.Mais leituras de Jack Kerouac

| |

CLAUDIO WILLER (SP) É poeta, ensaísta e tradutor. Nasceu em São Paulo (1940). Tem vínculos com a criação literária mais rebelde e transgressiva, como aquela representada pelo surrealismo e geração beat. Doutor em Letras na USP, tem diversos livros publicados de poesia, prosa, ensaios, traduções. Mantém um excelente blog: https://claudiowiller.wordpress.com/


Após publicar ensaio, dá vontade de prosseguir, escrever mais. O que vem a seguir foi provocado por meu recente Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (L&PM, 2014).

Jack Kerouac estimulou incontáveis seguidores a viajar, após o sucesso de On the Road, lançado no final de 1957. No entanto, conforme observei recentemente, sua obra é predominantemente memorialística. Nenhuma das alusões de Kerouac a Proust é inocente ou casual. Ele e seu parceiro Neal Cassady levavam, nas viagens relatadas em On the Road, algum volume de Em busca do tempo perdido na mochila ou no bolso, conforme, aliás, corretamente registrado na recente adaptação da narrativa pelo cineasta Walter Salles. Mencionou-o em várias passagens, inclusive no prefácio de Visões de Cody: “Minha obra encerra um livro de vastas proporções como Em busca do tempo perdido, de Proust, com a diferença que as minhas memórias são escritas na correria em vez de mais tarde doente numa cama”.

Ele mentia. Escreveria Vanity of Duluoz em 1967, já prostrado, às vésperas da morte prematura provocada principalmente pelo alcoolismo. E sua memorialística de infância e juventude, parte substanciosa de sua obra, que inclui Doctor Sax, Maggie Cassidy e Visions of Gérard, evidentemente não foi escrita in loco. Em Anjos da desolação, o extenso relato no qual, ao final, anuncia sua decisão de isolar-se, retirando-se do movimento beat após a repercussão de On the Road, relata o presente, a experiência imediata. Especialmente na primeira parte, a prosa poética no diário de seu isolamento por dois meses no Desolation Peak como guarda florestal, em busca da cura de seu alcoolismo e da percepção da divindade:

Quando eu chegar ao topo do Desolation Peak e todo mundo for embora de mula e eu ficar sozinho eu vou ficar cara a cara com Deus ou Tathagata e descobrir de uma vez por todas qual é o significado de toda essa existência de todo esse sofrimento e de todo esse vaivém inútil.

Ao mesmo tempo, rememora. Uma dessas rememorações já foi citada por mim em Os rebeldes, chamando a atenção para seu caráter reflexivo, a dupla relação com o tempo. Toma chá; lembra-se de um restaurante chinês no qual tomara chá:

Então eu entro no restaurante, peço um prato do cardápio chinês e no mesmo instante eles me servem peixe defumado, curry de frango, bolinhos de pato incríveis, delicadas travessas prateadas (com suporte) inacreditavelmente deliciosas cheias de maravilhas fumegantes que você tira a tampa e olha e cheira – com um bule de chá, a xícara, ah, eu como – e como – até a meia-noite – talvez então enquanto tomo chá eu escreva uma carta para a minha amada Mãe, contando para ela – depois de pronto, ou eu vou para a cama ou para o nosso bar, o The Place, para encontrar o pessoal e encher a cara… (Kerouac 2010, p. 56)


Tomar chá e lembrar-se: com o acréscimo de um biscoito molhado no chá, compõe uma das mais famosas passagens da literatura moderna, aquela do primeiro volume de Em busca do tempo perdido, À la récherche du temps perdu de Proust, Du coté de chez Swann. O narrador e protagonista toma chá e mordisca a madeleine; experimenta um estado “desconhecido”; sente “algo se despertar”; e “de repente, a lembrança me aparece”. Ultrapassa a transitoriedade do momento: “o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como as almas a recordar, a esperar, a aguardar, sobre a ruína de tudo o que permanece”. Penetra no “edifício imenso da lembrança”. Contudo, a comparação de Kerouac com Proust mostra uma relação reflexiva, especular: tomar chá o faz lembrar de tomar chá. É como se evocasse a própria memória. A lembrança o remete a um símbolo da lembrança. Lembrança do que? Kerouac responde, em outra passagem desse livro: de outro tempo. Em contraste com o presente, que designa como “insondável horror”, em um trecho de prosa poética especialmente vigorosa, “Só o que eu lembro é que antes de eu nascer existia alegria.” Platão? Certamente: “Númemos são o que você vê de olhos fechados, a cinza dourada imaterial, Ta, o Anjo Dourado – Fenômenos são o que você vê de olhos abertos […]” Duas realidades; esta do presente é falsa, como no mito da caverna.

O preço pago por Kerouac pelo impacto de sua obra foi o massacre pela crítica. Porém, recentemente têm saído ensaios de qualidade, observando sua complexidade. Estudiosos chamam a atenção para sua ambivalência. Ao longo de On the Road, viaja e não viaja; está e não está; chega para ir embora. Já foi observado que são viagens “erráticas e intermitentes”. Começa por um roteiro impossível: tenta seguir de carona pela Rota 6, que constava no mapa mas deixara de ser usada:

Eu tinha ficado delirando em cima de mapas dos Estados Unidos durante meses, em Paterson, e até lendo livros sobre pioneiros e saboreando nomes instigantes como Platte e Cimaron e tudo o mais, e no mapa rodoviário havia uma longa linha vermelha chamada Rota 6 que conduzia da ponta do Cabo Cod direto a Ely, Nevada, e daí mergulhava em direção a Los Angeles.

Por confundir símbolos e realidade, é obrigado a começar de novo; a retornar e seguir para Chicago de ônibus, para só então pegar caronas. Essa abandonada Rota 6 é um caso particular da rede rodoviária pela qual Kerouac circulara. Toda ela foi substituída por estradas não só modernas e funcionais, porém homogêneas, padronizadas, além de atenderem a razões estratégicas no contexto da Guerra Fria. Isso foi observado por viajantes que refizeram o trajeto de Kerouac, como Eduardo Bueno, seu tradutor brasileiro; e, mais recentemente, pelo cineasta Walter Salles, que em entrevistas apontou a substituição da rede rodoviária como dificuldade na realização da sua adaptação de On the Road. Dentre os vagabundos encontrados por Kerouac em On the Road, um espécime particularmente miserável é o “fantasma de Susquehanna”, com quem percorre 11 quilômetros a pé no difícil retorno do primeiro ciclo de viagens e que “caminhava direto pela estrada no sentido contrário ao tráfego e quase foi atropelado várias vezes”. Perdeu a orientação espacial e já não sabe mais para onde vai:

“Escute aqui, amigo, você está na direção do Oeste e não do Leste.” “Hein?”, disse o minúsculo fantasma. “Não venha me dizer que não conheço os caminhos daqui. Tenho andado por este país faz anos. Estou indo em direção ao ‘Canady’. “Mas esta não é a estrada para o Canadá, esta estrada vai para Pittsburgh e Chicago.” O velhinho, desgostoso conosco, pôs-se em marcha. O último vestígio que vi dele foi o balanço de sua lúgubre sacola branca dissolvendo-se na escuridão dos lúgubres Alleghanies.

Já tomei o trecho como metáfora das viagens do próprio Kerouac, de seus deslocamentos para não chegar a lugar algum. O “fantasma de Susquehanna” é um símbolo forte; segue na direção errada; viaja ao contrário, espacialmente. Kerouac também viaja ao contrário; porém no tempo, por almejar a reversão do devir. Por essa ser impossível, todas as suas viagens terminam em derrotas e fracassos. A mais evidente é aquela ao México: terra prometida, paraíso habitado por índios do qual é obrigado a retornar.

Três livros de Kerouac devem ser lidos como se fossem volumes da mesma obra, etapas de uma extensa narrativa de viagens: On the Road, Vagabundos iluminados (The Dharma Bums) e Anjos da desolação. A primeira termina com um fracasso, após ser abandonado por Cassady no México e, de volta a Nova York, por sua vez abandoná-lo,: procura dar sentido à narrativa e às viagens nela relatadas:

[…] e você não sabe que Deus é a Ursa Maior? E a estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria antes da chegada da noite completa que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice, eu penso em Dean Moriarty; penso até no velho Dean Moriarty, o pai que jamais encontraremos; eu penso em Dean Moriarty.

É um trecho dualista, que expõe o pessimismo de Kerouac. Deus – o Setentrião, Ursa Maior, em oposição à Estrela da Manhã, símbolo clássico, inclusive bíblico, de Lúcifer – morreu, abandonou o mundo. O pai jamais será encontrado, em nenhuma das acepções do termo: o pai de Cassady, desaparecido; o pai do próprio Kerouac, morto; Deus, pai de todos, se foi; a origem procurada nas viagens não será recuperada. Vagabundos iluminados poderia chamar-se “O retorno do viajante”. É eufórico. Relata o momento em que a Geração Beat acontece, vem a público, através da leitura na Six Gallery em San Francisco, em 1955. Faz novas amizades: os poetas Gary Snyder e Philip Whalen. Messiânico, proclama Isso é ilustrado pelo trecho de Os vagabundos iluminados, atribuído por Kerouac a Snyder (“Japhy Rider” no livro), com sua profecia de uma revolução de jovens de mochila às costas:

Pense na maravilhosa revolução mundial que vai acontecer quando o Oriente finalmente encontrar o Ocidente, e são caras como nós que podem dar início a essa coisa. Pense nos milhões de sujeitos espalhados pelo mundo com mochilas nas costas, percorrendo o interior e pedindo carona e mostrando o mundo como ele é de verdade para todas as pessoas. […] eu quero que meus vagabundos do Darma carreguem a primavera no coração […]

Mais tarde, criticaria repetidas vezes os hippies inspirados nos beats e não os aceitaria como seguidores, argumentando faltar-lhes substância espiritual. Mas o trecho citado é programático: os hippies foram seus “vagabundos do Darma”, tentando realizar essa “maravilhosa revolução mundial”. E o título do livro, The Dharma Bums, condensa a mística da adesão à marginalidade: sendo vagabundos, estavam conectados ao Darma, uma lei universal ou ordem cósmica.

O resultado são páginas de exuberante poesia em prosa, celebrando a natureza, muito bem examinadas por Regina Weinreich no prefácio do Livro de haicais: dentro dos longos parágrafos de extensas frases, embutidos, estão os poemas tradicionais japoneses. Prepara-se para uma ascese budista: mas essa tentativa resulta em um fracasso: “A aventura no Desolation me faz encontrar no fundo de mim mesmo um nada abissal, pior que isso, nem uma ilusão – a minha mente está em frangalhos – ”

Anjos da Desolação, paradoxalmente, é a narrativa em que mais viaja e aquela em que anuncia o fim das viagens para isolar-se de vez; a que traz os mais ricos registros de sua convivência com outros integrantes da geração beat e aquela na qual se desliga desse movimento; a que coincide com a publicação de On the Road após anos de espera, e a conseqüente consagração, mas na qual rejeita o título de “rei dos beats”. Despede-se: “Um pacífico pesar em casa é o melhor que sempre serei capaz de oferecer ao mundo, ao final, e assim eu disse adeus a meus Anjos da Desolação, Uma nova vida para mim.” Paisagens e lugares que em On the Road o encantavam agora o oprimem. Repete referências à desolação, tristeza, dor, às “terríveis distâncias”, à “solidão inacreditável”, ao horror. Não vê saída; a sociedade americana é totalitária, um estado policial; mas descrê de qualquer utopia; rejeita categoricamente não só o comunismo soviético, mas a politização da beat; mais tarde, se oporia às rebeliões juvenis e mobilizações pacifistas da década de 1960.

On the road – pé na estrada [tradução de eduardo bueno] (L&PM, 2004)

On the Road é sua obra de maior influência, e Visões de Cody a mais complexa e ousada; mas nenhuma se detém a esse ponto em sua visão de mundo. Da ascese no Desolation Peak até a epifania em companhia da mãe em uma igreja em Ciudad Juarez ao verem penitentes mexicanos, é busca religiosa, ora traduzida em termos budistas, ora católicos. Reitera que a realidade é falsa, ilusória; a verdade pode ser alcançada pela rememoração, a anamnese platônica: “Só o que eu me lembro é que antes de eu nascer existia alegria”. O arcaico, para Kerouac, sempre é superior ao presente; a pobreza de outrora vale mais que a euforia de hoje: “Porque eu ainda me lembro da América quando homens viajavam levando toda a bagagem num saco de papel, sempre amarrado com barbante”, contrastando com “a América próspera de 1957”.

Kerouac não foi o único derrotado na vida e vitorioso na criação literária. Essas contradições e paradoxos não foram apenas um drama pessoal. Sua obra, por mais particular que fosse, é universal. A luta contra o tempo, a contradição entre o sujeito e seu mundo: temas que são o fermento da criação literária; que, do modo como Kerouac os enfrentou, conforme Penny Vlagopouolos, autora de um dos ensaios que acompa-nham a edição de On the Road: o manuscrito original, o tornaram o autor da “mais monumental das cartografias sobre o desejo humano, em toda a sua extrema imensidão e insignificância.”

Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (L&PM, 2014)

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!