por Analice Pereira
Luiza Paiva encontrou, na palavra, uma matéria-prima possível de comunicar. Fez disso um exercício estético e, agora, estreia na poesia, com Herética. O livro é composto de três partes que se interligam numa espécie de lógica narrativa impressa nas entrelinhas de seus versos, dada a progressão com que o eu-lírico-personagem invoca sua existência poética: na primeira parte, perseguindo a palavra como sua matéria-prima; na segunda parte, orientando-se pela leitura das linhas da vida, que representam, pela cigania, as linhas das mãos, como mote de sua expressão; e, por fim, na terceira parte e fechando o que chamarei aqui de “ciclo espiralado”, concretizando uma imagem de eu-lírico-personagem, como consequência dos dois primeiros momentos. Noutras palavras, o todo no livro de Luiza Paiva pode ser interpretado como sendo uma sucessão de imagens existenciais e poéticas que seguem mais ou menos uma ordem de causalidade e efeito, num movimento compreendido como o da espiral, ou seja, sem finitude. Vejamos de forma mais pormenorizada.
A expressão que dá nome à primeira parte – da capo – como uma forma de homenagear a música que tanto lhe serviu de meio de expressão e de fonte de reflexão sobre as complexidades humanas, também denota seu sentido mais literal de repetitividade ou de uma imagem da vida como algo cíclico e espiralado, num vai e volta sem fim. Exemplo disso é o poema “As roupas ainda estão no varal” que fecha o livro, trazendo um verso que comunica o que se apresenta na expressão que nomeia a primeira parte: “amores do começo são os do fim”. Desde o fim para o começo; da capo ao fim, que nunca finda. Interessante notar que o livro abre com uma reverência à matéria-prima que Luiza perseguiu como instrumento de sua comunicação com o mundo – “Las palavras” – e termina com “Confissão”, que traz um eu-lírico que, na primeira estrofe, apresenta-se “fingidor” para, na estrofe seguinte, conclamar seu verdadeiro amor aos “conceitos” e colocar o interlocutor no alvo da sua confissão/desabafo: “porque você, meu caro, é um merda”.
Na segunda parte – linhas da vida – o eu-lírico-personagem se apropria de conceitos e sentimentos de vazio (“Itisnotitle”), sede (“Sede”), saudade (“Nunca escureça”), secura (As lágrimas me deixaram e me ocupei de sêmen / Este que escorreu por minhas coxas e boca /Secou no meu corpo voluptuoso e endorfinizado, em “Volúpia”), além de doença, infertilidade, masoquismo, escravidão, submissão, luto etc. Nessa parte do livro, as linhas da vida são como “Os caminhos dessas mãos” que “Te deram escolhas amplas /Mas nossas vidas, ambas, / Têm momentos tão vãos…”. Aqui, as águas vivificantes que representam os fluidos de um caráter erótico-afetivo impresso nos poemas da primeira parte, secam, paralisam, como uma espécie de analgesia para um novo momento que se coloca como destino. A secura representada pelos versos da segunda parte evolui para um vazio conforme se vê em imagens da terceira parte – As roupas ainda estão no varal – sobretudo nos versos do poema homônimo e que fecham a terceira parte e, portanto, o livro.
Essas imagens performatizam um vazio advindo do sentimento poético do ciúme, representado pelo submundo dos esgotos em que o eu-lírico-personagem conclama, num sonho com velhas tentativas, ao seu interlocutor – ao lado de uma moça sem rosto – ainda uma fala, ainda uma palavra, ainda uma vez. A violência com que o despertar se dá daquele sonho é devida à percepção de sobressalto de que as roupas ainda estão no varal. Essa imagem lembra “tantas almas esticadas no curtume”, verso da canção “O ciúme” de Caetano Veloso. Imagem de amor morto, soterrado na secura do couro curtido, na pele em que um dia habitaram as águas vivificantes do amor: sêmens, fluidos, suores e lágrimas, representadas na primeira parte. Agora tudo é seco e tudo é vazio: é ausência de corpo nas roupas secando ao varal.
Assim, temos: na primeira parte, os fluidos naturais do amor/sexo, seguidos da secura,na segunda parte, e de uma maturidade existencial que mistura mais fluidos, secura, e desemboca no vazio da solidão. Tudo isso, em nome de um amor que reivindica a liberdade e que convoca o outro à “nêgação; para, juntos, cantarem seu “hino ao amor”: “amor, vamos negar / negar o mundo e seus desconsolos / negar o que descontrói / mas nêgar o que constrói / nêgar protestos por mais amor / negar exaltações às perfídias /vamos juntos, / nêgo e nêga, / nêgar o que mais há de lindo”. Tomando de empréstimo o título do filme sobre Edith Piaf, e longe de fazer qualquer tipo de comparação, mas me ancorando naqueles sentimentos tão intensos da artista francesa, conforme se apresentam em sua expressão musical, a poesia de Luiza Paiva é, também, um “Um hino ao amor”. Ao amor amor, ao amor genuíno, ao amor da entrega, mas, também, ao amor contrariado da revolta pelo abandono, da tristeza pelo descaso, da repulsa à exploração que tanto o ser masculino tem feito à figura do feminino. É assim, portanto, que Luiza Paiva estreia na poesia: comunicando a palavra sagrada do amor como heresia.
Minibiografia da Autora
Luíza Paiva é parahybana nascida em março de 1993. Historiadora e professora de História. Começou a escrever na infância tardia, nos primeiros sinais da adolescência, quando percebeu que as palavras também eram jogos. Conforme vieram as vidas e suas agruras, sua escrita ganhou contornos lancinantes e, então, além de jogos, as palavras tornaram-se alento. Deu início a um blog de nome ‘it has no title’ em 2007, tendo os primeiros poemas aparecido com mais vigor a partir de 2009. Mesmo com alguns hiatos, a palavra nunca deixou de fazer parte de sua travessia herética pela vida. Participou duas vezes do Sarau Selváticas, nos anos de 2018 e 2019. O acúmulo de (des)amores é marca maior da autora que traz ao mundo sua primeira obra, Herética, através da Editora Triluna, neste conturbado ano de 2020.
Sobre a pré-venda
Herética está em pré-venda no site da Editora Triluna, através do link: https://editoratriluna.com.br/heretica-pre-venda. O livro digital custa 20$ e o livro físico 45$, além de adquirir apenas os livros, o leitor também poderá escolher entre os combos disponíveis: combo A: Herética + bloco por 60$; o combo B: Herética, A chave selvagem do sonho (Anna Apolinário) e Harpia (Aline Cardoso) + bloco por 160$; e, por fim, o combo C: que inclui Herética, A chave selvagem do sonho e Harpia + bloco + entrevista exclusiva com a autora por 200$. O livro poderá ser comprado em pré-venda com frete grátis até o dia 06/12.