3 Poemas de José Kozer (Cuba, 1940)

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Curadoria de Elys Regina Zils
Tradução de Gladys Mendía

José Kozer (Havana, Cuba, 1940). Viveu 40 anos em Nova York, onde ensinou no Queens College até 1997. Autor de 96 livros de poesia e 3 de prosa. Sua obra está traduzida para o inglês, português, alemão, grego, russo e, de forma muito parcial, outras línguas. Há aproximadamente doze teses de mestrado e doutorado sobre a referida obra. Ele é o vencedor do Prêmio Neruda, no Chile, em 2013, e recebeu a Montgomery Fellowship em 2017.


AUTOBIOGRAFIA

Antigos incêndios em noites longas onde observa
com atenção a rotação
das aves precedidas
pelas trevas, acontecimentos
ocorridos em um
espaço que ele chama
antigamente, sorria, ao que
o velho se referiria
desempregado por
pelo menos duas décadas.

Era dos tempos do brometo, óleo de rícino e
bicarbonato, os
lampiões e as
mães com cintas,
postiços enfiados
nos sutiãs:
se comia mal por
falta de informação,
amidos, gorduras,
frituras, leite
inteiro, frutas
enlatadas.

Ele pulou para o século XXI quase septuagenário, mudar
não era impossível, colocar
essas mudanças em prática, a ideia de
não comer carne, cozinhar
os legumes al dente,
comer frutas ao natural
de sobremesa em vez de
conservas lhe parecia,
pareceu até o
final de seus dias
uma desventura.

Tais mudanças, como se tivesse vivido três vidas
alheias: a tradicional
burguesa dos anos
cinquenta, a época
revolucionária (referente
aos hippies dos
anos sessenta) e a última
(global) em que a
virada implicava a
tecnologia, o virtual,
um tempo em que os
sentidos (eram
cinco ainda?) se
dissipavam, o que
permanece: informação
abundante (inacessível)
nada obriga a sentar e
conversar em um café pela
manhã, o Reggio,
o Gato Negro, Figaro
em MacDougal esquina
com Bleecker onde
ele viu uma vez
Dalí.

Sua maior contradição foi morrer nonagenário com
sua saúde de ferro, a
mente clara, os olhos
atentos a tudo ao seu redor, vísceras
funcionando plenamente,
sentado escalava
montanhas, nadava
em rios caudalosos,
água gelada: tinha
um apetite vegetariano,
enchia o prato,
poucos gastos, tirava
uma soneca e o resto daquele dia, qual, em
que mês, onde,
acontece que o telefone
tocou em sua
casa, e que
surpresa foi para
ele.


DE ÚLTIMA HORA

Dormiu
horas
invertidas
em
pleno
meio-dia,
vozes
anfíbias
se
espalhavam
em
seus
sonhos,
acordado
(quem sabe)
não
voltou
a
ver
seu
rosto,
reconhecer
ideias,
cada vez
dormia
mais
longe,
Taishan,
Gobi,
jardins
suspensos,
caravanas
de
camelos,
tâmaras,
peças
de
ouro,
de alto
teor,
se
fez
noite,
o
quarto
dia
ao
relento,
orvalho,
o
canto
uniforme
dos
pássaros,
canto
invariável,
ouvia
com
consternação
se
aproximar
três
agulhas,
fundindo-se
no
alto
do
relógio
da
sala,
na
gota
imemorial
de
água
na
clepsidra.


TORNAR-SE

A primeira uva dos vinhedos de Nabot, primeira
uva de Deus na
boca.

O sino ressoa, a vaca ruminava, e só comia
à mesa comigo,
não há cabeceira,
minha mãe falecida.

Mortos não existem, apenas moribundos, longo é o
prazo que se aproxima,
torna-se o tempo
inexistente (chegado)
nem espaço nem o ventre
digerindo uma última
ceia.

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