Curadoria e tradução de Floriano Martins
A analogia é central para mim, pois, e me parece que a ironia ainda mais. Direi, se me fustigam, que a ironia procede de meu pai e a analogia vem do modo de discorrer na química orgânica, que é enormemente analógico. A ironia, certamente, acarreta inconvenientes, pois há cérebros retangulares reacionários para aceitar que, salvo como condimento ocasional, a ironia pode ser “séria”. Além do mais, assim matam duas lagartixas com um só tiro, pois de uma coisa que não é séria é inútil lhe fazer algum caso: que alívio!
[…]
É possível estabelecer analogias seguindo as articulações naturais do mundo, porém a imensa maioria não possui mais justificativa que sua eficácia poética. Aceito que se exalte – desta forma aprecio o soneto de Baudelaire – a emoção de descobrir correspondências, analogias. Aceito que, durante catorze versos, se assuma que tais correspondências são todas reais. Além disto, me separo. Fingir que se descobriu, fazendo versos, sistemas – nada menos – de recursos da realidade, isto é demasiada figuração. Além do que, mesmo que casualmente se pusesse o dedo em alguma verdadeira chaga, não importaria grande coisa, pois a poesia não demonstra nada – nem falta que faz –, e a descoberta deveria ser novamente feita, por um caminho firme. Ante “métodos” demenciais e cabalísticos que pretendem escavar – ignoro em que –, aplicando estas ou aquelas receitas verbais estrambóticas, não posso senão torcer o nariz. Curiosidades para a antropologia. Brincar de escrever segundo uma regra pode ser divertido durante um momento, porém não ilumina nada da realidade profunda do cosmos e essas coisas. Com todo o meu afeto e respeito por Mallarmé, seus devaneios em torno do “Livro” eram zombarias.
Com o parágrafo anterior bem se pode chegar a falsas conclusões sobre meus modos de ver. Sublinharei que creio que existam incontáveis enlaces significativos no universo, não descobertos. Com minha mentalidade analógica e comparatista sou um pescador infatigável de homologias, de coincidências. Pois bem, tomo precisamente a questão tão a sério, que me nego a abordá-la por caminhos que não sejam os da investigação. Acaso estes caminhos requerem ampliações, reformulações: estou pronto – porém entre os desejados avanços não vai figurar um procedimento que prescreva: “se se trata de calar mais fundo, redija um poeminha”. Dizer-me que o poema, pelo mero fato de suscitá-lo, demonstra a existência deste ou daquele vínculo significativo e real entre isto e aquilo, me parece um ridicularismo esquisito. Evitemos confusões supérfluas. Que a poesia suscite as correspondências que lhe convenham. Que a ciência busque aquelas que existem em termos de matéria e energia (e se há outra categoria fundamental, que a torne verificável e lhe acharemos um nome – que nunca será “espírito”, certamente). Há nexos entre a poesia e a ciência? Sem dúvida. Conformes?
[…]
As essências, por definição – e não é para fazer um lamentável gracejo –, me cheiram muito mal. As transcendências, outro tanto. Que mais dizer? Como as palavras significam – e quando não significam logo se tornam maçantes –, a poesia está predestinada, por natureza, a ser um híbrido labor, de um matiz cinza difícil de ultrapassar. Não importa. Mesmo assim pode ser agradável, quando menos fazê-la. Porém, é certo que não devemos buscar três patas ao gato, pois se acaba por encontrá-las – e um gato coxo é uma coisa muito triste.
GERARDO DENIZ // “Gerardo Deniz: la poesía, actividad hedonista e irónica”, entrevista concedida a Fernando García Ramírez. El semanario. México, 11/03/90.
HORA
O último sol desenha a janela em diagonal sobre a cama e nós
o sublime concerto à memória de um anjo
não o escuto
não a vejo
a tudo consumimos
tornozelo na dobra de meu pescoço
dedos estranhos do outro pé na boca
só existem Saturno e o vazio
para a temperatura de tua vida
NORTE
Esta era tua casa,
onde nunca entrei,
que nunca vi de dia
quando há séculos te acompanhava, tarde,
esperava que entrasses pela porta onde me detinha
e voltava, úmido de ti ainda através da noite branda, segura,
porque a certeza de tua vida e de tua carne
era um arroio de leite prodigioso e confiado.
Agora é meio-dia, azul e nuvens;
me dá vertigem entender de imediato
que esta rua, que até hoje não a conheci à luz,
foi tua antes de nos encontrarmos;
depois cheguei e duvidavas, percorreste este passeio
semanas, pensando a que nova estranha prova me submeter;
certamente olhavas aquela varanda de esquina ao decidir-se
e a noite seguinte que aqui nos trouxe juntos
nos havia encontrado misturando-nos distante.
Como em toda outra data dormiste então aqui dentro;
O que repassavas ao unir as pálpebras?
o que, ao despertar em um domingo igual a este?
Saíste, e quem pensava te seguiria com o olhar desejando-te.
Por onde agora me afasto me levaste nos olhos, nos ouvidos, na pele, nas vísceras.
Algo de minha substância se fazia matiz teu
no alvor de nosso primeiro ano.
FASE
Flutuas ante minhas virilhas em tal mistério frio
que não sei se teus pés tocam o chão
ou se curvam inermes no ar, suspensa
da nuca que me apoias no ombro,
de quatro mãos juntas sobre tua garganta,
do cheiro que às escuras busco em teu cabelo.
Penso em tua forma de costas, absorta,
reclinada em mim mesmo, frente ao vitral,
sulcada de tremores súbitos,
vendo a rua como se não entendesses
as luzes refletidas no asfalto abaixo.
Não passam quase carros a esta hora;
sem dizê-lo observamos o farol aceso
e entre eles e os dois
varanda molhada, um anel de insetos e a água amarelenta
que cai esmiuçada.
Vamos dormir.
Te ouço urinar detrás da porta mal fechada.
Agora teus passos.
Cobertos de lençóis e sombra pulsamos frente a frente
com a fortuna do tato sem desejo;
te surgem ângulos, frescores, consistências
que não soube há pouco nem há muito;
nunca foi teu lábio polpa tão simples,
e a saliva tão clara. Eu te pressinto
mais como eras sem mim,
quando tua existência, ao recordá-la, me inundava
a três segundos do cedo despertar sozinho,
enquanto eras provável nada mais
(e aqueles instantes brancos já me esqueceram).
Que gestos insinuamos agora, que palavras
nasceriam, que ritos parecem quase vislumbrar-se
de algo que começa quando o corpo se cumpre,
e que é também do corpo,
e que o dormir devora, cru, sem que se mova.
CAPTURA
– Solta-me, por piedade, que ando fugido.
Sou do exército de macacos
posto há muito a teclar casualmente
em robustas máquinas Underwood
a fim de ilustrar quantíssimo se tarda
em gerar ao acaso as obras de Shakespeare.
(Questões tais como se Deus serve para algo
e outros tédio de tal índole
– porém nos dão bananas que a Igreja paga religiosamente.)
Hoje comecei pondo sem fixar-me
(e em isabelino)
A domesticação do musaranho,
segui enchendo de letras laudas e laudas,
porém chegou o inspetor, um frade dominicano,
folheou o que eu já havia feito
e empalideceu tanto
que preferi fugir. Solta-me já.
Deixei-o ir, certamente.
FECAL
Para D. Margarita Michelena
Tanta coisa como estudas, e ninguém se interroga
pela merda dos seres mitológicos.
Era larga pasta a do Minotauro?
bosta ovoide a da Quimera?
Eras mistas, aquosas, esbranquiçadas, como de ave
as dejeções da Hidra? especialmente pestalocis
as da Esfinge? Foi obstipada Cila?
O que aclarar a respeito de Tífon?
– se Nômio nos parece malômano, entre outras coisas,
informa muito pouco acerca de suas águas maiores.
Fontas, as eternas; os vasos, as inscrições, a coleção Teubner
e há outras. Que perfurar cartões. Paralelamente
conviria estabelecer o corpus dos coprólitos
encontrados na bacia subterrânea,
Ásia Menor, o Euxino e mesmo Panticapea, se fosse o caso.
Ir, cada manhã, do manuseio respeitoso
ao banco de dados, e vice-versa.
Levar uma peneira de Boas na canana
e, enquanto não se veja claro, buscar funções inéditas
com aperitivos, sobremesas e outros materiais não processados.
Vos direis, congêneres, o que a meu juízo ocorreu
(e se os resultados das investigações computadorizadas discordam,
pior para as investigações computadorizadas):
os excrementos de cada um daqueles
entes garantiram iguais parcelas do escrever clássico,
gêneros novos brotaram em solos ferazes
diferentemente, e assim tivemos tragédia e comédia,
épica e lírica, história, eloquência,
mais a filosofia, colheita inexaurível.
Farejando as clâmides para distintos estilistas
– como esses conhecedores que cheiram as cortiças do conhaque –
poderíamos conjeturar, apostar.
– Ego, inquit, poeta sum…