego precisa ser vencido sob muitos aspectos. No mundo lírico o ego é soberano. Neste sentido, seria possível falar em uma imensa conquista no caso de uma escritura a quatro mãos com a Viviane e a Anna, porque não saímos do mundo lírico. Quando conheci o Zuca entrou em campo um fino sentido irônico, percorrendo as veias eletrificadas da sátira, que ele adora chamar de nossa veia patafísica. Com a Berta, nos deparamos com um desafio que somente a metafísica poderia, não digo vencer, mas criar um ambiente próprio para a poética comum que descobrimos. Saltamos bem longe do mundo lírico, Zuca, Berta e eu, e fomos nos encontrar no teatro, naquele jorro de vozes, de personagens, que a nossa múltipla visão de mundo exigia. É curioso que eu não conheça pessoalmente nenhum deles. Criar é abrir-se ao mundo. Somos seduzidos pelo abismo a todo instante e respondemos apenas com o ego. É preciso ir além. É preciso responder com todo um tablado de vozes. É preciso ser uma Legião. Com a Susana Wald é algo distinto, primeiro porque nos conhecemos pessoalmente, além do que o que estamos fazendo – o livro ainda está em curso – é dar a palavras eleitas por ambos uma vida distinta daquela que nos informa o dicionário e o cotidiano.

MARIANA BREDOW | Você disse que, quando se trata de escrever poesia, se sente mais um dramaturgo do que um poeta. Que aspectos da dramaturgia e da teatralidade você reconhece em sua escrita e como esses aspectos foram incorporados à sua prática?

FM | Desde criança, na biblioteca de meu pai, era possível encontrar livros de teatro, como o teatro inglês e suas tragédias. A ideia de um transbordo de ideias, palco de conflitos entre o ser e seu estar no mundo, tudo isso que ia além do universo lírico, até porque na época eu lia mais narrativa do que poesia, foi criando a necessidade de descobrir no meu íntimo outras vozes que saltassem além da realidade aceitável. Com o tempo, o teatro se tornou uma parte física da minha vida, na juventude, trabalhando com grupos de teatro, além de dar atenção a histórias em quadrinhos e roteiros de ópera. Assim meu poema aos poucos começa a exigir coisas como o diálogo e a ambientação cênica. De repente, um presente do acaso, a amizade com queridos que, embora fossem do meio poético, aceitaram meu convite para experiências, ao mesmo tempo, de escrita teatral, o fato é que todo esse novo organismo foi definindo uma poética mais voltada para a teatralidade. Tenho que me referir aqui aos dois mais importantes, no âmbito teatral, Zuca Sardan e Berta Lucía Estrada, com quem escrevi várias peças.

MARIANA BREDOW | Você traduziu um número enorme de poetas, sendo você mesmo um poeta extremamente criativo. Como você se relaciona com a tradução? É uma forma de arte para você? Ou seja, para traduzir a essência de um poema e torná-lo inteligível para o seu tempo e para a sua cultura, você sente que, ao traduzir, você cria, como quem executa variações musicais sobre o tema de outra pessoa? Ou prefere buscar fidelidade exata e literalidade objetiva na transferência de cada palavra? Você acha isso possível?

FM | Não, a tradução não funciona assim. Claro que estamos falando de tradução literária, prosa ou poesia. Quando pensamos na versão de um tema musical, às vezes podemos mudar um pouco a ordem do que o original diz, mesmo que parcialmente o significado, já que estamos lidando com uma exigência melódica incondicional e o orçamento de uma versão, uma espécie de variação do roteiro original. Já no poema, por exemplo, o tradutor pode escolher o sentido além da forma, pois o poema busca antes de tudo uma comunicação. O lance da tradução é que ela é uma deusa sedutora que leva o tradutor a um ponto divino. Às vezes, a tradução de um poema, por exemplo, revela mais sobre o caráter de seu tradutor do que a realidade poética do próprio poema.

MARIANA BREDOW | Tendo realizado um trabalho imenso e apaixonante, sendo incansável em sua obra literária em geral (como poeta, escritor, dramaturgo, tradutor, editor, estudioso etc.), como você percebe o papel que desempenha na literatura de seu país e o mundo? Você poderia fazer uma descrição intuitiva da sua contribuição? (aquela que você sente que alcançou até agora) E você poderia descrever a que gostaria de alcançar em toda a sua vida?

FM | Isso tudo me parece uma armadilha. Primeiro, porque sempre haverá pelo menos uma pequena lacuna entre o que imaginamos que somos e a forma como somos percebidos. Então você tem que pensar sobre a presunção, essa tentação de se sentir maior do que seu próprio reflexo no espelho. Há abstrações imensas aqui, como meu país e o mundo. Não reconheço essas dimensões ilusórias. Além disso, não sonho com o que você chama de uma vida inteira. A vida de cada um, se é um todo, é um amontoado de dispersões, de coisas fora do lugar, de ilusões, frustrações, o que mais? Então não, Mariana, não me sinto parte da sua pergunta. Estou muito longe do que se espera de mim.

UNO O DOS PUNTOS: EL CENTRO DEL DIÁLOGO

Não voltaremos ao lar escorados na madeira podre da memória.
O espaço não se julga tão intenso quanto o idealizamos.
As palavras entram e saem no abandono dos ventos, com a letra mal tecida nos tapetes da existência.
Talvez haja um lugar propício para o osso que os cães não tiveram tempo de enterrar.
Como a renda fria de uma autópsia improvisada.
E o ar que respiramos como uma palavra gasta.
Acabamos por acreditar que os encontros são impossíveis e o estado putrescível da humanidade é a solidão.
As lavas desassossegadas aboliram o tempo.
O universo jamais curou seu refluxo.
Somos uma página estampada na agonia oculta do olhar.
O que vemos quase sempre é a sombra precária de um desejo.
A semelhança desmedida do acaso.
Como fazer para que as forças que marcam a nossa vida se recuperem de suas enxovalhadas transgressões?
O avesso inumerável de todas as noções espatifadas do espaço.
Quantas noites desacreditas?
Quantas luzes propagadas no celeiro abandonado da escuridão?
As luzes que foram dopadas com a marca do destino.
Aquela desterrada volúpia que jamais encontrou um lar.
A beleza que se dissipa no olho cristalino de seu milagre.
Quantas vezes a noite é apenas uma pedra renascida sobre o cansaço dos voos.
Quantas frutinhas fixas como um redemoinho atormentam nosso desejo de sumir no céu.
A imagem a que corresponde o silêncio não sabe como tocar o que somos.
Talvez porque uma língua ressoe dentro de nós antes mesmo do nascimento das palavras.
Como quem beijo o dorso desses rumores que confundem deriva com exílio.
Onde morar o limite da visão?
O cristal desnudo de sua paisagem, onde o podemos devorar?
Quando a imagem se configura como uma poça de vertigens, como sobreviver à realidade que em seu íntimo não foi possível encontrar?
Não retornaremos nunca a exigência alguma do tempo.
Como a imagem dissipada de uma distância que foi perdendo o equilíbrio de suas árvores desenhadas no cosmos.
Era assim mesmo.
Para haver perguntas que desconheciam a natureza das respostas.
Uma floresta de antônimos se desconhece sempre que redigimos algum murmúrio.
A ausência é um vestígio que não se pode identificar.
O olho no espaço se enche de lamparinas como uma espécie de animal oriundo de outra galáxia.
Há um cardume distorcido de signos voadores que não deixam uma sombra sequer por onde passam.
Pode parecer estranho que não saibamos de onde viemos, mas a escuridão se cala sempre que pressente um risco de luz em seu corpo.
A tormenta do infinito por não passar de um momento raramente inesquecível.
Os vultos esgarçados com a cabeça saltada longe vigiando os faróis de mundos paralelos.
Deuses ínfimos que não sabem se distinguir entre si ou que fugacidade assumir.
Um dia será possível que esses deuses se convertam em galhos secos para ninhos onde se possa respirar o oxigênio embalado pelo renascimento.
Deuses de papiros cintilantes.
Deuses de areias sacrificiais.
Deuses de escrituras impulsionadas pelos garranchos-vislumbres da premonição.
Sem um de nós o mundo segue em sua debilidade memorável.
Não somos nada, e a realidade brinca com o pensamento até que este se sinta real.
Somos a mácula da resposta que desconhece a ronda obscura do esmalte de suas redomas.
Quem pergunta?
Haverá um desejo imaculado que supera nossa desistência de esvaziar a palavra?
Talvez um de nós, pelo menos, tenha chegado até aqui para não dizer nada.
Não sonhar como as tormentas são diferentes.
Não deixar o bosque de incensos alcançar a cidade e propagar ali uma nova penumbre.
Um véu relutante colado à parede.
Um olhar antecipando o arvoredo que encobre a paisagem com a gula de sua existência.
Um de nós talvez tenha dito a tempo que o verbo é um silêncio além do olhar.
Mas que susto encontramos no presente que impeça ser traduzido fora do tempo?
A revelação como um torvelinho que não faz sentido fora do exato instante em que nasce.
Quem deveria ser o centro do diálogo?
Haverá mesmo um modo de conversar com a origem de cada átimo do mistério?
Nunca saberemos o quanto a alma é um uma névoa fora de lugar.
A cor da palavra exata.
O rio da sombra esvoaçante.
O peso da planície que sobrevoa nossa inquietude.
Como sabemos a noite certa para que o dia não desperte?
O som de uma palavra faz a água morrer no lago?
A lenda não cumprida abre uma fenda na crença de novos mistérios?
Um de nós deve se matar antes que a água retorne a seu esquecimento.
Uma água fora do lago, do mar, da lágrima tão distante de inundar o horizonte.
Cada um de nós deseja um deus posto na varanda.
A celebração de uma falha na primeira gota do orvalho.
O borrão de desastres, o nanquim de estados remotos, o alcance de nada.
As noites vão surrupiando o que há de imagens que foram saltando de pó em pó como uma pincelada de vazios.
Como quem roupa as andorinhas de uma inocência que há muito havia perdido o refluxo do céu.
Quem gosta de entregar-se a um templo abolido?
Qualquer mundo que imaginemos mora sempre fora de lugar.

Como uma febre em organismo que se mantém encalhado a meio palmo do abismo.
A vida já me chega.
Umas folhas caídas pelo chão.
Uma casa malfeita, segura em palhas, um horizonte que não serve ao próximo poente.
Uma vida o mais longe possível de seus extremos, o mar, o sertão, a galáxia.
Quem quer viver tão longe se não poderá contar a verdade sobre sua memória indefesa?
Éramos um mal morando em qualquer esquina, como uma chave desgovernada que não distinguia a cavidade entre o fora e o dentro.
As noites morando em panos atropelados.
As manhãs abrindo suas carnes em desconformidade com o dia.
O espaço vitrificado como se a penumbra fosse uma amante desacreditada do espírito.
Noites de sal, noites de quartos abalados, noites de uma noite desacreditada.
Quantas distâncias teremos que colar ao corpo das noites para que elas saibam como viver conosco?
Nada além de um distúrbio ou de uma plenitude escapada pela persiana.
Os símbolos fora de lugar e as cores correndo o risco de voos fora de órbita.
Como naves e seus reflexos, dias chuvosos, uma estação percorrida sem que o horizonte aceite seus riscos.
Era para ser uma noite.
Um ou dois pontos no centro do universo.
a distante sabedoria que olha por nós como uma brisa que descreve a dor de cada palavra.
Uma lua rajada na tela programada para repetição em mil salas.
Nada em nosso ser contém o infinito do ar.
Eu não direi o teu nome.
Não seremos o brilho que nos foi roubado.
A noite cai.
Não importa como o dia a recebe em seus braços.

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