5 Poemas de Jaime Sáenz (Bolívia, 1921-1985)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Minha geração está frustrada. Muito me dói, me sinto desgraçado por isto. É uma lástima, porém tantos valores claudicaram, renderam-se ante a pequena tentação do viver comodamente. Deixaram de ser o que eram, deixaram de fazer o que tinham que fazer.

[…]
Há que ser muito humilde. E muito orgulhoso. E haver sofrido muito. Não há, contudo, nenhuma contradição. Há que ser muito humilde para viver a ânsia de ser fiel a si mesmo, à verdade, ao que cada um de nós somos. E esse orgulho, satânico, consiste precisamente em sustentar-se naquilo que se é, sem nunca mudar, por nada ou por ninguém. E tudo isto requer sacrifício, produz a dilaceração do verdadeiro sofrimento. Contudo, eu muitas vezes deixara de escrever. O conforto, essas idiotas comodidades da vida e da técnica, as fruições do dinheiro, são uma permanente tentação. Porém não são o Diabo. Não são jamais positivas, e sim profundamente negativas. O conforto é um diabo não transcendente, na realidade, um pobre diabo!

JAIME SÁENZ
“Una entrevista con Jaime Sáenz”, entrevista concedida a Gonzalo López Muñóz. La Paz, s/d.


Conhecer o mundo é conhecer o segredo da esfera. E para conhecer o segredo da esfera é preciso haver descido ao abismo e subido além da superfície; pois o segredo da esfera, na realidade, se acha no que não há, no que não é; em coisas tais como o abaixo, o acima, o aqui, o ali, e em coisas tais, que ao mesmo tempo são e não são, estão e não estão, encontra o verdadeiro homem seu caminho de conhecimento.

[…]
Há que se ter uma força quase sobre-humana para resistir aos efeitos de uma bem-organizada e encoberta conspiração. Claro que é o humor um dos principais componentes desta força quase sobre-humana. O humor é conhecimento no mais alto sentido. Aquele que escreve o que lhe dá vontade, o que não teme nada ou ninguém, o que não transige, o que cospe sobre as convenções, sobre os grupos, os cenáculos e associações está perdido. Não tem perdão.

JAIME SÁENZ
Trecho de carta dirigida a Stefan Baciu. La Paz, 28/06/70. Documento gentilmente cedido por seu destinatário.


NO ALTO DA CIDADE SOMBRIA

Uma noite em uma rua sob a chuva forte
da cidade sombria
com o barulho ao longe
que certamente suspirará
eu vou suspirar
de mãos dadas por um longo tempo
no interior do bosque
seus olhos claros ao passar um cometa
seu rosto vindo do mar
seus olhos no céu minha voz dentro de sua voz
sua boca em forma de maçã
seu cabelo em forma de sonho
o olhar nunca visto em cada pupila
seus cílios em forma de luz uma torrente de fogo
tudo será meu fazendo piruetas de alegria
Vou cortar uma mão a cada suspiro seu
Vou arrancar um olho a cada sorriso seu
Morrerei uma vez duas vezes três vezes quatro vezes mil vezes
até que eu morra em seus lábios
com um serrote cortarei minhas costelas para lhe entregar meu coração
com uma agulha farei reluzir minha melhor alma para lhe surpreender
às sextas à tarde
com o ar da noite cantando uma canção
pretendo viver trezentos anos
em sua bela companhia.


TUA CAVEIRA

A Silvia Natalia Rivera

Essas chuvas
não sei porque me farão amar um sonho que tive, há muitos anos,
com um sonho que tiveste
– sua caveira me aparecia. E tinha um grande charme;
Ela não me olhava – estava olhando para ti.
E se aproximava de minha caveira, e eu olhava para ti.
E quando me olhavas, surgia minha caveira;
Ela não te olhava.
Olhava para mim.
Na alta noite, alguém observava;
e eu sonhava teu sonho – sob uma chuva silenciosa,
te escondias em minha caveira e eu me escondia em ti.


A NOITE

1.

Estranhamente, a noite na cidade, a noite doméstica, a noite escura:
a noite que paira sobre o mundo; a noite que dorme,
e que sonha consigo, e que morre; a noite que olha para si mesma,
não tem nada a ver com a noite.
Pois a noite só ocorre na verdadeira realidade, e nem todos o percebem.
É um relâmpago providencial que te sacode, e que, no instante
preciso, te aponta um espaço no mundo:
um espaço, um só;
para habitar, para ser, para morrer – assim é o espaço de teu corpo.

2.

Pois existe um mandato, que deverias comprar,
em homenagem à realidade da noite, que é a tua própria;
mesmo ao custo de renúncias impossíveis, e de intermináveis tormentos,
deverás dizer adeus, e recolher-te ao espaço de teu corpo.
E deverás fazê-lo, sem importar-se com o escárnio e a condenação de um mundo amável e sensato.
É bom que consideres que milhares e milhares de mortais se recolhem tranquilamente
ao espaço de seus respectivos corpos,
dia após dia e queiras ou não, ao toque de brilhantes trombetas,
e em meio a lágrimas e lamentos;
pois, na realidade, recolher-se ao espaço do corpo é morrer.
Porém aqui não se trata de morrer.
Aqui se trata de cumprir o mandato; e por idêntica razão
terás que viver.
E tanto é assim que não será possível cumprir o mandato, a menos que sob a condição
de se recolher ao espaço do corpo, com o deliberado propósito de viver.
O certo é que aquele que comete tão alta aventura, não faz
outra coisa senão ocultar-se da morte,
para assim vislumbrar o modo de ser da morte.

3.

O espaço que teu corpo ocupa no mundo é igual ao espaço
do corpo em que alguém se recolheu;
e se isto é assim mesmo, ninguém tem por que molestar-se ou te importunar;
no espaço de teu corpo, do qual és soberano absoluto,
podes ficar de cabeça para baixo e fazer e desfazer, e caminhar tranquilamente,
livre de um mundo de pesadelo, povoado de espectros e esqueletos que pululavam e acabavam com a tua vida.
Em todo caso, tua casa, tua cidade, tua noite e teu mundo,
se reduzem ao teu corpo;
e quem o habita não és tu, mas sim o corpo do teu corpo.
Pois o corpo que te habita, na realidade, és tu;
Acontece que teu corpo deixa de ser tu;
e passa a ser ele.
Imagine, o corpo que é teu, habitando o corpo que é ele,
e que nem por isto deixa de ser teu.
Daí o habitante, isto é, o corpo de teu corpo; e de lá,
da mesma forma, o habitado, ou seja, teu corpo.
E o que dizer da solidão profunda, habitando o espaço de teu corpo?
Há um deixar de lado a solidão, quando há alguém ao teu lado;
mas, quando não há alma, é a própria solidão que te deixa de lado
– e é como se não estivesses ali, ou como se tivesses partido,
Em busca de alguém a quem deixar de lado.
A solidão no espaço de teu corpo deve ser, então, uma
solidão muito extensa, muito alta e muito quente.
– como essa solidão que imaginamos quando criança,
com um retrato desaparecido e uma roda imóvel, no quarto escuro.

4.

O que é a noite? – Alguém se indaga hoje e sempre.
A noite, uma revelação não revelada.
Acaso um morto poderoso e tenaz,
talvez um corpo perdido na própria noite.
Na realidade, uma fundura, um espaço inimaginável.
Uma entidade tenebrosa e sutil, talvez parecida com o corpo que te habita,
e que, sem dúvida, oculta muitas chaves da noite.


*

Quando penso no mistério da noite, imagino o mistério de teu corpo,
que é apenas uma maneira de ser da noite;
eu sei de verdade que o corpo que te habita não é senão a escuridão de teu corpo;
e tal escuridão se difunde sob o signo da noite.
Nas infinidades concavidades de teu corpo existem infinitos reinos da escuridão;
e isto é algo que nos convida à meditação.
Este corpo, fechado, secreto e proibido; este corpo, alheio e terrível,
e jamais adivinhado, ou pressentido.
E é como um resplender, ou como uma sombra: só se deixa sentir à distância, no recôndito, e com uma solidão
excessiva, que não te pertence.
E se deixa sentir apenas com uma palpitação, uma temperatura,
e uma dor que não te pertencem.
Se algo me recolhe, é a imagem que me imagina, à distância;
escuta-se uma respiração em meu âmago. O corpo respira em meu âmago.
A escuridão me preocupa – a noite do corpo me preocupa.
O corpo da noite e a morte do corpo são coisas que me preocupam.


*

E eu me indago:
O que é o teu corpo? Eu não sei se alguma te indagaste o que é o teu corpo.
É um transe grave e difícil.
Certa vez eu me aproximei de meu corpo;
e havendo compreendido que jamais o tinha visto, embora o levasse às costas, lhe indaguei quem era;
e uma voz, no silêncio, me disse:
Eu sou teu corpo que te habita, e estou aqui, nas escuridões,
e sou o que te dói, o que te vive, o que morre em ti.
Porém não sou teu corpo. Eu sou a noite.


A poesia de Jaime Sáenz é uma das experiências mais audaciosas da lírica hispano-americana atual; foi apontada como contribuição notável à cultura continental no último meio século e definida como uma luta por chegar à identidade do eu consigo mesmo, à autenticidade, como esforço metafísico que quer conhecer o rumo final das coisas, ou seja, o próprio Ser.

Com efeito, para Sáenz, o ente das coisas – o ser essencial concebido pelo pensamento – é imóvel e uno. Esta unidade abarca, obviamente, tanto o objeto contemplado como o sujeito contemplativo. Na revelação do ente se produz a fusão do sujeito pensante e das coisas pensadas. O poema II de Muerte por el tacto (1957) refere-se à experiência de semelhante revelação: saberemos que tudo é o mesmo / e que, no entanto, é distinto / as coisas serão imóveis como nunca, as pessoas alcançarão uma dignidade jamais alcançada / não haverá palavras e o silencioso mundo viverá somente para ser sentido – desaparecerá a maligna diversidade e tudo será uma coisa só / para ser sentida / por um só / … / sim, tudo será uma coisa só.

Mas também o poeta reconhece que seu primeiro contato com as coisas não é outro senão através da aparência destas. Ou seja, reconhece que sua experiência não se relaciona tão-somente com as coisas pensáveis, mas também com as sensíveis. [1] Daí que recorra aos sentidos, particularmente o tato, para conhecer as coisas: os sons, as formas e as cores entrarão em ebulição e se fundirão com o mundo e contido em uma só coisa / e o tato terá absoluta, lúgubre e alegre preponderância; tudo é mobilizado pelo tato desde o princípio dos tempos.

[…]
Junto às noções de não ser e ser, não saber e saber, estão também, entre outras: vida e viver, morte e morrer, que requerem uma explicação, mesmo que breve. No poema II de Muerte por el tacto lemos: Não pode haver solidão mais irremediável que a do próprio viver. Isto não implica um fastio da vida. Em Recorrer esta distancia, publicado dezesseis anos depois, observa-se esta diferença: O que terá que ver o viver com a vida; uma coisa é o viver, e a vida é outra coisa. E em Visitante profundo já havia sido escrito este sintagma: não é necessário viver, mas é necessária a vida. Explico:

Porque viveremos sempre nos outros mesmo que não cheguemos a sabê-lo, o viver carece de importância. Viveremos sempre, porque somos essencialmente o Uno. O viver é um acidente secundário e temporal, razão porque se desqualifica perante a categoria do essencial. Mais ainda, o viver é um obstáculo para o conhecimento do Ser. Assim está dito em Recorrer esta distancia: Enquanto viva, o homem não poderá compreender o mundo; o homem ignora que enquanto não deixe de viver não será sábio. / Tem apreensão por tudo quando confina com o sábio; enquanto não pode compreender, já desconfia / – não compreende outra coisa que não seja o viver. Pelo contrário, para a concepção do Um, Vida e morte são uma mesma coisa. A vida é tão necessária como a morte. E diante da morte, o morrer tem também um valor secundário como o viver. Tanto a vida como a morte representam a possibilidade do conhecimento do essencial. Se o viver é rejeitado, o morrer também deve sê-lo. Quero a morte, porém não morrer. A sabedoria se dá tão-somente no conhecimento da vida e da morte. O poema X de Recorrer esta distancia – chave na poesia de Sáenz e que sigo citando – afirma que enquanto viva o homem não poderá compreender o mundo. E assim fundamenta sua asserção: E eu digo que se deveria procurar estar morto. / Custe o que custe, antes de morrer. Teria que fazer todo o possível para estar morto. / As águas te dizem – o fogo, o ar e a luz, com clara linguagem. Estar morto. / O amor te diz, o mundo e as coisas todas, estar morto.

[…]
Enfim, os textos poéticos de Jaime Sáenz constituem uma contribuição original e insólito à renovação da linguagem na lírica hispano-americana contemporânea. São a expressão de uma experiência que poderia ser definida como possibilidade do conhecimento da essência do ser. Implicam uma função poética de indubitável índole epistemológica. Daí que seu discurso, estruturado pela agudeza de argumentos, sofismas, paradoxos e aporias, dê lugar a uma retórica renovada: a retórica da surpresa.

OSCAR RIVERA-RODAS
“A poesia de Jaime Sáenz”, INTI Revista de Literatura Hispánica (Rhode Island, 1984)


NOTA
A leitura desses textos induz a recordar certas concepções já registradas nas etapas iniciais da história da filosofia ocidental. O conceito do Ser essencial da poesia de Sáenz mostra qualidades similares ao conceito do ente aliático dos filósofos pré-socráticos. Assim, Parmênides, partindo do abstrato (a Via da Verdade, por ele denominada) e após negar o tempo, o vazio e a pluralidade, define o Ser como o Uno, indivisível e imóvel. Porém, frente a essa argumentação realizada mediante o pensar e a razão, aponta outro recurso, a Via da Opinião, onde introduz o concreto e o mundo das aparências, prescindidos de sua anterior argumentação.

1 comentário em “5 Poemas de Jaime Sáenz (Bolívia, 1921-1985)”

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