Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Floriano Martins
O argentino Enrique Molina (1910-1997) é uma das vozes mais singulares e inovadoras do surrealismo em língua espanhola. Com uma vida marcada pela aventura das viagens marítimas, esteve no Caribe, na Europa e em diversos países latino-americanos. Ao lado de Aldo Pellegrini fundou, em 1952, a revista A partir de cero, destacada publicação dedicada ao Surrealismo. Sua criação envolve poesia, pintura, colagem e sua defesa incondicional do Surrealismo a encontramos em pequenos artigos e entrevistas. Numa delas, ao mexicano Marco Antonio Campos, ele diz: o que trato é de seguir fiel à ética do surrealismo, muito mais do que à sua expressão literária. Nisto não mudei: poesia, vida, amor e liberdade me acompanham sempre. Porém no surrealismo não há, por exemplo, uma visão da paisagem, exceto em Aimé Césaire, um grande surrealista nascido no Caribe. A referida visão da paisagem é uma das características mais intensas de sua poesia, plena de magia, viagens e sutilezas anímicas. Ao traduzir para o português um de seus livros mais intensamente surrealistas, Costumes errantes ou a redondeza da terra, em nota de apresentação eu trato de situar que o mundo poético de que se alimenta é o da existência humana, em seu misto de demência e frenesi, em suas inesgotáveis formas de paixão e sacrilégio, em seus pedidos de socorro e o extravio de essências em orgias de toda ordem, a natureza diabolicamente se misturando ao ponto insaciável de um feitiço que a desvende. Outros de seus livros: Las cosas y el delirio (1941), Amantes antípodas (1961) e El ala de la gaviota (1985).
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Mesmo que sempre próximo dos postulados básicos e fundamentais do melhor surrealismo (possivelmente, mais daqueles de caráter ético do que os meramente estéticos, se é que uma semelhante diferença ainda tem sentido), não demonstra ser Enrique Molina alguém sujeito a nenhuma ortodoxia. Sua exaltação do Amor, da Liberdade e do Desejo (brasões altaneiros dos surrealistas), sua devoção pelo Sonho e o Acaso, não derivam exclusivamente de algum tipo de “escritura automática”, ao contrário, são resultado do amadurecimento de uma experiência viva, que é simultaneamente fruto da inteligência e da paixão.
[…]
Com o legítimo orgulho da língua e do sangue, por própria combustão interna, a voz de Molina sublima por um ritmo interior, por uma autêntica palpitação, por um som, um ritmo de verdadeiro poeta, o que pode haver restado em sua escritura de automatismo. Capaz de um assombroso domínio de seu idioma (como ocorreu também, por outro lado, com os melhores surrealistas franceses, inclusive Breton), porém sem exercer domínio algum _pressão, poder algum – sobre ele, dono de uma sedução ao mesmo tempo verbal e plástica, em um perfeito testemunho do que pode ser a magia da expressão poética, a obra de Molina (invejável conquista) não desdiz o que ele mesmo afirmou, que se propôs conseguir: “uma linguagem visionária, nascida da intuição e do assombro”.
RODOLFO ALONSO / “Enrique Molina: una pasión terrestre”, ensaio incluído em Páginas de Enrique Molina seleccionadas por el autor. Editorial Celtia. Buenos Aires. 1983.
OS HOTÉIS SECRETOS
O brilho nômade do mundo
Como uma brasa na alma uma joia do tempo
Se abre somente com a passagem de certos leitos tormentosos
Arrastados pela corrente
Até as escadas cortadas pelo mar
Em certos antros de luxúria de margens sombrias
Povoados por estátuas de reis
Quase irreconhecíveis entre a reverberação das tochas cuja luz é a hera que cobre os muros
Oh coração orgulhoso!
Entrega-te ao fantasma parado à porta
Agora que tão bem te conheço
Sem outra sede além de tua memória
Criatura melancólica que tocas a minha alma de tão longe
Invoca nas alcovas o êxtase e o terror
O lento idioma indomável da paixão pelo inferno
E o veneno da aventura com seus crimes
Oh invoca uma vez mais o grande sopro de antigamente
Nestas câmaras de pedra enlaçada ao teu amante
E ambos envoltos na lona dos dias perdidos como o morto no mar
E prontos a se desfazerem nas fogueiras instantâneas
Sobre leitos de um metal misterioso que brilha nas trevas sob a base dos candelabros
E o coro de pássaros lascivos girando com fúria nos quartos lacrados pelo ferro de outras noites
Pois tais antros solenes cobertos de flores carnívoras
Com mármores que apodrecem à sombra de cabeleiras opulentas
Pomposamente lavrados se balançam desde o portal até a cúpula
Como a nave ancorada sobre o abismo
Agitando com lentidão seus espelhos para fazer dormir a mulher nua entre os verdugos que incineram o coração da noite
E o saguão onde se cruzam a chuva e a frustração
Os camareiros com o rosto apodrecido pelo tufo das flores acumuladas nos corredores infinitos
O rumor dos suspiros sufocados
Os beijos entretecidos em tristíssimo nácar
A relva sem nome em que se afundam seus hóspedes
Repetem uma vez mais entre a sombra
A lenda do amor que nunca morre
MANEIRAS DE SER
…E o que dizer de tais revelações e metamorfoses em animais flores atos e posturas estranhas nos curtumes de espumas ao largo de bocas que se cruzam aos gritos reclamando uma brasa do oceano e uma carícia nos lábios…?
o louco uivo desses lençóis onde ferve o amor agora e não depois nem em vitrines com obscenas roupas de mulher nem sob as pedras partidas pelo raio
nem em relíquias nem orações ou sequer em pirâmides sinistras conservando séculos de beijos e as emanações do ouro e das joias
agora porque a região do desejo se transforma continuamente em corpos que despertam no fundo de suas veias e lançam cintilações através de implacáveis vestidos
oh! aqui e não contra os fios secos de minha carne e somente onde estendo minhas coxas junto às tuas onde se ajoelha o verão dos adeuses e a lua esfrega seu óleo de tumbas na superfície de gentes que rememoram elogios e sexos
E não há saída para mim!
Não há saída para mim entre os muros alados da terra!
RODA ARDENTE
Não chegaremos nunca a nada
O fogo extinto não se extingue
O amor gira em sua cinza:
Nenhum beijo se desvanece
Corpos queridos à distância
E corpos próximos sem pontes
A gaivota dos adeuses
Está imóvel na corrente
Rostos que passam, porém retornam
— O belo girassol humano… —
Essa luz que parece noite
Essa noite repleta de faróis
Porque uma vez será outra vez
E o universo está em meu sangue
Corações excitados
Oh serpentes do sol
Insaciáveis!
LINGUAGEM NATURAL
É previsível que digas: O Rio dos Perfumes
abriu suas asas um curtume de carniças
porém essas águas testemunhais erigiram um palácio
de fumaças e ossos que se empinam
na grande fritura onde com tanta lentidão no ácido ar
o cadáver se ergue e lança seu estridente grito de galo decapitado
sem uma só vacilação
vira as costas e se perde nas ruínas
a imóvel mulher do fim do mundo que deposita sobre a mesa
o fumegante pastel de trapos sangrentos
com a tiara e as perucas viscosas do túmulo em plena cozinha até o fundo
dessa adorável carne vulnerável onde alguém se instala
de imediato sob uma pedra tatuada
e o “sacerdote das religiões”
ergue um rato inchado sobre o altar e comunga
com seus fiéis entre os relâmpagos
hinos e bons sentimentos
tanto se ama viver tanto se ama viver
mesmo que estas águas sussurrem uma glória frenética
um morto descomunal sobre a muralha
FINAL DE ESTAÇÃO
A pálida morte do verão se consome no ar, errantes folhas,
a calçada afundou e ninguém retorna a essas pedras
que já não se compreende, sem viajantes, sem vento, enquanto alguém espera
que algo responda à ansiedade de estar vivo.
Uma visão:
homens seminus vão com a grande rede estendida
a caminho da costa, a caminho da gritaria
de suas mulheres. Elas esperam seu tesouro:
escamas brilhantes, rabadas, dons
oceânicos, bocas desesperadas da profundidade
que mordem ar, adeuses. Porém é tão bela
a água dourada sobre o coração!
Todas as nuvens dispostas para a travessia
Nos ritos do sol, muito além das lágrimas.
E o que esperas recolher de cada escama,
de cada brisa dessas bocas mórbidas onde se cumprem
os dons terríveis da terra?
Algo responde sempre à asa que interroga,
a quem se inclina diante do grasnido
de um ataúde. Todas as coisas se entreabrem
um instante, te destroçam com dentes amados,
em um continente de amnésia, de promessas
nos paraísos da catástrofe.