Apresentação e tradução de R. Leontino Filho
José Carlos Becerra nasceu em 21 de maio de 1937 em Villahermosa, Tabasco. Situada entre a floresta tropical, ao centro da planície tabaqueira e às margens do rio Grijalva. Villahermosa era, então, uma população de cerca de vinte e cinco mil habitantes, apenas acessível a partir do porto de Frontera, no Golfo do México, mediante onze horas de navegação fluvial.
Becerra veio ao mundo no mesmo lugar em que nasceram outros dois grandes poetas mexicanos: Carlos Pellicer e José Gorostiza. Viu a luz em uma família que – diz Isabel Fraire – “pertencia a essa aristocracia provinciana tão rica em lembranças e relíquias, em casarões e relacionamentos, e tão pobre em dinheiro vivo e sonante”.
Estudou o primário no Colégio Tabasco, o ensino médio no Instituto Juárez e numa escola de Campeche. Em 1953, ganhou um prêmio no concurso do Instituto com seu conto “O afogado” – tema que reaparecerá em dois textos de diferentes épocas e em muitas alusões dispersas…
Arquiteto de formação publicou dois livros de poesia. Após sua morte precoce, num acidente de trânsito, nas proximidades de San Vito dei Normandi, uma comuna italiana da região de Puglia, província de Brindisi, Itália, em 27 de maio de 1970; sua obra inédita foi recolhida no volume El otoño recorre las islas, edición preparada por José Emilio Pacheco y Gabriel Zaid.
No Prólogo de El otoño recorre las islas (1973), Octavio Paz observa que José Carlos Becerra morreu em plena busca, porém, nos deixou um punhado de poemas que são algo mais que os sinais de uma pesquisa: uma obra. Esses poemas o revelam como um homem que viveu frente à morte e que, diante dela, quis resgatar os mistérios do tempo humano e ouvir “o rumor dos corpos encontrados na memória, no estalo do nada”. O mais, o Poeta está inteiro em sua Poesia.
BLUES
Não era necessária uma nova investida na solidão
para que o soubesse.
O mar navegava por um rumo desconhecido para minhas mãos.
Onde o amor morou e reinou
agora só resta um muro que avassala a grama.
Resta uma folha de papel rabiscado
onde está anoitecendo.
Onde uma noite pingava estrelas
sobre ombros limpos como verdade expressa,
só resta uma brisa sem destino.
Onde uma mulher beijaria,
só árvores esmorecidas ao inverno.
E não era preciso dizer.
O coração sem ser uma lágrima
pode sombrear as bochechas.
A janela da tristeza.
Apoio os cotovelos e o passado e, sem olhar, sua ausência
me penetra no peito para lamber meu coração.
O ar é uma mão que está folheando minha testa.
Minha testa onde a lua é uma inscrição
uma voz esculpindo seu esquecimento.
Como fumaça a luz se levanta
dentre as ruínas do entardecer.
É muito cedo nesse azul sem rosto.
Não era necessário ofuscar a solidão
com o pó de um beijo dissolvido.
Não era necessário
memorizar a noite numa lágrima.
Lábios tomados de esquecimento,
pulsações de uma onda marítima já se retirando,
ruídos de nuvens que o outono pensa.
Há lápis em forma de tempo, vasos de água
onde o anoitecer flutua em silêncio.
Há um ramo de árvore como braço esculpido
por algum abandono.
Há olhares e cartas onde a noite
pôs em marcha o vazio,
às frontes que extinguem a sua cor longínqua
sobre as letras que aglutinam os sinais de viagem.
Aqui está a tarde.
Quem está apaixonado pode se inscrever.
Aqui está a tarde para designar sua ausência.
O mundo soa em meu peito
como uma árvore conquistada pelo vento.
Não era necessária a tarde, sequer este cigarro cuja fumaça
pode ser outra mão evaporando.
A noite invernará em meu peito.
Não era necessário sabê-lo.
Não tem importância.
Espero uma carta ainda não escrita
onde o esquecimento me nomeou seu herdeiro.
FALO CONTIGO
Os crepúsculos se alimentam de adeuses.
Adeuses que cumprem teu nome lá onde o esquecimento
é esse sorriso
que tremula em teus lábios como no alto do mastro.
Teu esquecimento é a tua boca
vagando por palavras como regiões perdidas.
Tu inteira; em uma cidade remota
com ruas de heranças e pisoteados verões,
com parques que são selvas de erva-doce,
com monumentos onde a pedra molda raízes na mentira
e o coração se dispersa como uma poeira ao entardecer.
Tu inteira; por uma rua, por uns braços,
por uma voz;
andando, no caminho, adiando,
enquanto teus olhos são uma rota para a noite,
para as portas que se entreabrem indefesas e cansadas,
para as alcovas onde nos buscamos,
onde abraçamos um corpo que supera nossa ausência.
Vejo a tua cabeça; astro hospedado no sonho
com uma cor de jamais,
com uns cabelos de um amor sem beijar,
superfície que o toque de minha mão tornaria profunda.
Bêbada com uma vela que responde aos ventos,
ligeira, sombria, respirando o outono
que o impossível te envia.
Te ouço falar, falo contigo.
Minha voz te rodeia, te espera, te verifica,
te tira das paisagens crepusculares,
te levanta das coisas que um dia povoaste.
Sei que és tu.
Esse sorriso de passagem,
essa abreviatura nos ombros,
esse olhar propagando a noite.
Falo contigo.
De que palavra redescobrir teus lábios,
ouvir teu peito que o mar caminha profundamente?
Uma tempestade antiga
embelezou a tua loucura no bosque.
Tua palavra é um barco que não arriscou essas águas.
OS CORPOS
Corpos entrelaçados onde a noite atravessa as ilhas,
pele de homem, pele de mulher,
a luz da lua bate em vocês como sua verdadeira nudez
mas a luz do sol é mais forte, vos separa.
O oceano amarra sua fúria nos arredores
a terra silencia seus mortos e se torna navegável;
corpos penetrados em tudo,
nascidos de sua própria vontade,
a alma não é sua surpresa mas sua melhor história,
a nudez é a nossa verdadeira lucidez.
Corpo de homem,
corpo ereto em seu amanhecer como um canto humano,
vida que cruzou seus limites até tocar seus outros limites,
sua outra margem, sua outra vida.
Corpo de mulher que assim recebe,
gruta do mar onde a vida e a noite escorrem juntas;
ocupada por seu próprio desígnio, nesse movimento o sonho
transforma as naves.
Corpos noturnos entrelaçados,
artífices da memória e do desejo da memória,
homem e mulher unidos e distantes,
À noite, os vossos olhos iluminam mais do que todas as luzes da cidade.
À noite a nudez solta suas amarras,
e lá estão vocês,
habitantes do sempre desconhecido…
TEU ROSTO SE APAGA
A lua é uma forma de ter amado.
A noite sobressai como um astro submerso,
como um corpo que perdeu sua nudez para sempre.
Lembre-se do quarto em penumbras,
lembra o primeiro encontro e testemunha este pôr-do-sol
porque tua é a inclinação da minha fronte.
E em mim toma corpo tua solidão,
no teu olhar ausente desfazem-se os astros e as encruzilhadas
do verão.
Porque teu é o panorama que contemplo: cidade de arranhadura e cinzas,
reunião de corpos onde a destruição se ergue.
Vais-te apagando no meu peito com a mesma liberdade com que amanhece.
Um pássaro voa no final dos meus olhos,
tua ausência se retira dos meus atos como se novamente
tu partisses.
Porém, não te esqueças,
porque a lua é a boca silenciosa da noite adormecida,
a carícia tentada pelos mortos.
Não te esqueças.
A lua é uma forma de ter amado.
O OUTONO PERCORRE AS ILHAS
Às vezes tua ausência é parte do meu olhar,
minhas mãos contém a distância das tuas
e o outono é a única posição que minha fronte pode tomar para pensar em ti.
Às vezes te descubro no rosto que não tiveste e na aparição que não merecias,
às vezes em uma rua ao anoitecer onde não já teremos de nos encontrar,
enquanto o tempo transcorre entre um movimento do meu coração
e um movimento da noite.
Às vezes tua ausência aparece lentamente no meu sorriso como uma mancha de óleo na água,
e é hora de acender certas luzes
e caminhar pela casa
evitando o estalar de certos recantos.
Em teus olhos há barcas amarradas, mas eu agora não as soltarei,
no teu peito houve tardes que no final do verão
ainda procurei acender.
E estes são ainda os meus encontros contigo,
o degelo que na noite
desfaz tua máscara e a perde.
ARREDORES DO MUNDO
eu amo em teu coração essa queda de folhas quando o outono te deslumbra
e as primeiras coisas do ar
libertam teus olhos da primeira ausência,
eu amo tuas ruínas e teu esplendor
teu sol de seios
e a noite em ti como uma vocação da alma,
quando estás em algum lugar do que em teus olhos começa,
quando elevas o crepúsculo com teu jeito pequeno de pranto,
quando sentes o temporal que há na mão escura com que te desnudo,
quando tremes ao encontro dos meus lábios,
quando cantas entre séria e provocante,
quando me atrelas às águas que dão nó em teu peito,
então ou quase nunca,
então se é que te amo quero este mundo
esta crosta de mãos gastas e transições doentes,
esta súbita esperança,
esta sórdida mancha de mel…
então eu te amo,
O AFOGADO
aquele homem se unia à solidão do mar,
ia e vinha em suas ondas e o azul da água
ia e vinha em seus olhos cada vez mais sozinho,
unido à solidão do mar aquele homem sonhava
e não era um sonho,
e perdia seu nome, perdia sua voz lançada como uma coroa fúnebre
que a maré desfazia ao pé de outro silêncio,
aquele homem só tinha agora que ver com a água,
com o azul retirado do céu a certas horas da eternidade,
com a espuma que cresce quando o deus do mar depena seus anjos
com mão trêmula,
aquele homem se uniu ao mar,
um pássaro quebrava a casca da tarde,