3 Poemas de José Emilio Pacheco (México, 1939-2014)

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Apresentação de Lilvia Soto-Duggan e tradução de Floriano Martins

Em uma nota que apareceu no nº 8 de Vuelta, em julho de 1977, José Emilio Pacheco explica o plágio involuntário que realizou em seu poema “Fisiología de la babosa” (Irás y no volverás). Seis anos depois de publicado o poema, encontra Pacheco um ensaio positivista (“na realidade um poema em prosa”), do doutor Manuel Flores, intitulado Psicología de la babosa. Em seu poema Pacheco usa a frase “praga insípida”, e Flores, em seu ensaio, “insípida e tremenda praga” e “insípida e calamitosa praga”. Ao tratar de explicar este caso de intertextualidade involuntária, Pacheco indaga:

“É possível escrever um texto que não suponha outro texto prévio, conhecido ou desconhecido para o autor? Apesar do desprestígio atual destas duas palavras, existe de verdade uma ‘tradição nacional’, ecos e reflexos que perduram além da mudança e das discórdias das gerações? Ou então cada tema possui um repertório limitado de possibilidades verbais que ninguém pode vencer por mais resolvido que esteja em seu afã de ‘originalidade”? Ou, por último, tem razão Julián Hernández e é ridículo o próprio conceito de ‘autor’, já que ‘a poesia não é de ninguém: se faz entre todos’?”

Estas palavras evidenciam a ideia que muitos autores contemporâneos têm da razão de ser e da função da intertextualidade. Ainda que a literatura seja, por definição, intertextual, em nossa época se agravou a consciência que se tem da inevitabilidade de seu uso naquilo que John Barth chamou “A literatura do esgotamento”.

[…]
O fato de que Pacheco recorra às palavras de um poeta apócrifo, “plagiador” de Lautréamont, para defender seu próprio “plágio involuntário” é altamente indicativo e sugere a chave de seu pensamento poético: a poesia se faz entre todos, não existe a originalidade absoluta, a literatura é intertextualidade, seja voluntária ou involuntária, explícita ou implícita, o poeta indica sua filiação criando seus antepassados artísticos e, desta maneira, na conjugação das vozes do passado e do presente, da tradição, se fazem recircular as formas já usadas, resgatando-as das antologias e dos museus literários para animá-las em uma nova articulação e com um significado inédito.

[…]
Se um dos princípios da estética atual é por, em interdito, o conceito tradicional de autoria, é natural que na poesia se dê uma transformação na fisionomia do falante lírico. Se observa uma mudança, tanto na estrutura e função do falante-personagem como na situação narrativo-anedótica que constitui seu contexto. Carlos Bousoño, ao sistematizar as características da poesia que ele denomina pós-contemporânea e que eu me limitarei a chamar de atual, destaca, entre outros, os seguintes elementos, dos quais participa a poesia de Pacheco: brevidade e esquematismo; vontade majoritária e identificação com o próximo; estilo narrativo que, em uma linguagem natural, prosaica, de expressão familiar e tom conversacional, apresenta o falante fictício ou personagem situado temporal e espacialmente em uma anedota do cotidiano e habitual. Bousoño também observa na poesia atual um elemento que é singularmente válido para caracterizar a poesia de Pacheco: o uso de recursos de distanciamento para despersonalizar o falante e objetivar um sentimento que em Pacheco se configura como ironia e anti-patetismo.

Lilvia Soto-Duggan


CRÍTICA DA POESIA

Eis aqui a chuva idêntica e sua irritada maleza.
O sal, o mar desfeito…
Apaga-se o anterior, escreve-se depois:
Este convexo mar, seus migratórios
e enraizados costumes,
já serviu alguma vez para fazer mil poemas.

(A cadela infecta, a sarnosa poesia,
risível variedade da neurose,
preço que alguns pagam
por não saber viver.
A doce, eterna, luminosa poesia.)

Talvez não seja tempo agora:
nossa época
nos deixou falando sozinhos.


O FOGO

Na madeira que se resolve em fagulha e labareda
depois em silêncio e fumaça que se perde
viste desfazer-se com sigiloso estrondo tua vida
E te indagas se haverá dado calor
se conheceu algumas das formas do fogo
se chegou a arder e iluminar com sua chama
De outra maneira tudo terá sido em vão
Fumaça e cinza não serão perdoadas
pois não puderam contra a escuridão
— tal lenha que arde em uma morada deserta
ou em uma cova que só os mortos habitam


FIM DE SÉCULO

O sangue derramado clama vingança.
E a vingança não pode engendrar
senão mais sangue derramado.
Quem sou?
o guarda de meu irmão ou aquele
a quem adestraram
para aceitar a morte dos demais,
não a própria morte?
Em nome de que posso condenar outros
à morte pelo que são ou pensam?
Porém como deixar impunes
a tortura e o genocídio ou o matar de fome?
Não quero nada para mim:
apenas desejo
o possível impossível:
um mundo sem vítimas.
Como obtê-lo não está em meu poder;
escapa à minha pequeneza, minha pobre tentativa
de esvaziar o mar de sangue que é nosso século
com a tigela trêmula da mão.
Enquanto escrevo chega o crepúsculo.
Próximo de mim os gritos que não cessaram
não me deixam fechar os olhos.

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