Apresentação de Floriano Martins
Tradução de Nicolau Saião
Marjolaine Deschênes é uma leitora, dito isto no sentido da eloquência de sua voz, no quanto que ela domina e lhe seduzem as apresentações públicas. Ela também tem o espírito participativo, festivo, o interesse seminal de estar presente em revistas literárias e volumes coletivos; e até mesmo no ambiente acadêmico sua inquietude a tem levado a expor seu pensamento em conselhos de pesquisas, salas de aula etc. Logo no início de um livro tão singular quanto Comme autant de haches, a poeta nos diz: Escrever um livro literário, como planejei dizer ao público, poderia ser algo como dar forma a fenômenos saturados, expressão tirada de Jean-Luc Marion. Elas não correspondem perfeitamente aos nossos recursos conceituais; elas estão além de nós e precisamos de tempo para integrá-las. Diferentemente dos fenômenos comuns ou pobres em intuição, aqueles que dela estão saturados – os paradoxos – vêm à nossa cabeça sob as modalidades do acontecimento, do ídolo, da carne e do ícone, tantas contrapartidas das categorias kantianas de compreensão. Esse tipo de fenômeno transborda a consciência e se torna invisível dependendo da quantidade, insuportável dependendo da qualidade, absoluto dependendo da relação e de impossível testemunho dependendo da modalidade. Quando lemos sua poesia, seus traços líricos insinuados como finas linhas riquíssimas dotadas de um delicado fogo sugestivo, vemos o quanto a memória abala os obstáculos exóticos da memória, o quanto ela risca aqueles contornos com os quais nos convida a extrapolar o discurso, para dentro ou fora de suas comuns definições. E mesmo os lendo na folha de seus livros, em sua delicada árvore poética, ouvimos a voz de Marjolaine, cada palavra esvoaçando com suas mil sombras que nos falam de infinitas imagens concentradas em seu íntimo. Entre seus livros, a poesia esplende nas páginas de L’Eau d’Ensor, Exosphère, L’étreinte ne sera plus fugace e Comme autant de haches.
[SEUS TRAÇOS E SEUS PASSOS]
Seus traços e seus passos
estampados na memória
ela sente-os e faz de criança
alcança imagens enterradas
cola-as nos nossos templos
como tantos eixos
plantados a direito nas paredes
[REDESCOBRINDO A SUA ADOLESCÊNCIA]
Redescobrindo a sua adolescência
traçando as curvas
e relançando os segredos do amor
para trás e para frente
a todo o custo revivê-los
com paciência
prossiga
e relance
ela vai fazer isso
Os seus filhos e a sua vida
contra um casamento exótico
[DESAPARECIDO]
Desaparecido
raptado
voou para longe sem mais ritos
ela não teria querido
a cerimônia do corpo
e não esperava entender
o seu desaparecimento
já cedo começado
o cansaço abraçou-a no cume
os nossos primeiros anos
como pálpebras trêmulas
verbo extinto e orações
A minha morte abalou
sem deixar nenhum espaço