Curadoria e tradução de Floriano Martins
Minha poesia se nutre muito das experiências da natureza. Ela me pressupõe todo um arsenal de referentes, que se convertem em metáforas e imagens. Para mim, e o disse em uma pequena apresentação de uma brevíssima antologia pessoal: minha poesia tem se produzido em círculos concêntricos, à maneira de impulsos que se alargam do centro cordial à periferia e, em sentido inverso, se arremansam em seguida. Um desdobrar-se da inquietude vivencial (nascido como elementar pulsão comunicativa) no âmbito da natureza vigorosa e redentora, de onde retorna corroborado com a infinita sugestão de seus emblemas. Assim creio ver (sentir) o processo da configuração verbal de minhas próprias experiências, por necessidade, radicais. Bem, isto é para mim a natureza: um âmbito vigoroso e redentor, um âmbito que permite poder expressar os feitos internos. Quando se fala de uma folha que cai no outono, se transmite algo que vai muito além da folha que cai no outono, que é a caducidade da própria vida. E desta maneira a natureza nos está provendo – sou, em particular, muito sensível a isto – de sugestões infinitas, e não tenho uma atitude crítica, uma distância ante a natureza, mas sim, ao contrário, uma atitude de comunhão.
[…]
Penso que não haveria poeta, que não haveria artista, se neles não se aninhasse a esperança. O fato de escrever, ou de fazer algo com pretensões de transcendência – não empreguemos a palavra transcendência –, quer dizer, de que algo chegue a outros seres para que os possa elevar, tornar mais sensíveis e mais conscientes da realidade, é já indubitavelmente uma esperança. Não poderia jamais separar a criação poética de uma esperança fundamental no destino do homem, no destino de uma plenitude na vida humana.
[…]
A poesia me é um meio de conhecimento pessoal, que não fica unicamente reduzido à minha pessoa, mas sim que ao descobrir algo em mim estou descobrindo algo que é humano. Por isto é que podemos ler os poemas alheios, de épocas, civilizações e culturas diferentes, muito remotas, muito afastadas umas das outras, sentindo que nos têm algo a dizer, porque dão com algo que é essencial ao homem. Essa participação em algo comum ao homem é uma função da poesia. Penso, além do mais, que é um instrumento de auscultação própria, do próprio achado da identidade. Agora, é também o que recordavas: um ato de comunicação. Se há uma participação, esse encontro em uma identidade humana, creio que a comunicação pode então se estabelecer.
JAVIER SOLOGUREN / “Plenitud de la expresion (diálogo literário)”, entrevista concedida a Miguel Cabrera, realizada em Madrid, entre junho de 1983 e outubro de 1984, para acompanhar uma edição crítica da obra de Javier Sologuren.
POÉTICA DE UMA VIDA
um corpo que dificilmente é nosso onde
o infortúnio sombrio triunfa
uma chama de sangue logo esgotada
depois de sua canção separada e entre
o veludo carnal das sombras
soltas como uma rosa deflorada
um corpo para quem ou para quê
semente branca que o acaso devolve
com sigilosos sinais e maneiras
no derradeiro incremento da terra
uma poeira tua e minha sequer nossa
onde o infortúnio ergue seu voo
[O MAR CEGO]
o mar cego
não vejo
traslado-me
a boca de uma flor
é um vulcão fêmea
ponteiros de horas e minutos
desfilam no interior
mas estou no mar
não vejo
eu bebo
um céu ao contrário
um redemoinho branco
estoura entre meus ossos
não vejo
senão braços transparentes
a cor mal mima seu crepúsculo
não vejo
senão o mar
eu sou o mar
RELÓGIO DE SOMBRA
Com uma longa garra de tristeza eu procuro
a altura pálida de uma planta feminina;
como um vento queixoso eu procuro
a nudez intempestiva, sombra e efígie,
grito distante da ave migratória,
pena com que uma imagem fere seu espelho.
Luz errante e branca sob o vazio do céu,
pequeno relógio que foi apenas uma lágrima,
hora em que cada ser é uma pálida violeta,
estátua de repente, arrastada pela música
em um ramo de trevas e agulhas nevadas.
Hora em que procuro algo que não é teu ou meu
com um olhar fixo em tudo o que foge.