5 Poemas de Francisco Valle (Nicarágua, 1942-2019)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

ELM | Às vezes você quer ligar os poetas dos anos 70 com os anos 60. Em que aspecto poderia haver relações?

FV | Em termos gerais, vejo-os como diferentes, exceto Álvaro Urtecho, que segue uma linha elitista e culturalista dentro da literatura nicaraguense. Ele é quem melhor coleciona o patrimônio cultural, ou seja, continua a geração dos 60 com a mesma seiva frutífera que vem de Martínez Rivas e Mejía Sánchez. Álvaro Urtecho é essencialmente um culturalista, não concebe nada fora da cultura, em manifestações culturais, digamos, de alta qualidade humana.

ELM | Na tradição literária, quem é o poeta vivo mais importante?

FV | Após a morte de José Coronel Urtecho, Carlos Martínez Rivas e Pablo Antonio Cuadra, é muito difícil arriscar um nome para estabelecer quem é o poeta vivo mais importante. Não sei quem poderia ser. A poesia nicaraguense, em certo sentido, está acabando. Nós da década de 1960 não fazemos mais do que um esforço para continuar um pouco a tendência de qualidade que existia anteriormente com Coronel, Pablo Antonio e Martínez Rivas. Determinar se o alcançamos ou não é algo que cabe ao crítico.

ELM | Como você vê a literatura atual do nosso país?

FV | É difícil ter uma opinião válida sobre a jovem literatura nicaraguense contemporânea que está se formando e em vias de ser publicada. O poeta é um longo processo de amadurecimento que se faz com a experiência e num jovem é difícil encontrar essa maturidade. Claro que há casos na França como os de Rimbaud e Lautréamont que morrem jovens e com uma obra inédita, mas são casos muito isolados. O tempo dará a cada autor a cultura que é fundamental, embora a Nicarágua seja um país pobre e o poeta tenha que trabalhar em meio a essa pobreza cultural. Mais dinheiro precisa ser investido nas artes e espaços editoriais abertos.

FRANCISCO VALLE / Trecho de entrevista concedida a Ezequiel D’león Masís.


O CACHIMBO DE NOGUEIRA

Toda a desolação passou por meus lábios.
No cachimbo escuro de nogueira a morte escreveu, com lívida nomenclatura, a sobras das palavras perdidas, e cada cidade solitária foi gravando em seu corpo de anacoreta uma profunda talhadura.
Como um anjo antigo, o cachimbo sonhava em minha boca.
Como um barco silencioso, se perdia entre as torres negras.
À meia-noite, na penumbra, resplandecia sua brasa profunda; ao meio-dia, jazia quieto, imóvel, e seu grosso ventre da cor de raiz fóssil consolava o mundo.
Às vezes, encontrado de repente sobre uma mesa, em uma gaveta, sobre um armário, o cachimbo – na solidão do quarto – tinha um silêncio de outras idades, e sua tristeza era uma elegia de pedra que dormia entre as mãos.
Durante muito tempo caminhou comigo, até que ao final – ancião coxo e arruinado – perdeu totalmente o olhar diante das trevas do mar.
Tive que deixá-lo, e ali ficou sobre a areia, como uma religião abandonada.
Eu me perdi por um caminho onde as tardes caíam sobre a vida como as cinzas dos reis mortos.


O RAMO DE OURO

Brilhante e solitário como navalha de galo, amanhece o dia. Amanhece porém sem ninguém, com os lábios cortados na água já tingida de extensos arrebóis. A luz do sol que se levanta pega no corpo do esteiro, e a corrente por um instante é uma lâmina que ferve na carne viva mesclando reflexos de aço, saltos de tainhas e raios coloridos que enchem de incêndios as mãos e os olhos. Os manguezais, ainda com sombra da noite anterior, aparecem, negros nas raízes de braços múltiplos como chifres de boi enterrados com força no lodo, onde soam as conchas ao se fecharem. Em um extremo do bote jazem os cães estropiados com as entranhas de fora. No curtido e áspero ventre dos alforjes, anda o bornal com o rango úmido pelo sereno da alvorada. Com o desvelo pintado nas caras, entre bocejos e baforadas, nos espreguiçamos. De vez em quando soa a palmada furiosa de alguém ao matar mosquitos. Já preparados, vamos esteiro adentro, lentos, a golpe de remo que parte a água em duas, afastando-nos das margens douradas. Passa um pescador e nos lança um grito – um alarido alto como um cutelo de luz – e nós respondemos com outro grito que pretende dizer que por aqui andamos. O pescoço do meio-dia resplandece em uma profusa degolação de azul e na metade do caminho vamos todos em silêncio, escutando apenas o som das pequenas ondas ao se desfazerem contra as costelas do bote.


QUARTO ESCURO

No quarto escuro, meus braços golpeiam como martelos de névoa contra o vento morto que vai me fazendo desaparecer, até que meu corpo desemboca na essência dolente de um fio de luz que foge pelo teto e rebenta em um profuso resmungo de astros sobre a cara do céu. Entro, então, em um inelutável quebranto de pássaros que bebem em meu sangue quando as secas ladeiras da alma me enchem de frescos e entristecidos lírios e a rochosa morte se arrasta sobre a pele do mundo com a sua angústia de espinhos. Grito no silêncio atroz como desbaratado em migalhas de sombra, entrevendo uma rua que jamais me internará para o mar, e que torce – o pó que a eterniza – para uma fila de brutais espadas que a protegem como árvores hirsutas. Eu me detenho e apalpo o malferido contorno de um anjo que com seus irascíveis olhos de água vermelha se petrifica ao meu lado, para que a garganta não seja partida em dois úmidos pedaços e o coração não me saia por esse buraco como um lenho aflitivo que chora na boca de um túnel. Depois, a caminho do esquecimento me ausento para sepultar minha cara sob as cinzas.


TRÁFICO FECHADO

Aqui no mesmo lugar onde se reuniram as noites para escrever o fracasso, a espessura humana fica abandona à margem de um grande bosque de pedra. Um erro após outro; um profundo estado de cansaço; o barranco azul onde as perdizes assobiam. Quando transcorre o tempo e o temporal se abate lançando-me longe de mim, longe da sombra das árvores e o lobo é mais do que eu poderia levar, pelo caminho solitário não aparecem jamais os ventos de pele adormecida, e a garoa tranquila – soluçando sobre as memórias sagradas – cai neste lugar que se torna obscuro e molha a terra que chama como habitação de eternidade. Surge minha cabeça como uma papoula a mais entre as aventuras do vento, e no mistério mais distante do braço os entardeceres te oferecem um sudário com orvalho. Outras tormentas, outros destinos. Entre horizontes e distâncias, descansa com o peito aberto sobre o único penhasco das vertentes: o vagabundo sem preconceitos dispõe apenas do regresso nostálgico das aves para alimentar o silêncio de seu rosto.


AS MULAS NO INFERNO

As mulas no inferno vivem de uma beberagem de sombra, recostadas sobre o peito do amor.
Atadas ao fogo silencioso, seus olhos vermelhos se movem de um lado para outro como dobradiças de uma porta negra.
Com o lombo queimado e um cheiro de pelos chamuscados, curvam o pescoço para comer brasas.
Entre suas patas arde uma greta de sol, e com a carne aberta a coroa cai sobre as águas amarelas.
Em seus dentes de pedra brilha um relâmpago, e em sua fronte escura, às vezes, dorme a mão do vento.
Redondas as ancas e o olho devorado pelo inferno, arrastam ataúdes com uma meca amarrada na cintura.
De suas orelhas pende o céu, como uma força triste.
Quando as mulas sorriem na penumbra, eu recordo o desamparo dos ossos abandonados.
Suas bocas são ferraduras de bronze, e voam baba, gemem presságios, resfolegam ar suplicante que de tão celeste banha de fumaça as caras.
As mulas afundam na fadiga profunda que tem o peito de um homem.
A seus sepulcros vou recomendado.
E em mim o pranto brota em arco de esqueleto.

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