Entre eletrochoques e bombas atômicas: a representação do mal em “Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos” de Sylvia Plath.

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por Milena Machado

Vivemos em um mundo dominado por uma atmosfera indizível, que faz parte do nosso cotidiano. Vivemos sob sua influência desde os primórdios da existência humana, é algo intrínseco da nossa condição como seres humanos. É incontrolável e estamos sempre suscetíveis a cometê-lo e sofrer com ele. Poderíamos apontar inúmeras fontes desse espectro terrível, mas nunca saberíamos ao certo como descrevê-lo e o motivo de sua existência. Afinal, são muitas as teorias que se debruçam em tentar explicar aquilo que chamamos de mal, como por exemplo, Bauman (2013) e seu mal líquido, Kant e seu mal radical, Arendt e sua banalidade do mal e Freud (2011) com seu mal-estar.

Cada uma dessas teorias consegue condensar boa parte do que poderia se definir como o mal, mas não são completamente capazes de abarcar com a sua imensidão, pois ele pode ser muitas coisas, pode derivar de diferentes lugares e pode mudar de significado para quem pratica ou sofre o mal. O que podemos afirmar com certeza, é que o mal é terrível, ele está em toda parte e não há como escapar dele.

Sylvia Plath, uma das maiores escritoras norte-americanas da era pós guerra, possuía uma obra quase que inteiramente centrada em temas que derivam do mal. O universo plathiano é repleto de referências ao suicídio, terapias com eletrochoque, opressão do ambiente hospitalar, solidão feminina e a ansiedade de ser jovem em um mundo pós guerra dominado pelo mal. O que torna a mitologia criada por Plath tão singular é o fato de que ela escrevia o que vivenciava, sendo quase impossível não associar a sua vida pessoal com o teor de sua obra. A escritora fazia questão de anotar suas vivências e tudo o que via ao seu redor na esperança de que algo servisse de inspiração para a criação de suas histórias.

Infelizmente, Plath foi engolida pelo mal do mundo e morreu acreditando que seu trabalho era medíocre. Ela foi um dos inúmeros gênios de nosso mundo cujo trabalho só foi explorado depois da morte, pois houve uma urgência para satisfazer o interesse do público sobre aquela mulher que se matou inalando gás butano, e só então, sua poesia, sua prosa e seus diários foram publicados.

No capítulo em que fala sobre o mal na obra de Emily Brontë, George Bataille (2017) afirma que a autora romântica “morreu por ter vivido os estados que descreveu” (BATAILLE, 2017, p 19) em sua personagem Catherine Earnshaw de O Morro dos Ventos Uivantes. É possível aplicar esse mesmo raciocínio à obra de Sylvia Plath como um todo. Seus contos, seu romance e seus poemas eram voltados para a realidade da escritora, sendo possível ver um perfeito retrato do peso e do mal de ser mulher no século XX em seus escritos.

A infância de Sylvia Plath foi vivida no meio do caos da Segunda Guerra Mundial, com treinamentos de evacuação na escola, ela logo se viu tendo que lidar com a morte e o medo desde muito nova. A perda precoce da inocência e a constante exposição às consequências do mal causado pela guerra, iriam causar uma angústia irreversível no espírito da autora, pois, como afirma Bataille (2017), “há o Mal assumido gloriosamente, como faz a guerra, em condições que se revelam irremediáveis”. Filha de pai alemão e mãe americana descendente de pais austríacos que falavam alemão, Plath ouvia atentamente aos relatos de sua mãe sobre o ostracismo que sofreu por parte da comunidade norte-americana em sua infância, por ser falante de alemão e, portanto, associada aos nazistas, como relata Julie A. Tovey (2000):

Quando criança, durante o período que levou à eclosão da Segunda Guerra Mundial, Plath ouvia atentamente o relato de sua mãe sobre “como me sentia isolada no recreio enquanto estava sozinha em um canto do pátio da escola”, sendo capaz de falar apenas alemão. Ela também absorveu os relatos vívidos de sua mãe sobre o período durante a Primeira Guerra Mundial, quando “nosso nome Schober, com seu som alemão, resultou em que eu fosse ostracizada pela ‘gangue’ da vizinhança, chamada de ‘cara de espião’, e uma vez em que eu fui empurrada nos degraus do ônibus escolar e caí no chão, enquanto isso, o motorista do ônibus apenas continuou olhando para frente e foi embora. (TOVEY, 2000, p. 150)

Esse relato da mãe de Plath, corrobora com a visão de Bauman (2013) sobre os efeitos que o mal tem sobre as pessoas. Ele diz que a nossa sociedade dominada pelo mal líquido acabou se tornando “famosa pela falta de hospitalidade para as pessoas boas e decentes.” (BAUMAN, 2013, p 52). Com isso, Sylvia Plath viu com seus próprios olhos o “sonho americano” se tornar pesadelo.

Além de ter que lidar com a falta de empatia das pessoas gerada pela guerra, Plath também teve que lidar com uma depressão grave durante boa parte de sua vida.  A escritora havia sido diagnosticada com depressão depois de uma tentativa de suicídio, e submetida a diversas sessões de terapia com eletrochoque.

O tratamento chamado de eletroconvulsoterapia foi criado em 1938 como um tratamento para algumas doenças mentais como a depressão e a esquizofrenia. Com o tempo, o tratamento concebido por psiquiatras acabou servindo como instrumento de tortura em regimes de países autoritários, como foi o caso do nazismo alemão e da ditatura militar brasileira, que utilizaram os eletrochoques para arrancar confissões e causar danos permanentes em seus torturados. Em 1953, no auge da Guerra Fria, o casal de judeus estadunidenses, Julius e Ethel Rosenberg, foram mortos por choque elétrico pelo governo dos EUA. O governo acreditava que o casal eram espiões infiltrados no país para transmitir informações sobre a bomba atômica para a União Soviética.

Nos anos 50, os Estados Unidos eram dominados por um sentimento paranoico de perseguição comunista, que começou com a União Soviética construindo uma bomba atômica de enorme escala similar àquelas que eles haviam jogado em Hiroshima e Nagasaki. Isso colocou abaixo o sentimento de segurança do país, pois eles acreditavam que a União Soviética só seria capaz de lhes ultrapassar se espiões estivessem infiltrados para roubar o segredo de sua bomba atômica. O sentimento de vulnerabilidade, medo do outro e da morte, somados às sequelas da guerra, tomou conta do país inteiro e, assim, a psicose coletiva estava instalada.

O medo também está associado à ideia de mal, pois são os males causados por outros seres humanos que nos fazem sentir medo. Não sabemos quem são nossos amigos ou inimigos e vivemos com uma sensação de ameaça iminente. O século XX foi permeado por guerras quase ininterruptas que quebraram de vez com a concepção maniqueísta de bem e mal, vimos o quão alto os níveis de maldade do ser humano pode chegar, e o que nos aterroriza, é saber que essa maldade não atingiu o seu limite.

O medo, portanto, surge da ‘falta de defesa’, como afirma Frattari (2008), em um ensaio sobre o medo líquido:

As ações defensivas estimuladas pela insegurança e incerteza que permeiam a vida moderna fazem com que as ameaças sejam percebidas como próximas e tangíveis. Assim, cada muro construído, cada barreira imposta, cada chave extra, como resposta aos rumores da iminência dos perigos, faz o mundo parecer cada vez mais aterrorizante, instigando novas medidas defensivas e, consequentemente mais medo, o que se torna um ciclo vicioso. (FRATTARI, 2008, p. 398)

O medo nos faz entrar em um ciclo vicioso de maldades que passam despercebidas pela maioria pois elas vêm disfarçadas até nós como um ato de defesa coletiva. Podemos citar o caso dos Rosenberg ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­ judeus estadunidenses executados na cadeira elétrica em uma sociedade recém “livre” do nazismo ― como um exemplo de como o mal corrói a memória da humanidade e faz com que nunca aprendamos com nossos erros. A execução dos Rosenberg foi algo que afetou significativamente o espírito de Sylvia Plath, afinal, ela possuía pais que foram chamados de espiões pela comunidade estadunidense e o método utilizado para matá-los era o mesmo que usavam para tratar sua doença. A diferença, é que usavam nela uma voltagem menor e não letal, mas, ela não conseguiu deixar de ser afetada pela morte do casal e perceber que o país que serviu de abrigo para seus pais era o mesmo que perseguia e executava pessoas estrangeiras em nome da segurança nacional.

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Era nesse mundo caótico que Sylvia Plath viveu e, através da literatura, ela foi capaz de nos transmitir todo o mal que rondava aquela sociedade e a angústia de seu espírito. Plath encontrou na literatura um meio de expressar seus estados de arrebatamento causados pelo contato constante com a morte. Bataille (2017), diz que são esses estados de arrebatamento que fundam a emoção literária, ele as nomeia de “experiência mística” e diz que somente a poesia e a descrição das condições através da literatura poderia dar conta dela.

É sempre a morte ― ou, ao menos, a ruína do indivíduo isolado à procura da felicidade na duração ― que introduz a ruptura sem a qual ninguém chega ao estado de arrebatamento. O que é encontrado nesse movimento de ruptura e de morte é sempre a inocência e a embriaguez do ser. O ser isolado se perde em outra coisa que não ele. Pouco importa como essa “outra coisa” é representada. Trata-se sempre de uma realidade que supera os limites comuns. (BATAILLE, 2017, p. 23)

Assim, ao optar por usar a literatura como instrumento de expressão do espírito de sua época, Plath assume a posição de escritora engajada. Em “Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos”, a narradora do conto, que não possui nome, revela que escrever os sonhos dos pacientes do hospital em sua bíblia dos sonhos era a sua verdadeira vocação. Aqui, percebemos que Sylvia usa a voz da personagem para comentar sobre a verdadeira vocação do escritor, que é narrar os medos e as ansiedades da sociedade de seu tempo. Segundo o pensamento de Sartre (2004, p 21), podemos dizer que é responsabilidade do escritor tomar uma posição em relação ao mundo, possuir engajamento político e comunicar sobre a realidade que nos cerca. Nas palavras do filósofo, “o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade.” (apud ARAÚJO, LEITE, 2015, p. 118)

A representação do mal em “Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos”

Em “Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos”, Sylvia Plath cria uma entidade sobrenatural como alegoria representativa do mal que assolava sua época ― a sociedade pós guerra norte americana da metade do século XX. O conto foi escrito no ano de 1958 ― cinco anos após a execução dos Rosenberg e cinco anos antes da morte de Plath ―, e conta a história de uma secretária-assistente do departamento psiquiátrico de um hospital, cuja função é anotar os sonhos dos pacientes que vão até a clínica em busca de tratamento para suas perturbações mentais. Muitos dos sonhos descritos pelos pacientes neste conto foram registrados pela própria Sylvia Plath quando ela foi datilógrafa na seção psiquiátrica do Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, durante o outono de 1958.

Ao incorporar estudos de caso reais registrados durante seu emprego no Hospital Geral de Massachusetts, Plath afirma a especificidade histórica e cultural dos medos e ansiedades que ressurgem nos pesadelos dos pacientes e, portanto, a maneira como eles representam a repressão coletiva de medos culturalmente difundidos. (TOVEY, 2000, p. 33)

Podemos, então, supor que Plath estava diariamente em contato com pessoas dominadas por Johnny Panic, e até ela mesma foi dominada por ele inúmeras vezes. A entidade descrita como Johnny Panic que governa o mundo todo descrita pela narradora, pode ser considerada como uma alegoria ao pânico que dominava a sociedade norte-americana no contexto pós segunda guerra mundial. Nas primeiras linhas do conto, somos apresentados aos elementos que constituem a entidade Johnny Panic: o pânico (como seu nome já diz), o medo e o mal.

Bem, daqui do meu lugar, concluí que o mundo é governado por uma coisa só. O pânico com cara-de-cão, cara-de-diabo, cara-de-bruxa, cara-de-puta, o pânico com letras maiúsculas que nem cara tem — é sempre o mesmo Johnny Panic, seja acordado ou adormecido. (PLATH, 2020, p. 19)

Johnny Panic possui várias faces, assim como o medo, que se transforma naquilo que consideramos mais perigoso, naquilo que pode ser mais prejudicial à nossa existência. No contexto da metade do século XX, era o Outro, o estrangeiro que ocupava a maior fonte de temor na sociedade e no governo norte americano. As pessoas que transgrediam as normas daquela sociedade eram imediatamente consideradas como uma ameaça. Assim como o medo, Johnny Panic é uma entidade sem explicação.

 O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito. (BAUMAN, 2008, p. 8, apud FRANÇA, 2011, p. 61)

No conto também é destaque o mal-estar sentido pelo homem pós-industrial perante as inovações tecnológicas que, em tese, deveriam ser uma fonte de segurança e conforto. O sonho em que os pacientes são esmagados por máquinas nos mostra que a civilização falhou na sua promessa de conforto e segurança para a humanidade. Em vez de sentir segurança, somos aterrorizados por sua presença que nos indica o tempo todo o quanto somos vulneráveis.

“Hoje em dia muitas pessoas sonham que são esmagadas ou devoradas por máquinas. São aquelas figuras que não andam de metrô nem de elevador. Quando volto do meu horário de almoço no refeitório do hospital, muitas vezes passo por elas, ofegantes, subindo as escadas encardidas para chegar ao nosso consultório no quarto andar. Às vezes me pergunto que sonhos as pessoas tinham antes de os rolamentos e os moinhos de algodão serem inventados.” (PLATH, 2020, p. 21)

Em O mal-estar na civilização, Freud (2011) afirma que nosso sofrer é originado a partir de três lados: do nosso próprio corpo, pois sabemos de seu declínio e vulnerabilidade perante a dor e o medo; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas e destruidoras, como é caso da bomba atômica; e, por fim, das relações com os outros seres humanos, como por exemplo, a relação traumática com a nossa família, uma instituição que existe para nos amar e proteger, mas que na maioria das vezes é a maior causa do nosso sofrer. (FREUD, 2011, p. 20)

É o conhecimento da vulnerabilidade de nosso próprio corpo e o medo da morte que nos faz temer a tecnologia. Sendo assim, a origem de nossa miséria se origina naquilo que chamamos de civilização:

Seríamos bem mais felizes se a abandonássemos [a civilização] e retrocedermos a condições primitivas. A asserção me parece espantosa porque é fato estabelecido — como quer que se defina o conceito de civilização — que tudo aquilo com que nos protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização. (FREUD, 2011, p. 31)

Ou seja, criamos a bomba atômica para nos proteger, mas, ao mesmo tempo, acabamos por criar outra fonte de aflição ainda maior. E é neste espiral pandemônio que se encontra o que chamamos de civilização, a causa do nosso sofrer.

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Pode-se notar que o conto gira em torno do universo do sonho, como o próprio título já pode indicar. Em um trecho do conto a narradora faz menção a “colecionadores de sonhos de olhos fundos e barba cheia que vieram antes de mim” (PLATH, 2020, p 31), indicando uma referência ao trabalho de Freud sobre o campo onírico dos sonhos. Para Freud (2019), os sonhos são resultados de desejos reprimidos que tentamos ocultar e que nosso consciente continua a manifestar. Ou seja, tudo aquilo que reprimimos fica guardado no nosso consciente, e pode continuar a nos afetar através dos sonhos, pois “o sonho jamais se ocupa de miudezas; não permitimos que algo trivial perturbe nosso sono.” (FREUD, 2019, p. 252). A narradora também possui um sonho que é só dela. Quase todas as noites ela sonha com um lago que chama de “estação de tratamento de esgoto da história do mundo”, e é para esse lago que vão os sonhos de todas as pessoas do mundo.

Agora a água desse lago se tornou fedorenta e fumegante, é evidente, graças aos sonhos que ficaram abandonados ali, juntando água por tantos séculos [..] A essa altura já vejo a superfície do lago repleta de cobras, cadáveres inchados como baiacus, embriões humanos boiando em frascos de laboratório, como tantas mensagens inacabadas do grande Eu Sou. (PLATH, 2020, p. 23)

Vemos que a narradora possui um sonho tão terrível quanto os dos pacientes de quem ela anota os sonhos. Por trabalhar em um hospital, ela convive todos os dias com visões de morte, cadáveres sendo dissecados e órgãos fora dos corpos, sendo assim, não é totalmente estranho que esses elementos povoem seus sonhos durante a noite. O que para a maioria das pessoas é algo estranho, para a narradora, é apenas mais um dia. Ela sonha com um lago grotesco onde as pessoas despejam seus desejos e medos ocultos que só o inconsciente é capaz de revelar e é nesse lago que flutua o mal que assola a humanidade desde o inicio dos tempos.

Podem chamar a água do que quiserem, Lago Pesadelo, Brejo da Loucura, mas é aqui que as pessoas adormecidas se deitam e se reviram juntas em meio aos acessórios de seus piores sonhos, numa grande irmandade, embora cada uma delas, quando acordada, veja a si mesma como singular e completamente isolada. (PLATH, 2020, p. 23)

Se consideramos a ideia do sonho como a realização de um desejo, podemos dizer que o sonho da narradora é seu desejo oculto de ver a humanidade mergulhada em seus medos, mas não no sentido negativo. Para a narradora, deveríamos deixar de lado o individualismo e lidar com nossos medos, juntos, como uma irmandade, em vez de negar que eles existem. Pois eles existem, pois mais terríveis que sejam, e nos afastam uns dos outros porque a guerra nos ensinou que não devemos confiar e nem ser solidários uns com os outros. E assim, o mal continua a nos separar, como afirma Bauman (2019):

O mal está à espera e à espreita nos incontáveis buracos negros de um espaço social profundamente desregulamentado – em que a competição feroz e o estranhamento mútuo substituíram a cooperação e a solidariedade, enquanto a individualização forçada solapa o poder aglutinador dos vínculos inter-humanos. (BAUMAN, 2019, p. 44)

Sendo assim, a tarefa incansável da narradora em anotar na sua bíblia de sonhos todos aqueles sonhos terríveis, mostra uma atitude singular de solidariedade, de percepção do outro e de não sentir medo do lado obscuro do ser humano. E assim, ela fica ainda mais obcecadas com os sonhos das outras pessoas, por ter a oportunidade de mergulhar no desconhecido da mente humana.

Os sonhos são parte íntima de um indivíduo que podem revelar algo obscuro de nosso ser, porque “sempre deparamos com temas sobre os quais não gostamos de falar ou pensar”. (FREUD, 2019, p. 225). E em cada esquina do sonho que anota em sua bíblia de sonhos, ela percebe a presença de Johnny Panic ― o mal.

Seja qual for o sonho que desenterrar com meu esforço, um esforço exaustivo, e até com uma espécie de oração, já sei que vou encontrar uma impressão digital num canto, um detalhe zombeteiro mais à direita, um sorriso de Gato Risonho incorpóreo que levita, o que evidencia que tudo isso foi trabalho do gênio de Johnny Panic, e de ninguém mais. Ele é ardiloso, ele é arguto, ele é rápido como um raio, mas se revela com mais frequência do que deveria. É que ele não resiste ao melodrama. Melodrama da espécie mais antiga e mais óbvia. (PLATH, 2020, p. 25)

A narradora é como uma espécie de “Alice no País dos Sonhos” quando está anotando os sonhos dos pacientes em sua bíblia, e toda vez que ela cai bem fundo, ela encontra Johnny Panic flutuando como o Gato Risonho. E assim, ela sabe que nenhum indivíduo está imune às mazelas daquele mundo quebrado, com uma constante percepção de que se vive em um mundo dominado pelo mal, com guerras sucessivas e constantes ascensões de governos totalitários. Assim como Johnny Panic, o mal é esquivo e quase impossível de ser combatido por conta de sua característica irracional. Apesar de convivermos com ele nos assombrando, nunca sabemos ao certo dizer a fonte de seu surgimento com exatidão, afinal, essa fonte pode jorrar de muitos lados.

O mal encontrou abrigo nas costuras da lona tecida diariamente pelo modo líquido moderno de interação e comércio humanos, no próprio tecido da convivência humana e no curso de sua rotineira reprodução cotidiana. Em seus atuais esconderijos, o mal é difícil de localizar, desmascarar, remover e evacuar. Ele pula fora sem avisar e atinge aleatoriamente, sem uma explicação racional. O resultado é um ambiente social comparável a um campo minado, que sabemos estar cheio de explosivos e no qual temos toda a certeza de que mais cedo ou mais tarde ocorrerão explosões, embora sejamos incapazes de inferir quando e onde. (BAUMAN, 2019, p. 44)

Perto de seu desfecho, o conto vai sutilmente tirando seus pés da realidade e a colocando em suspensão. Como uma forma de acalentar sua obsessão com sonhos, a narradora decide passar a noite no hospital para anotar os sonhos que constam em livros grossos e antigos da clínica. Claro que se trata de uma atividade ilegal, pois ela não tem autorização para mexer nestes registros. Enquanto ela está lá lendo e anotando sobre sonhos macabros que incluem cabeças de mães decepadas, sua atividade é interrompida por um ar gelado que toca sua nuca e a irradiação de uma luz azul que indicam o surgimento do fantástico na narrativa.

Toda narrativa fantástica estabelece um pacto ficcional com o leitor desde o começo, aceitamos sem questionar tudo o que o narrador-personagem (nesse caso, a narradora homodiegética) nos conta, e situa as narrativas em ambientes iguais ao do mundo real, do mundo do leitor (nesse caso, o hospital psiquiátrico), com todas as leis imutáveis da realidade que conhecemos. O que vai transgredir essas leis da realidade é justamente a aparição do sobrenatural na narrativa, pois a literatura fantástica é o único gênero literário que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural. O fato de Sylvia Plath ter trabalhado nesta mesma função em uma ala psiquiátrica colabora ainda mais para fortalecer a verossimilhança da narrativa. E é da verossimilhança que o fantástico necessita, só para depois desfazê-la em pedaços junto com as nossas convenções.

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Propriamente, algo que tem um efeito de infamiliar frequente e facilmente alcançado quando as fronteiras entre fantasia e realidade são apagadas, quando algo real, considerado como fantástico, surge diante de nós, quando um símbolo assume a plena realização e o significado do simbolizado e coisas semelhantes. (FREUD, 2019, p. 67)

Ou seja, o infamiliar (ou o estranho) é sempre o efeito que uma narrativa fantástica desperta no leitor. Quando a narradora percebe a estranheza no ar, já é tarde demais. Ela é encontrada por um homem que ela crê ser o diretor clínico ― mas não é possível saber ao certo sua identidade, tudo não passa de suposição ― e levada para além dos corredores, ela não sabe o que a espera e nem nós leitores sabemos, pois estamos vendo tudo sob seu ponto de vista. Estamos vendo a realidade se desfazendo juntamente com ela, até chegar em um ponto em que tudo se assemelha ao um sonho, tudo é infamiliar quando atravessamos a fronteira do real junto com a narradora. Finalmente, ela é capturada por “sacerdotes com jalecos cirúrgicos brancos e máscaras cujo único objetivo é destituir Johnny Panic de seu trono.” (PLATH, 2020, p. 39). Os tais sacerdotes trazem uma caixa de metal com fios elétricos, mostradores e medidores, à qual a narradora chama de “Assassina-de-Johnny-Panic.” É aqui que percebemos, com terror, que ela está prestes a ser submetida à uma sessão de eletrochoque.

A narrativa chega a um ponto em que não conseguimos ter certeza se o que está acontecendo é realidade ou fantasia. Não somos capazes de dizer se a narradora está mesmo acordada ou tendo um pesadelo como o do lago. De qualquer forma, a descrição da situação é nauseante e desesperadora:

Me fazem ficar de barriga para cima, estendida na maca. A coroa de arame é colocada sobre a minha cabeça e a hóstia do esquecimento sobre minha língua. Os sacerdotes mascarados se colocam a postos e imobilizam: um na minha perna esquerda, outro a direita, um meu braço direito, outro o esquerdo. Um atrás da minha cabeça diante da caixa de metal, onde não consigo ver. (PLATH, 2020, p. 39)

Logo em seguida, os sacerdotes que a capturaram começam a entoar um canto devocional a Johnny Panic:

A única coisa que se pode amar é o próprio Medo.

O amor ao Medo é o início da sabedoria.

A única coisa que se pode amar é o próprio Medo.

Que o Medo e o Medo e o Medo estejam por toda parte.

O medo é o resultado do Mal, e em uma sociedade que vive com o medo onipresente, que nos afasta cada vez mais um dos outros e tira nossa humanidade, acabamos julgando que o medo é uma forma de defesa contra o outro que vai sempre representar um perigo à nossa integridade. E assim, em vez de amor e solidariedade, continuamos a disseminar o medo por toda parte. Acabamos por ser todos eternos sacerdotes de Johnny Panic.

No momento em que penso estar perdida, o rosto de Johnny Panic aparece numa auréola de lâmpadas e arco lá no teto. Estremeço como uma folha nos dentes da glória. A barba dele é relâmpago. O relâmpago está em seu olho. A sua Palavra liberta a descarga elétrica e ilumina o universo. O ar crepita com seus anjos de língua azul e halo de raio. Seu amor é o salto de vinte andares, a corda no pescoço, a faca no coração. Ele jamais esquece os seus.” (PLATH, 2020, p. 39-40)

Não saberemos dizer se ela estava alucinando, tendo um pesadelo ou realmente vivenciando aquilo. Pois o propósito de uma narrativa fantástica é ser ambígua, sempre deixar a dúvida pairando com o leitor mergulhado em confusão, e o conto de Sylvia Plath cumpre este propósito.

Sylvia Plath usou o fantástico estranho para relatar os horrores de seu tempo, que ela mesma sentiu na pele, pois este gênero tem uma estreita relação com as teorias e crenças de uma época. Como bem aponta David Roas (2014), pontuando O Infamiliar de Freud (2019) em A ameaça do fantástico:

A literatura fantástica traz à luz da consciência realidades, fatos e desejos que não podem ser manifestos diretamente porque representam algo proibido que a mente reprimiu ou porque não se encaixam nos esquemas mentais em uso e, portanto, não são passíveis de racionalização. E faz isso da única maneira possível, por via do pensamento mítico, encarnado em figuras ambíguas tudo aquilo que em cada época ou período histórico é considerado impossível (ou monstruoso). (ROAS, 2014, p. 91-92)

A literatura fantástica utiliza os monstros e os fantasmas para representar o horror presente na nossa realidade. Ela lida com os tabus de uma época e por isso é incômoda. Sylvia Plath compreendeu isto ao construir uma narrativa onde abordou sobre saúde mental, a crueldade dos tratamentos com eletrochoque e o pânico pós-guerra, que eram assuntos extremamente interditos naquela época e fonte de grande sofrimento. Assuntos que as pessoas preferiam ignorar, mas que nem por isso deixavam de existir. Eles estavam lá, latejando.

As fronteiras existem para manter medida e ordem; qualquer transgressão desses limites causa desconforto e requer que retornemos o mundo ao estado que consideramos ser o certo. O monstro é um estratagema para rotular tudo que infringe esses limites culturais. (JEHA, 2009, p. 20)

Sylvia Plath trabalhava em sua escrita com afinco e “Johnny Bible e a Bíblia dos Sonhos” é um dos contos que representa a dedicação da escritora. A escritora imprimiu sua alma neste e em outros de seus contos, assim como fez com suas poesias. Vemos aqui a sua preocupação em não somente relatar sobre suas vivências pessoais, mas também as de outras pessoas, afinal, todos acabam por respirar o mesmo medo que paira no ar e todos nós somos visitados por Johnny Panic durante a noite.

***

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Rafael de; LEITE, Viana. Filosofia e literatura: diálogos, relações e fronteiras. Curitiba: Intersaberes, 2015.

BATAILLE, George. A literatura e o mal. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Mal líquido: Vivendo num mundo sem alternativas. São Paulo: Zahar, 2013.

FRANÇA, Júlio. O medo como prazer estético: o insólito, o horror e o sublime nas narrativas ficcionais. Insólito, mito, lendas, crenças, Rio de Janeiro, 7 abr. 2011.

FRATTARI, Najla Franco. Insegurança e medo no mundo contemporâneo: uma leitura de Zygmunt Bauman. Sociedade e Cultura, Goiás, 17 jul. 2008.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

____O Infamiliar. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

____O mal-estar na civilização. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ISBN 9788563560308.

JEHA, Julio. Da Fabricação de Monstros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

PLATH, Sylvia. Johnny Panic e a Bíblia dos Sonhos: e outros textos em prosa. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2020.

ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

TOVEY, Julie A. Bible Of Dreams: the cultural work of Sylvia Plath‘s short fiction. 2000. Tese (Doutorado em Filosofia) – University of London, Londres, 2000.

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