5 Poemas de Renata Flávia

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Renata Flávia [Teresina, 1989]. Estudou história e biblioteconomia. Estuda ainda. É servidora pública em uma biblioteca. Não conseguiu tocar um instrumento, mas na música foi onde descobriu todo o resto.  Publicou Mar Grave (Moinhos, 2018), Lustre de carne (Moinhos, 2019) e Morada (Independente, 2020). descalça na gig é o seu quarto livro.


propriedades


é quase repetir o mesmo, exceto as consequências.
Júlio Cortázar


o cheiro da ocupação
a casa de repente vazia
o barulho recluso no canto extremo dos quartos
o rato
roendo o dia pelos cantos
impedindo movimentos
o cheiro
abafando o ar
eu danço
sopro, empurro o bafo
eu lanço
os dados
mas estou afogada no copo
já longe demais
para buscar o veneno
espantar o estrago
meu deus,
quem é
o rato?


cartografia infinda


era dia de muito sol, como todos os dias
quando assis brasil cruzava a praça da integração no parque piauí
m. leite descrevia os urubus e o cheiro forte do mercado, quarteirões abaixo
um ônibus marrom desce a av. maranhão
o centro brota no vão dos dedos de colegiais
entre a beira e a coroa
todos os dias é rio e cais
arnaldo aparece de batom na capa do jornal anunciando a prainha que vem
até hoje, a manhã recita da costa quando as barbas de um monge escorrem
[no parnaíba antes das 7 horas
todos os dias
o abandono cresce na fuligem do trânsito
enquanto o.g. atende no banco do brasil da álvaro mendes, 1313
chico faz o mesmo até às 4 da tarde
quando desabotoa os dois primeiros botões da camisa rumo à pedro segundo
essa praça, onde h. dobal caminha em círculos
está entregue ao vazio
de frente, drogas, ratos e lixos circulam livremente onde antes havia poltronas de cinema
a 100 metros dali paulo machado enfrenta o poema da teodoro pacheco, 1193
no sentido contrário genu reinventa fantasmas no último casarão da antonino freire
é dura a caminhada
fontes ibiapina passa na lateral da central de artesanato antes de descrever o incêndio
[e o salto metálico
na rua são joão, 1042 torquato arruma as malas para partir, pois cansou
não chore, teresina é assim mesmo
foi faustino primeiro, depois tantos mais
apesar de ser lindo o laranja neon desse sol que cai


serpente

e sibilante e lisa
se faz paixão, serpente, e nos habita
hilda hilst

não adianta chamar
no escuro
no silêncio
embaixo das cobertas
não adianta crer na palma
no tarô, no encontro de alma
ninguém socorrerá
o grito
gemido sem gozo
não se verá
essa imensa serpente
temida e tímida
que traz no ventre
ele não escutará o chamado
do corpo, do veneno
esse grito
será só teu
esse amor doente
talvez a pele quente
renuncie
sublimando, grudando
no pior canto da cidade
gotas desse furor sujo
e uma noite
te encontrar
bêbado
mijando no muro
mão ao alto
buscando apoio
nessa gordura
de nós
respirando o fundo
descerá meu abismo
encarando nossa perversão
muito aninhada em meu peito
assistindo
visões prematuras do passado
o cheiro de sol
os sons
olhos virados ao alto
retornando verões
todo o estrago que é me ter do lado
assistirá a tormenta do corpo
acusando ausências
regurgitando fantasias imundas
enquanto o pau de fora
corre o mesmo risco do meu coração
naquelas tardes
destroçado


***
desço a rua
sem buscar nada
ele está em uma rodinha
os lábios mais vermelhos que a pele
seu cabelo combina
com a jaqueta
um garoto nick cave
me crava o olhar
a tristeza como sedução
a voz grave arruma os acordes
garotos iscas discutindo política
como se soubessem mais que nós
arrumo minha jaqueta de garota
não tenho a voz grossa
faço manha diferente
não sei ensinar
por isso
escolho:
vingança


brogodó

o cheiro do peixe frito
às margens dos resorts
um punhado de delírio com farinha de puba
alimenta sonhos de pescadores
viciados em 51 e corpos comuns
é outra a paisagem atrás das fotografias
as lagostas voam
porque nascem entre os dedos das mãos
eternidades empurram asas de urubus
enquanto com linho e óculos dior
se disfarça a podridão
uma violência sutil na beira da praia
é servida para o almoço
ao meio dia
sete vezes por semana
os ossos brilham
neste lugar de feriados

 

 

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