4 Poemas de José Ángel Leyva (México, 1958)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

• a poesia é um milagre

Talvez os poetas devam parar de escrever tanto e ler mais sobre verdadeiros poetas. Que leiamos para as pessoas poesia de alto nível, que admiramos, e paremos de promover apenas a nossa, o que muitas vezes dissuade ao invés de persuadir. A poesia é lida, embora não venda. Um livro de poesia não pode ser lido como um romance ou um ensaio. Bons leitores de poesia costumam ler em pequenas doses, para ajudar na digestão. Um poeta sabe, desde o momento em que escolhe esse caminho ou é escolhido, quando não tem outra opção, que a poesia é a mais inconciliável com o mercado, com o grande público, com as multidões. A poesia é um milagre, porque uma realidade íntima e individual pode se tornar um sentimento e uma experiência coletiva. A palavra falada pode ser a alegria da miséria de outras pessoas.

Sobre se a poesia mexicana é inata em sua essência, José Ángel pensa: “O México nunca foi um país de navegadores, nunca foi um país expansionista, nem com preocupações hegemônicas. Tem sido uma cultura de resistência aos invasores do Norte e da Europa. Somos um país fortemente castigado por ambições externas e internas. Ao mesmo tempo, é uma nação com uma geografia aberta por todos os lados, com um desenho identificável do espaço sideral, como o mapa da Itália. O inferno do crime organizado e do narco-estado impulsionou a diáspora camponesa e intelectual. Agora não é incomum encontrar mexicanos em outras partes do mundo em busca de expectativa de vida. Antes era apenas para os Estados Unidos. Do centralismo estatal e cultural, fomos ao desespero geral. Nosso negócio não é consanguinidade, mas, ao contrário, miscigenação. Um cosmopolitismo autoconsciente, por assim dizer. Amamos a muamba, de fora. Desprezamos o nacional por princípio, menos os clichês do chauvinismo. O mesmo acontece na literatura, navegamos entre a tentação da vanguarda e o incenso conservador, a tradição reconfortante. A literatura e a poesia mexicana, sua cultura, tiveram fortes influências na América Latina sem que tenha buscado isto. México sempre foi visto como o irmão mais velho, culturalmente falando. O Fundo de Cultura Econômica foi um carro-chefe de nossas cartas e o melhor pensamento. Você está em grave perigo. Nem Octavio Paz nem José Revueltas eram consanguíneos; Alfonso Reyes e Sor Juana dialogaram com o pensamento universal; os contemporâneos e os estridentistas. O México é plural apesar de si mesmo, sua coisa é diversidade, contradição. Mas a mediocridade é uniforme, endogâmica, voraz. Os contemporâneos e os estridentistas personificam o requinte e a transgressão revolucionária, a morte do conservadorismo romântico, Chopin à cadeira elétrica, o padre Hidalgo e o resgate da tradição popular: viva o mole de guajolote, é a nossa marca cultural. O que é popular é o bebedouro inevitável, é a fonte vital de nossas letras e de nossa cultura. Mas isso não nos torna endógamos, eles são as facetas da nossa identidade ”.

[…]
Não, não me parece que os poetas reconhecidos no México estejam superestimados no México. O que me parece é que existem muitos poetas não valorizados no México. Fora do nosso país, muito poucos são reconhecidos. Eduardo Lizalde, por exemplo, é desconhecido fora de nossas fronteiras, como Francisco Hernández ou Coral Bracho. Mas os jovens sabem muito sobre poetas não mexicanos, especialmente espanhóis. A mentalidade periférica determina a valorização de nossos conterrâneos, principalmente se eles estão vivos ou são nossos contemporâneos. É mais fácil valorizar o que está fora do que dentro. É uma mentalidade provinciana, no pior sentido do termo; digo isso porque sou provinciano, no bom sentido.

Trechos de entrevista concedida a Fidelia Caballero, em julho de 2020, para a revista eletrônica Bajo Palabra.


IRMÃO PAI

Em memória de Roberto Leyva Véliz

A morte, professor, nada ensina:
espelho inferior onde a parte termina para o todo
e o todo é revelado parte por parte.
O magistério começa com o corpo.
Onde a vontade e o sonho irrompem,
a memória encontra um pouso,
abre caminho para o alfabeto que eu sou
com meus irmãos
em teu desejo, em tua mulher, na desordem
de palavras que vão e voltam.
Quando os ponteiros do relógio são alterados
uma volta e meia,
a quem ditam sem ler o que teus lábios silenciam?

Prostrado na inconsciência, envias uma mensagem.
O respirador automático trabalha a agonia,
te dá a respiração necessária da ausência,
empurra a dor até que encha teus pulmões.
O que uma máquina de quebra-cabeça sabe?
Não consigo seguir ou entender o ritmo
do pé que vai do parto à partida.
Memórias talvez daquele primeiro ofício.
Os pés, ambos, saúdam o filho desde o coma.
Ponto e linha.
O telegrama do teu dedo, professor,
me atinge no olho
do nervo ao coração
e ponto
e vírgula.
Eu decifro a lição em código Morse:
dignidade, amor pela mão,
a floresta e o jornal onde me escreves.
Ponto e linha.
Eu pulo contigo nas pontas verdes
do monitor atordoado que não apreende
o humor de seus pinheiros e montanhas,
teu sangue,
ponto e vírgula.
Nesse pé e no outro vais cantando
as vogais, as tabelas,
teu saber
teu tempo,
irmão pai.


A REGIÃO AUSENTE

Há um espaço tão cheio de vazio
onde minha voz não é voz, mas eco
a pura casca do ruído
a marca de um pé que não me cabe
Eu queria voltar e não existe mais
a região onde deixei de ser
o território por mim desabitado

Nas minhas ruas não há estradas
Se eu tentar descrever a direção do ar
em cada canto do seu ser vazio
esferas de cardos aparecem na língua
memórias de um cadáver no prato
mantendo seu tédio em formaldeído

Com as primeiras gotas de luz
o céu fibroso se apega ao solo descarnado
resplandecente com mãos e braços musculosos
Outras terras empurram suas areias
em vendavais de azul fosco
A cidade careca penteia suas frondes
A poeira nos embosca
As árvores estão caindo aos pedaços


NAGUAL 2
ENTIDADE

A passagem da noite ao amanhecer, da tarde ao sono:
meio-dia de uma aldeia abandonada. Fuças no
ventre de um cadáver. Vasculhas infâncias. Seu terror
te dá um gosto de fósforo e cálcio, de jogo imortal
na goela. A morte infante não se cansa de inventar mais
trava-línguas, que travam a fechadura com um esparadrapo.
Não há mortalhas reais nessas ruínas. As pedras falam
de casas senhoriais. Os ossos discutem com
utensílios e pregos. Folhas de ferro e papelão
mordem a poeira ou se elevam como tapetes mágicos.
As viagens enferrujam e apodrecem muito cedo, antes
até mesmo de começar a história.


NAGUAL 10
POETA

Ao final, alguém se converte no que escreve
ou não com as próprias mãos
Quem vai acreditar em teu nagual
se não sentes o cheiro do tremor da imagem congelada
morrendo de medo dos olhos que a observam
Jato descontrolado de sombras
em busca do novo
O esquecimento coloca o coração em uma armadilha
Nós não voamos ou andamos com as guelras
No papel do deserto
alguém se lembra da maneira de caçar a lebre
fazer sandálias com pele de réptil
para entrar antes do amanhecer
Levantas a tampa e vês a tua própria morte
O verme da letra agita-se sob um título e outro
Parecem luzes de néon cobertas de cinzas
A tua máscara e teu nome tomam o lugar
daquela pessoa que não vieste a ser
Um dia a asfixiaste com o travesseiro
Uma parte tua foi deixada em seu testamento
Acabaste de nascer
Alguém te lê

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