Julia Pedreira (São Paulo, 1991).Graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP – FFLCH), com foco em Antropologia, atua como atriz, escritora e pesquisadora. Atualmente faz Pós-Graduação em Teoria e Crítica Literária no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) na Unicamp. Em 2023, integrou a residência para escritores (CLIPE) do Museu Casa das Rosas. Publicou, em 2018, Fissura na Neblina, lançado em parceria com a Membrana; e Aqui nem deus é gente pela editora Urutau; ambos contemplados pelo Edital ProAC de Incentivo à Criação Literária. Se formou como atriz, em 2017, na Escola Livre de Teatro de Santo André – ELT; e junto com outros artistas fundou no mesmo ano o coletivo Comitê Escondido, que estreou, em 2018, o espetáculo Terra Tu Pátria, da qual fez parte como atriz e dramaturga; e em 2023, Um Memorial para Antígona, no TUSP. Integrou, em 2018, a 170 Turma do Núcleo Experimental e Artes Cênicas do SESI – SP. Em 2020, foi selecionada no edital Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência – Literatura, do Itaú Cultural. No mesmo ano, integrou como atriz a residência artística Vagamundos – Um Laboratório Cênico no CPT SESC – SP com coordenação da pedagoga e diretora teatral Maria Thaís. Atualmente integra o coletivo Frente, atuando como atriz e criadora na montagem do espetáculo FUGA, com direção de Beatriz Barros.
[UM DIA CANTEI]
Um dia cantei blowin’ in the wind
e alguém disse que eram três
horas – naquela noite quando
li o jornal, vi que tinham colocado
fogo numa casinha e que três
bombeiros e dezenove pessoas
tinham morrido – o incêndio
também tinha sido às três horas.
Eu ainda cantando e essa casa
ainda queimando. Eu cantando
e a casa queimando. Em frente
a um fogo em fúria, eu não fazia
nada quanto a esse fogo.
Veja só.
Tanto eu quanto dylan quanto
o fogo estávamos no mesmo
tempo. Essa era a única coisa que
tínhamos em comum:
existíamos no mesmo momento.
E aquelas dezenove pessoas
e três bombeiros ainda há pouco,
também, existiam no mesmo
momento e nesse mesmo
momento sucumbiram.
Diferente de mim, ocupavam
além do mesmo tempo,
o mesmo espaço.
Ocupavam o mesmo espaço
até serem engolidas pelas chamas.
Enquanto eu cantava, eram
três horas da tarde, e eu cantava,
eu ainda cantava, e o fogo
se alastrava, eram três horas
da tarde.
[TEM VIDA QUE É NOTICIOSA]
Tem vida que é noticiosa
E ninguém acredita
Mesmo que a janela esteja aberta
para a beira do mundo
só se olha para aquele quadrado
impresso de pequenas falhas
mas ali tem um corpo
um som, um pedaço de osso
pois bem
que fale
[SE O SISTEMA SOLAR COUBESSE]
Se o sistema solar coubesse na
ilha de Manhattan, o sol teria
apenas trinta centímetros e a
estrela mais próxima estaria a
oito mil e oitocentos e cinquenta
quilômetros de Manhattan:
em Belém.
[EU MORDIA UM HOT-DOG]
Eu mordia um hot-dog enquanto
Marlon Brando conversava
comigo. O bar era pequeno. Eu
tomei um gole da coca-cola do
Marlon Brando e saímos do bar e
olhamos para a luminosidade fraca
da rua. Eu e Marlon Brando vimos
as manchas na lua e a chuva forte
que caía. Eu disse para o Marlon
Brando que isso tudo era uma
invenção do Agrippino que eu
roubava. Marlon Brando me olhou
e me disse que tudo que sabemos
do céu é o que vemos da Terra.
Eu disse para o Marlon Brando
que eu não sabia nada sobre o
céu. Ele me disse que tudo bem
porque nunca vimos a Terra por
fora e mesmo assim achamos que
sabemos tudo sobre ela. Passamos
na frente de um supermercado e
eu fiquei com vontade de comer
alguma coisa, qualquer coisa.
Perguntei se ele também queria
comer alguma coisa, qualquer
coisa. Marlon Brando me disse
que essa coisa, qualquer coisa na
história do Agrippino era pão doce
recheado de creme. Eu fiquei com
vontade de comer um pão doce
recheado de creme. Eu entrei
numa padaria e comprei um pão
doce recheado de creme e ofereci
um pedaço para o Marlon Brando.
Marlon Brando se aproximou de
mim, tocou com suas mãos as
minhas e vi a boca do Marlon
Brando abrindo e mordendo o pão
doce recheado de creme. Vi a
língua do Marlon Brando lambendo
os seus lábios sujos de creme. Eu
mordi a mordida do Marlon Brando
no pão doce, e lambi meus lábios
sujos de creme. Marlon Brando
olhava para os meus lábios e eu
olhava para os olhos do Marlon
Brando olhando meus lábios. Eu
pensei porra o Marlon Brando
está desejando meus lábios. Eu
me aproximei do Marlon Brando
e de olhos fechados abocanhei
os lábios úmidos e carnudos com
sabor de creme do Marlon Brando.
Lembrei que o Agrippino disse que
o pão doce é bom para matar a
fome mas que a digestão é difícil.
Pensei que tudo que é bom para
matar a fome, a digestão é difícil,
inclusive o Marlon Brando. Olhei
o céu e pensei que eu sabia que
ele era azul igual uma piscina e
que tinha nuvens igual algodão
doce. Eu pensei que eu não sabia
como era a Terra por fora. Talvez
redonda, talvez azul, talvez uma
bola de gude flutuante. Eu pensei
que pelo menos eu sabia agora
como era o gosto do Marlon
Brando e a textura dos lábios do
Marlon Brando e os movimentos
da língua do Marlon Brando e o
toque das mãos do Marlon Brando
e o cheiro de suor do Marlon
Brando e os olhos penetrantes
do Marlon Brando e o Marlon
Brando me penetrando e o ritmo
do Marlon Brando dentro do meu
ritmo e eu gozando com o Marlon
Brando gozando dentro de mim e
que se foda a terra o céu e o pão
doce recheado de creme matando
a fome.