José Roberto Cea (El Salvador, 1939)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

O bom da poesia é que ela nos dá a certeza de que existimos, nos insere naquela outra realidade do cotidiano, nos faz viver mais intensamente. É que, com a realidade cotidiana da grande maioria, eles nos suturam; com a poesia nos inserimos nessa realidade para sustentá-la, para resistir mais… Mas atenção, nada com uma atitude ingênua da globalização integral. Este é o novo totalitarismo, sem as posições do Nacional-Socialismo, ou Fascismo ou Stalinismo, mas com máquinas sofisticadas, redes de intercomunicação muito rápidas, controle de todo o conhecimento. Já estamos perdendo toda a privacidade, eles cuidam da maior parte do marketing, eles os tornam consumistas, os pontos de encontro são shoppings, boates, supermercados, não há mais parques, embora haja áreas turísticas com ruas de pedestres. Mas não sabemos para onde essa globalização nos levará, se é para a internacionalização dos ativos nacionais privatizados. A isso devemos adicionar os problemas do meio ambiente; para sobreviver na terra devemos optar por outro modelo econômico não consumidor, sabendo também aplicar a ecologia que nos ensina uma trilogia de conservação ambiental: salvar, conhecer e usar de maneira adequada.

História é história e passa, a poesia permanece conosco em essência; gostamos de poetas gregos e latinos, bem como nahuatl e outras poesias pré-hispânicas, que milênios atrás foram escritas ou promovidas para que permanecessem conosco e as tivéssemos em nossa tradição criativa. Através delas aprendemos sobre a relação de seus autores e ouvintes com seus mitos, tradições, imaginários populares e sua relação com o meio ambiente, a Mãe Terra, respeito pelas estrelas, conhecimento delas, gozo de seus movimentos, gozo de seus crepúsculos, e amanheceres… Mas hoje, se os comerciantes dominam a energia solar como dominam a energia atômica e aquela produzida por usinas hidrelétricas, não teremos mais aquelas alegrias com crepúsculo e amanhecer, por exemplo. Resumindo: com a poesia suportamos este panorama incerto. A revolução cubana nos fez ver melhor, e por isso eles nos veem mais.

[…]
Acredito que escreviver poesia nos torna autênticos no que fazemos, seja no cotidiano que devemos enfrentar para ganhar tempo e espaço para se dedicar à criação que nos salva e nos condena; fazer o que fazemos salva-nos porque temos que fazer, se não andarmos e ali angustiados: devemos fazer o que a nossa opção nos pede porque foi nossa suposição do que temos que fazer; depois vem a angústia de ter acabado o que tínhamos que terminar porque não demos mais, porque essa foi a sua manifestação… O que eu fiz? Posso fazer melhor? É por isso que estava tão desesperado para fazer o que fiz? E voltamos aos velhos hábitos e para uma mudança continuamos do mesmo jeito: buscando a salvação que é a condenação: escreviver com a consciência crítica como tem sido em todos os lugares e em todos os tempos. Os criadores sempre foram isso: a consciência crítica de sua sociedade.

JOSÉ ROBERTO CEA
Fragmento de “Casi un testamento poético”, entrevista concedida a Floriano Martins, 2001.


SOLIDÃO

Hoje eu vi cair de meus olhos a sombra,
como uma viagem cansada;
e deixou a minha solidão
como cidade desabitada de estrelas
e cães latindo;
sem a amada acesa na lembrança,
sem o primeiro beijo, que nos encheu de assombro,
sem as amáveis senhoras que nos dizem:
– como estás, jovem, bom dia.
Sem este mundo amargo e cotidiano
que nos dói no peito,
como a morte do pastor caracol
que morreu na areia
e sua jornada apareceu nua antes do crepúsculo…
Assim deixou a sombra, minha solidão vazia…!

Minha solidão vazia.
Tremendamente só,
sem um grito sequer.
Sem meus ossos!
Só.
Sem perfume.
Como um lírio quebrado em pleno inverno.
Pura.
Como um anjo desperto
segue a minha solidão.


EU, O BRUXO

Eu sou Quirino Vega,
tenho ervas de pássaros malignos
para falsear cadeados e memórias.
Tenho, além do mais, orações que afastam a maldade
e fazem o inimigo retroceder.

Eu, Quirino Vega,
sei matar a cal viva, porém sofro.
Há anos que morri para o anjo,
porém sobreviveram a mim a Chagua Théspan, minha mulher
e os dez filhos.
Seis fêmeas já caçadas e casadas,
e o resto, uns jovens loucos,
alegres como páscoas.
O que eu sei, herdei de meu pai.
Ele sabia suas coisas. E sabia tantas!
Que conseguiu me deixar muita coisa valiosa.
Por exemplo, seu coração de codorna selvagem.
E esse afã tão limpo,
de água que não cede no pântano,
em que tudo do mundo se encontra em seu lugar.

O nome que me deu,
segundo dizem as pedras do coral,
foi para que eu não perdesse o caminho.
E os espinhos não deixaram sua marca em minha memória.
E as formigas me trouxeram vermes moribundos,
sapos mortos e botões de plantas misteriosas
que farão perder a água das pias…

Eu, Quirino Vega,
sempre andei em camisa de onze varas,
por dizer a verdade à queima roupa,
e não fazer uso de pratos de lentilhas.
Eu não acertei os cegos, eles caíram sobre mim.
Porém aqui vou eu, de memória em memória,
mais querido do que ar e dinheiro.
Repartindo-me azul, de mão cheia.
Realmente me dando, completamente novo a cada entrega.
Sem suar tinta, sim, porém soberbo.
É assim que somos, os bruxos, em Izalco.


INVOCACIÓN DE LA CIUDAD PERDIDA

Aqui choveu céu.
Deslizando entre relvas…
Os poetas e os lírios conhecem a cerimônia.
Veem-na crescer em sua beleza.
Veem-na nomear o canto. Reviram o sonho.

Para danças, o ar.
Borboletas para a música.
Aqui a mescla rara.
O recipiente. Ali, os deuses.
Aqui a luz do tempo é alienada.
Ali as viagens.
E para quando regressem os perdidos,
as árvores terão deixado o bosque…

Tenho lido o livro dos dias: – Pedras de adivinhar.
Encontro a invocação.
Vou me purificar com a fumaça do orvalho
Antes que o sol se anuncie.

A ponto de voar a noite
a noite alcaravão chega em minhas mãos.
Faz ninhos vazios sem poder ficar…
A aurora sobe lenta, lenta, lenta
em um ritmo extraviado,
de quem perdeu a noção.
A aurora sobe lenta – peixe de ouro submerso no tempo
que navega,
navega,
e faz anéis no espaço…

Eu, na busca de amuletos,
vou ao mar, me dissolvo em suas praias;
trago caracóis para pintar de verde os crepúsculos.
(Surge o Quetzal)
Vejo grãos, eles me dirigem sua voz que não é sua voz,
falam comigo, me olham
quase os tomo…
Eu desejo fazer rios e caminhos
e a espuma chega com seu véu a perder de vista.
E choro, choro com os olhos inundados de pedras.
Pedras de mentira, sim, mas são pedras…
É quando chega algo de luz sem luz, muita intuição
e me tira as pedras, uma por uma;
arranco-me a pupilar para poder ver
lá dentro, ao fundo, a mim mesmo, ao passado…

Cidade subterrânea: Sol dos olhos.
Deixa de perecer que estamos sozinhos.
(Já se perdeu o Quetzal)
Escuridão de todos se permaneces afundando.
Sem deixar que eu diga a teus curandeiros que deram voz
à palavra.
Sem deixar que eu veja os velhos talhadores de madeira e jade
governando a pedra e o fulgor da argila.
Tuas donzelas fiando os crepúsculos
em cada flor silvestre.

Cidade subterrânea, deixa-me encontrar a fenda sagrada,
o sacerdote azul pintando os presságios e o mistério.
Deixa-me ver o ar que tinham os jogos de futebol.
Quero ter tambores lavrados em tartarugas terrestres.
Aqui é necessário o adivinho louco,
o que fazia pirâmides, calendários
e dias com um século pintado na memória.

Cidade subterrânea, deixa-me encontrar o rito,
o fogo feito de pedras, o mosaico de plumas.
Todas as testemunhas que me levem a ti!

Cidade subterrânea,
vou me humedecer com fumaça de orvalho
para te esperar sozinho…
Se te escondes, ninguém pode se encontrar…

Chegamos até aqui,
à queda, ao tumulto;
esperando dizer o que tu nos aponte,
esperando dizer o que não diz o tempo.

Nós te esperamos, Cidade, para que digas o que não podemos;
para que tragas
o que não encontramos.
Nós te esperamos, com esta luz ferida…

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